Peça em um ato de Miguel Angel
Cenário: sala de modesto apartamento, suja como as poltronas que rodeiam pequena mesa de centro; para completar a mobília apenas armário grande abarrotado de bugigangas e garrafas dentro dele.
Três portas: uma delas à direita é a entrada e saída "para a rua"; as outras duas ao fundo, os quartos. Encostada no armário, servindo-se de bebida, está Ágata. Pouco mais de 65 anos; veste velho roupão; cabelos desgrenhados mostram na raiz cabelos brancos debaixo de tintura de tons avermelhados. Nervosa, bebe de um só gole; faz caretas. Refeita, olha furiosa para Mário, (+ ou - 66 anos), sentado num sofá; despenteado, descalço, mostra manchas escuras no colarinho da camisa, na barriga: é sangue. Calça mal abotoada, vestida às pressas; não se atreve a olhar para ela que anda de um lado para o outro, resmungando. Fica claro que faz algum tempo que estão nessa situação. TEMPO. Subitamente ela bate o copo com força sobre a mesa assustando o homem que se endireita bruscamente.
ÁGATA
Mas o senhor, hein "seu" Mário! Como foi que aconteceu uma desgraça dessas? Por quê? (Ele não se mexe.) Muito bem, vamo'lá. O senhor me aparece aqui com aquela garota, essa tal de Maria que aliás, nunca vi antes. Tudo bem, afinal é o que faz há mais de ano com todas as outras. E, tá certo, nunca me aprontou. (Tom) Mas desta vez as coisas foram longe demais. E pior, na minha casa! Vamos homem, fale. Tó perdendo a paciência!
MÁRIO (Com esforço)
Sabe dona Ágata eu...Tavamos lá, brincando. Aí a garota, de repente tem um troço, desmaia e bate a cabeça na quina daquele criado mudo...
ÁGATA
Conversa fiada. Eu vi o corpo daquela garota, esqueceu? E não era da cabeça que vinha todo aquele sangue, não. (Pausa) Tá bom, deixa pra lá. Não sou nenhum tira pra ficar te aporrinhando. Mas acontece que também tó metida nesta enrascada, entende?
MÁRIO (Empolgando-se)
Entendo dona Ágata, e posso lhe assegurar que sou muito generoso com aqueles...
ÁGATA (Interrompendo-o áspera)
Depois! Depois a gente fala disso. Agora o negócio é outro. Precisamos tirar da minha casa essa garota, ou o que restou dela...certo?
MÁRIO
Certo, dona Ágata. A senhora tá certa.
ÁGATA
Pois é. (Pausa.) Vai ser mole, não. Tem aquele bundão do zelador. Sempre de olho nas minhas visitas.
(Cansada, ela se serve de mais uma dose e oferece outra para Mário, que aceita prontamente. TEMPO. De repente a campainha (imitando sinos) toca assustando-os. Ágata apreensiva, faz sinais de silêncio. A campainha, agora acompanhada de batidas na porta, insistentes. Pausa. Voz
SÔNIa (Off)
Sei que cê tá aí, mãe!
(Ágata faz sinais para Mário se esconder. Este não parece compreender. Está imóvel, zonzo. Ela vai até ele, ajuda-o a levantar e, lutando contra sua relutância, empurra-o quarto adentro, fechando a porta. Vai até a porta da rua, ajeita-se. Voz
sônia (Off)
Como é velha, vai abrir não? (Ágata abre. Entrando) Demorou, pô. Qualé? (Farejando) Tá aprontando algumas?
ÁGATA (Disfarçando nervosismo)
Que nada. Só tava tirando um cochilo.
sônia
Conta outra, velha. (Senta no sofá ) Me dá um gole aí. (Pausa. Bebe) Então? Hoje tem visita, não?
ÁGATA
Ora filhinha, tó sozinha, não dá pra ver?
sônia
"Fi-lhi-nha"? Que tá havendo? Faz tempão que cê não me chama assim.
ÁGATA
Tempão faz que você não aparece por aqui. Alguma coisa em especial?
sônia
Mas ou menos isso. (Tom) Pensei que teria movimento por aqui. Que tá havendo? Tá em decadência o bordel? (Sussurrando, maliciosa, assinalando a porta por onde Mário saíra) Ou já tem gente lá dentro?
ÁGATA
Ninguém, já disse. E então? Que coisa especial é essa?
sônia
É o Pedro.
