Meu pai fazia
minha mãe usar cascas de batata para reduzir o inchaço nos olhos provenientes
de suas noites mal dormidas. Ela ficava 15 minutos com a parte úmida das
cascas, já um pouco escurecidas, sobre a pele. Isso me faz lembrar das aulas de
biologia, da informação de que, 30 minutos após a morte, os olhos começam a
afundar no crânio, ficam desidratados e a córnea parece um véu viscoso e
esbranquiçado. E sobre isso, nem casca de batata ajuda.
Nossa família
parecia mais uma árvore frutífera onde a primeira fruta apodrecida liberava o
etileno para o restante da árvore. É uma analogia estranha, mas é a pura
verdade.
Nada naquela
casa era desperdiçado, nem mesmo as coisas podres.
Na aula de
biologia o professor disse que com a ação de bactérias e larvas os órgãos
acabam se desprendendo da estrutura corporal e se desmancham. Entre 3 e 7
minutos após a morte, as células morrem e, dias depois, os gases em
decomposição invadem os órgãos e tecidos do cérebro, fazendo-os se
desmancharem. Dentro da caixa craniana, isso de que nos orgulhamos tanto vira
uma massa cinzenta e depois um liquido viscoso que começa a escorrer pelas
narinas.
Meu pai ficou
maravilhado quando leu a notícia de que na Holanda estudantes tinham criado uma
forma de transformar frutas podres em um material maleável e durável como o
couro, o que traria bolsas, calçados, roupas e até estofados com esse material,
no futuro.
Nada naquela
casa era desperdiçado, nem mesmo as coisas podres.
Na garagem
tínhamos uma escada velha, de madeira, toda apodrecida. Meu pai se recusava a
jogar qualquer coisa fora. Então ele pegou essa escada e a transformou em uma
estante pros meus livros, no meu quarto. Quando eu dormia podia sentir um
cheiro adocicado vindo da madeira carcomida. Eu sempre achei intrigante como
todas as coisas podres possuíam um aroma doce.
Em uma mesa
grande, também com sinais de apodrecimento, meu pai costumava fazer enormes
barras de goiabada com as frutas bastante maduras que caiam em profusão no
nosso quintal. O cheiro do doce era maravilhoso. Hoje, quando vou verificar um
corpo morto há 8 ou 12 horas, lembro dessas barras vermelhas de doce na mesa
velha de meu pai. Por conta da gravidade o sangue se concentra na parte de
baixo do corpo, como costas e pernas, formando "piscinas de sangue",
cuja consistência é semelhante a de goiabada. Chama-se livor mortis.
Nada naquela
casa era desperdiçado, nem mesmo as coisas podres.
Minha mãe tinha
cabelos compridos e negros como a noite sem estrelas. Lembro que quando eu
tinha 9 anos o cabelo dela tinha o meu comprimento. Suas unhas. Eu sempre
ficava admirada com as unhas dela, tão perfeitas, tão lindas. Lembro disso
quando os cadáveres estão diante de mim para necrópsia. Apesar da falta de
irrigação no corpo após a morte, os cabelos, pelos e unhas não se dão conta
disso e continuam a crescer 0,5 centímetros até a decomposição completar 24
horas.
Os cabelos da
minha mãe. Dançavam ao som do vento, sentada naquela cadeira de balanço,
tricotando ou polindo os sapatos do meu pai com cascas de banana. Seus cabelos.
Lembro quando meu pai os pegou em sua mão, como se pega uma corda para puxar
algo, e a fez gritar. Lembro quando ele a estuprou na minha frente, desse
jeito, puxando seus cabelos e, sob os protestos dela, dava tapas no seu rosto,
gritando ofensas, cuspindo em seu corpo uma gosma meio amarelada com odor
pútrido de whisky barato.
O cabelo da
minha mãe ganhara uma mecha vermelha que contrastava lindamente com seus fios
negros como o breu. A mecha foi tingida pelo sangue que jorrou de sua cabeça,
depois que meu pai a empurrou com violência contra a parede.
No dia seguinte,
ao acordar, fui até a varanda e minha mãe estava lá, sentada. Seus olhos,
encobertos por um véu viscoso e branco, olhavam o nada. A mecha de seu cabelo
estava agora com um tom quase azulado. Meu pai passou um fio de arame em volta
do pescoço dela para que sua cabeça não ficasse pendendo. Ela vestia a mesma
manta florida que usava nos domingos. Sua pele parecia cera, tão branca quanto
uma folha de papel. Eu passei a manhã toda sentada no chão olhando para a sua
face morta até todas as linhas de seu rosto desaparecerem na minha cabeça e
formarem uma tela em branco onde eu poderia pintar outros rostos, outras
realidades.
Nada naquela
casa era desperdiçado, nem mesmo as coisas podres.
Hemerson Miranda
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