Chamou
um táxi. Estava nua. Não inteiramente, mas com o corpo pintado de dourado e um
tapa-sexo. Vinha do sambódromo. Arrasada por ter prejudicado o desfile da sua
escola de samba. Safrane Camargo desfilara como madrinha de bateria da
Interesseiros da Cidade de Deus, uma escola do segundo grupo.
Um
primeiro táxi, dirigido por um cinqüentão magro, com cara de tarado, parou. O
motorista perguntou quanto era o programa. Safrane ignorou e o taxista foi embora
xingando. Veio o segundo. Era um senhor de uns sessenta anos, cabelos brancos e
barrigudo. Assustado e surpreso, mesmo gostando de mulher, ainda mais nua na
sua frente, ele ficou receoso em parar. Mas parou.
Seu
Jandir não era preconceituoso, mas também chegou a achar que Safrane era uma
prostituta ou um travesti oferecendo programa. Pensou em dizer não e seguir
caminho. Também ficou com medo de vir um assaltante junto com ela. Mas lembrou
que era carnaval. E ele não podia recusar viagem, apesar daquela moça parecer
estar completamente sem dinheiro. Ficou na sua. Aceitou a passageira.
Certificou-se de que era uma mulher. Percebeu que ela estava triste.
—
Me leva pro Aterro do Flamengo?
—
Levo sim. Mas me desculpe, minha filha, antes de você se sentar, poderia forrar
o banco com esse jornal? É que eu acabei de lavar o estofado.
—
Claro. Murmurou. E Safrane atendeu ao pedido do motorista que lhe dava algumas
folhas de jornal.
Chorava
no banco de trás, pensando nas palavras preconceituosas vindas da voz grave do
mestre de bateria da escola, um negro gordo de raros cabelos grisalhos:
—
SUA BRANQUELA VAGABUNDA! VOCÊ NÃO É DA COMUNIDADE, MUITO MENOS DO NOSSO ESTADO!
SÓ DESFILOU NA NOSSA ESCOLA PARA MOSTRAR A SUA BOLA DE SILICONE E NOS
PREJUDICAR. VAMOS PERDER PONTOS NA EVOLUÇÃO E POR ATRASO POR SUA CULPA! PODEMOS
SER REBAIXADOS POR SUA CULPA!
De
fato, Safrane não pertencia à comunidade. Era paulista. Mas seus seios e bunda
não eram siliconados. Todos naturais. Fora essa injustiça, a moça dava razão ao
Mestre Gordo, como o estúpido era chamado na comunidade à qual não pertencia.
Ela
ainda tentou se consolar com o namorado num dos camarotes. Mas o flagrou, na
dispersão mesmo, agarrado a uma passista mulata. Esta traição a abalou menos do
que as palavras humilhantes do mestre de bateria, do presidente, do bicheiro patrono
da escola, do diretor de harmonia, porta-bandeira, mestre-sala, entre outros,
que repetiram as críticas no caminho.
Saiu
da área da dispersão para a rua Frei Caneca. Caminhava para a rua do Catumbi
enquanto se “despia” do esplendor e do sapato de salto. As lágrimas já borravam
a sua maquiagem e o suor derretia a tinta dourada dos seus seios, revelando as
auréolas largas e rosadas.
Pelo
retrovisor, Jandir observava a passageira. Não com olhar de desejo ou tara. Mas
de pena.
—A
senhora está sentindo alguma coisa? Perguntou.
—
Não, nada. Disfarçou a tristeza.
—
Olha, a moça me desculpa a indiscrição, mas como é que você vai me pagar? Estou
vendo que você está completamente sem dinheiro.
—
Me empresta um papel e caneta, por favor?
O
velho taxista tirou uma folha de papel de um bloquinho de anotações pendurado
no para-brisa e, junto com uma caneta, direcionou a mão direita para trás.
Menos de um minuto depois recebeu tudo de volta, com o papel rabiscado:
SAFRANE
NUNES CAMARGO
SUÍTE
602
HOTEL
COPA MAR
RUA
SANTA CLARA, 116 – COPACABANA
TELEFONE:
(11) 99999-9999
— Amanhã, você passa lá e pede para falar
comigo que eu te pago a corrida. Agora estou sem condições.
— A senhora tem certeza que quer descer agora
no Aterro do Flamengo? Eu te deixo no
hotel. Vai descansar. Não pode ficar andando a essa hora na cidade sem roupas.
— Por
favor, meu senhor! Eu tive um dia péssimo hoje. Quero espairecer a minha
cabeça. Insistiu Safrane, impaciente.
—
Está bem! Não está mais aqui quem falou. Vou fazer o que a moça está pedindo. Então
chegamos.