ÁGATA
Pedro? O conheço? Desculpa, mas é um entra e sai de homens na tua vida que não consigo guardar os nomes.
sônia
Tua melhor aluna, não? Não pode se queixar.
ÁGATA
Deixa pra lá. Lembro dele sim, e daí? Que que tem?
sônia
Seguinte. Os tiras sabem que ele anda com novos contatos e tão pressionando. Aí resolveu passar uns tempos aqui até o clima esfriar um pouco.
ÁGATA
Como é? Aquele pilantra tá querendo dá sumiço na praça se amoitando aqui? Na minha casa?
(...)
sônia
Deixa isso com ele. Velha, pensa bem. Férias. Vai poder descansar desta... (Ouvindo barulho que vem detrás da porta por onde Mário saiu) Cê não disse que não tinha ninguém?
ÁGATA
Não ouvi nada.
sônia
Que tá havendo contigo, hein? Tá bebum?
ÁGATA
Essa história daquele cara se hospedar aqui, só pode piorar minha saúde. (Mais barulho no quarto. Sônia olha interrogadoramente para Ágata, cada vez mais aflita) Olha, Sônia, hoje não tó me sentindo bem. Preciso me deitar. Refletir, pensar nisso...
sônia
Que fricote é esse? Já tá decidido. (Tom) Escondendo alguma, Ágata? Vai, abre o jogo.
ÁGATA
Acontece que... tó esperando alguém, sim. Gente de respeito, né? Por isso acho melhor você sair e segurar o... Pedro esse, lá embaixo.
sônia
Tá me botando pra fora, velha? Corta essa! (Tom) "Gente de respeito". Esses caras não passam de um bando de tarados. (Se interrompe ao ouvir o barulho agora óbvio que vem do quarto) Tem alguém aí, sim. (Cochichando, gozadora) É um deles, mãe? Daqueles "de respeito"? (Sônia vai até a porta e encosta o ouvido, sacana)
ÁGATA
Ora, Sônia! Tem gente, sim. Se divertindo apenas. (Afastando-a da porta) E não fica bem ouvir o que os outros fazem. Vai, sai daí. Senta aqui e toma a saideira. (Vai servir bebida)
sônia
Já esqueceu, “mamãe” que passei minha infância toda "escutando" o que você fazia com teus homens? (Pausa. Senta, pega o copo que Ágata lhe estende) Ah, esquece. Velha, dia desses vás te estrepar. Vai vê só. (Ágata se estremece diante destas palavras. Inquieta, vai até o móvel e se serve de mais bebida. Nesse momento, a porta do quarto se abre lentamente e Mário aparece, andando de costas, olhando para seu interior. Está tremendo. Ágata olha para Sônia que nada percebe. Disfarçadamente vai até Mário e tenta empurrá-lo de volta para o quarto. Este reluta. Sônia beberica, ensimesmada) Em parte cê tem razão, velha. Essa história do Pedro achar que aqui é lugar ideal... Meteu isso na cabeça. (Ágata está conseguindo fazer ele voltar para o quarto. Apalermado, o homem deixa se arrastar lenta, penosamente. Não compreende Ágata, não nota a presença de Sônia que continua seu raciocínio) Quando o sacana aparecer, vou ter um papo com ele. Sei lá, quando ele falou, na hora achei uma boa. (Ágata consegue tirar Mário da sala, mas sem tempo de fechar a porta, fica imóvel quando Sônia se volta e a surpreende com os braços esticados para dentro do quarto. Sônia não parece surpresa) Pois é, acho que cê tá de pileque mesmo. (Ágata sorri desajeitada, tentando fechar a porta. Sônia levanta-se e vai até ela, agora intrigada) Que há com você? (Sônia olha para dentro do quarto sem entrar. Ágata, cansada da tensão, se afasta.) Que negócio é esse aí? (Olhando para o chão) Isso aí... é sangue? Velha, que tá acontecendo? Vem ver isto! ( De costas para ela, Ágata não se mexe.) Eu sabia que tinha mutreta. Mãe! Tô falando com você, porra! (Ágata se resolve. Vagarosamente vai até a porta do quarto)
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Extraído da peça "Um cadáver em casa de mamãe" Para seguir, 2ª Parte: CLIQUE AQUI
2 Comentários
Quero escrever para teatro!!!!
Como criar um bom texto como esse???
PAZ!
ES
Vai ter continuação, "né" não?
Beijos,
A Condessa Descalça.