Sou pároco há quarenta anos de
uma igreja do subúrbio do Rio de Janeiro. Faço casamentos, batizados, unções
dos enfermos e, claro, missas dominicais, comemorativas e fúnebres. Também
reservo um dia para as confissões. Toda quarta-feira aqui na paróquia.
Antigamente, as
confissões eram mais movimentadas. Havia fila enorme de pessoas. A maioria era
de senhoras, mas tinha muito homem também. Hoje, com a internet e suas redes
sociais, onde os jovens (e até idosos) confessam seus pecados para todo o
planeta, a igreja vive vazia. Tanto que eu estou tirando esta programação da
agenda, deixando apenas para marcar com o fiel. Se houver muita procura, eu
retomo a atividade.
Costumo ouvir pecados como
“traí meu marido”, “dei um tapa na minha filha” e “parei de falar com o meu
irmão”. “Menti para a minha mãe ou minha filha” é o que eu mais ouço. Já ouvi
também alguns “furtei um pote de manteiga do supermercado para alimentar meu
filho”, “furtei um batom numa butique”, “furtei um boneco de brinquedo”. Até
assaltantes de banco e homicidas se confessaram comigo. Também ouvi mulheres se
dizendo apaixonadas por mim.
Nunca entreguei nenhum
criminoso para a polícia. Dou apenas as penitências religiosas, como mandar
rezar dez ave-marias, quinze pais-nossos, oito credos e dez salve-rainhas no
altar. Para os crimes, quer dizer, para os pecados mais graves eu mando o
pecador rezar cem orações de cada. Demora, mas acho que ele vai sair
purificado.
Até que um dia, na última
quarta-feira reservada regularmente para confissões, depois do desabafo de uma
senhora que escondeu que tinha câncer para a irmã mais velha, ouço a voz grave
e sussurrante de um homem querendo tirar um grande peso na consciência. Abriu o
pedido com o velho clichê:
— Padre, eu pequei!
— Sim, meu filho. Qual foi o
seu pecado?
— Eu não sei como contar.
— Então não conte, meu
filho.
— Mas eu preciso contar. E
muito!
— Então conte! Disse, em tom
áspero de impaciência.
Não ouvi mais a voz dele.
Saí do confessionário e vi um vulto moreno, alto e magro saindo correndo em
direção à porta de saída da igreja.
Finalmente, tirei a
quarta-feira da confissão do calendário da igreja. Quem quisesse que me
procurasse na missa do domingo ou marcasse por telefone. De preferência na
quarta-feira. Eis que na terça me liga um homem, com uma voz parecida com a do
que tentou se confessar na semana passada. Marcou para quarta.
No dia combinado, não
apareceu. Não havia ninguém pra confessar e segui a minha rotina. No domingo,
duas senhoras marcaram. Uma depois da missa e outra por telefone. Todas
aceitaram comparecer na quarta-feira.
Então, neste dia, após as
senhoras confessarem os seus pecados, veio essa voz novamente, agora com hálito
de chiclete de melancia. Sabia que era porque ele me ofereceu. Então, depois
que eu recusei, ele repetiu o que tinha dito duas semanas atrás:
— Padre Altero (ele sabia o
meu nome), eu pequei!
— Sim, meu filho. Qual foi o
seu pecado?
— Eu não sei como contar.
— Pense bem. Eu dou um tempo
pra você pensar.
Ficou em silêncio.
Compartilhei com a sua falta de palavras por alguns segundos para tentar
ajudá-lo a desabafar:
— O seu pecado tem a ver com
mentira?
— Não.
— Destratou alguém?
...
— Destratou?
— Não quero falar disso
agora.
E foi embora. Voltou no mês
seguinte.
— Padre Altero, o que eu fiz
foi muito grave.
— O que foi?
— Eu não sei como contar.
— Matou ou roubou alguém?
— Não.
— Violentou alguma mulher?
— Não.
— Criança?
— Nada.
— Cometeu algum incesto?
— Negativo.
Após cinquenta anos ouvindo
confissões, chegou a vez de eu confessar que estou perdendo a paciência com
este fiel. Sou conhecido na paróquia por ser uma pessoa calma e tranquila.
Nunca levantei a voz para ninguém. Mas agora, como tudo tem a sua primeira vez,
vou cometer o pecado da ira se esse cara não confessar o seu pecado. Acabei me
exaltando:
— Escuta aqui, meu filho!
Você já está me irritando com esse pecado que você não quer contar! Vai contar
ou vai ficar me fazendo de idiota?
Ouvi passos acelerados.
Olhei para fora do confessionário e vi que o fiel do pecado misterioso fugiu
com o meu destempero. No dia seguinte a este fato me ligaram pedindo para
marcar uma confissão para sexta-feira. Era para uma senhora que só andava em
cadeira de rodas. Abri uma exceção. E lá fui eu para a cabine. Esperei trinta
minutos.
O tempo de absorver o ar e
soltá-lo em bufo foi necessário para a mesma voz rouca, sussurrante e com bafo
de chiclete de melancia me chamar.
— Padre Altero.
Desta vez ele não disse que pecou.
— Vou contar o meu pecado
agora.
Impaciente, respirei
aliviado e acabei soltando:
— Até que enfim! Então diga,
meu filho.
— Na verdade, eu não pequei.
Calei-me diante desta
revelação. Saí do confessionário e surpreendi o sujeito, um homem branco,
cabelo moreno cortado a máquina, alto rosto redondo, queixudo e óculos
fundo-de-garrafa. Agarrei-o pelo colarinho de sua camisa pólo.
— ESCUTA AQUI, MEU FILHO! HÁ
MAIS DE UM MÊS QUE VOCÊ VEM ME PERTURBANDO, FAZENDO PERDER O MEU TEMPO E ME
ENCHENDO A PACIÊNCIA COM ESSE PECADO QUE VOCÊ NÃO QUER CONTAR!!!! OU VOCÊ CONTA
LOGO ESSE SEU PECADO OU ARREBENTO A SUA CARA!!!!!
— O meu pecado foi ter
mentido para o senhor. Eu sou detetive da polícia e você está preso por estelionato
e falsidade ideológica. A minha tentativa de confessar era uma maneira de provocar
a sua ira, um pecado capital, para te desmascarar. Sabemos que você não é padre
coisa nenhuma, mas enganou essa paróquia durante dois anos.
O pecador, quer dizer, o
policial tem razão. Eu nunca fui padre de verdade. Enganei a Arquidiocese. Também
não me chamo Altero e sim Hélio. Muito menos tenho cinquenta anos de
sacerdócio. Sou um comerciante falido que se fingiu de padre para sustentar a
minha mãe doente com dinheiro das ofertas dos fieis. Menti para o policial, aos
fiéis e para você, leitor.
As senhoras que viviam na
igreja ficaram horrorizadas ao ver meu ataque de fúria e minha saída algemado
pelos guardas. Na cela da casa de custódia rezei cinquenta ave-marias, cem
pais-nosso e duzentas salve-rainhas como penitência para mim mesmo.
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