O
carro parou e Safrane saltou pela porta de trás do táxi dizendo apenas um “obrigada”
ao motorista. Jandir já tinha sumido com o seu carro quando a paulista caminhou,
já totalmente nua (a pintura já estava derretida) para uma passarela na via
expressa da Avenida Infante Dom Henrique.
Ela
já estava na passarela elevada, pronta para se jogar no grande fluxo de
veículos, apesar do horário e do feriado. Olhou para os lados para
certificar-se de que não havia nenhum policial por perto. Desistiu. Em vez do
guarda, tinha outro potencial suicida. Um homem gordo, aparentando vinte e
cinco anos, cabelos pretos, barba irregular de mesma cor e óculos de lentes
grossas.
Com
o seu forte sotaque paulista, Safrane comentou contrariada.
—
Aff! Estou vendo que eu não serei a única suicida por aqui.
—
Eu acho que eu já morri e estou sendo recebido no céu por um anjo com a cara da
modelo Safrane Camargo!
—
Não morreu, não. Você ainda está vivo e quem está aqui é a própria. Respondeu,
com tom irônico, apesar de estar falando a verdade. — Está querendo se matar
por quê?
—
Meu pai ameaçou me deserdar se eu não fizer um concurso público ou procurar um
emprego.
—
Desculpa a franqueza, mas por que você não atende o seu pai, então?
—
Porque eu quero trabalhar de verdade e não passar a minha vida inteira fazendo
trabalho burocrático. Eu estudei quatro anos para ser jornalista e não
funcionário público. Tenho horror a burocracia. Procuro emprego todos os dias
pela internet e não tenho resposta. Já os meus ex-colegas de faculdade, que não
me procuram mais, conseguem o deles tudo por QI, o Quem Indica. Você mesma deve
namorar alguém importante.
—
Não sou indicada de ninguém. Eu tive que pagar pra desfilar. Mas, deixa pra lá.
Qual o seu nome? Você faz o que na internet?
—
Eu me chamo Carlos Eduardo Carvalho. Tenho um blog onde eu posto notícias
culturais e os meus contos. Só consigo dinheiro uma vez por ano pela
publicidade do sistema de busca. Já lancei dois livros, que não me deram muito
retorno. Mas o meu pai não entende que o lucro demora e fica me cobrando pra eu
trazer dinheiro. Sinto que eu só dou prejuízo para os meus pais. Tenho que
economizar em tudo, mas ele mesmo não economiza. E ainda tá me obrigando a
emagrecer. Por isso não aguento mais. Eu quero morrer.
—
Olha, infelizmente, você deveria depender menos da internet e sair mais de casa.
E emagrecer também. Mas entendo os seus
objetivos. Não quero bancar a psicóloga, até porque eu também vim para me
matar. Prejudiquei a minha escola de samba no desfile e ela pode ser rebaixada.
Parece que vim de São Paulo só pra isso! Fui humilhada pela escola toda. Nunca
mais vou desfilar aqui no Rio de Janeiro.
—
Eu acho que você deveria se exibir menos e se comprometer mais com a escola.
Olha aí, você já está inteiramente nua na minha frente. A tinta do seu corpo já
se derreteu toda.
—
Não entendo vocês homens! Se a gente desfila vestida se desinteressa. Se
desfilamos nuas somos exibidas! Aposto que você ia se masturbar no banheiro se
me visse desfilar. Ironizou. — Então vamos nos matar juntos.
O
blogueiro e a madrinha de bateria subiram novamente no gradil da passarela. De
mãos dadas. Desceram. Se abraçaram e se beijaram. Rapidamente, Carlos tirou a
sua camisa GG, que deu para Safrane vestir.
Foram
juntos para o hotel onde ela estava. De ônibus. A passagem foi paga por ele.
Safrane suportou serenamente os assobios e cantadas dos homens e os chamados de
Vagabunda vindos das mulheres. Tomaram banho juntos assim que chegaram ao
hotel. Fizeram amor.
No carnaval seguinte, Safrane Camargo se
consagrava como rainha de bateria da Influentes da Mooca no sambódromo de São
Paulo. Exibia orgulhosamente os seios, ainda maiores por causa da gravidez de
sete meses. De um empresário paulista. O filho de Carlos Eduardo ela perdeu aos
três meses de gestação.
Carlos
Eduardo continuava com o seu blog e ainda era cobrado pelo seu pai. Discutiram
novamente no sábado de carnaval. Mais uma vez saiu desesperado para tentar se
matar. Nunca mais foi procurado por Safrane. Não era mais virgem. Nenhuma
madrinha de bateria frustrada e suicida apareceu para lhe fazer companhia.
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