O
metrô já não tinha nenhum banco vazio. Mas também não estava superlotado. Quem
se apoiava nas barras de ferro no teto e na coluna ainda tinha espaço para se
movimentar. Idosos e grávidas podiam ter a sorte de ganhar o lugar de alguém.
Eu mesmo cedi o meu para uma senhora de aparentes setenta anos.
Tenho
o hábito de ler livros em qualquer transporte público para passar o tempo da
viagem. Leio tanto o livro impresso quanto o eletrônico no tablet e no celular.
Justamente neste dia, em que eu desceria no ponto final, eu não estava com os
dois primeiros. Apenas com o smartphone. Porém, havia dois rapazes de má
aparência (um sem camisa com boné e outro de camisa de basquete com cabelo
moicano descolorido, com fones no ouvido) olhando para mim. Fiquei com medo
deles me assaltarem, pois tem acontecido muitos arrastões nos trens do metrô.
Tive
que ficar observando as paisagens das estações e os outros passageiros: a idosa
para quem eu dei o meu lugar dormindo de boca aberta, um outro idoso cantando
uma mulata, um casal de namorados conversando e trocando beijos e abraços, um
casal de irmãos discutindo e um homem de cabelos compridos e cavanhaque
grisalhos lendo um livro. Evitei encarar os dois jovens estranhos.
O
livro que o cinquentão parecido com o empresário Richard Branson lia era bem
familiar: capa listrada em dois tons de vermelho na vertical com a foto de um
microfone e o título do livro em forma de cruz. Era o meu. Alguém estava lendo
o meu romance. E não era nenhum conhecido. Estava me sentindo realizado.
Tive
vontade de abordá-lo e perguntar se ele estava gostando do livro. Mas ficaria
chato. Preferi desviar o olhar do leitor para não chamar a sua atenção.
Observei a paisagem das janelas, que tinham película com publicidade no vidro.
Finalmente
um lugar ficou vago e me sentei. Em frente ao senhor que lia o meu livro. O
trem já tinha parado em uma das vinte estações onde eu iria descer. O idoso
assanhado, a senhora que ganhou o meu lugar e o casal de irmãos já tinham
desembarcado. Entraram, agora, um homem engravatado e uma mulher com um menino
de sete anos que não parava de fazer perguntas. Até irritava. Os mal encarados
continuavam no trem.
Num
dos olhares para os passageiros, sem querer, o leitor do meu romance me
encarava sério. Depois abaixou o rosto para o livro, como se estivesse
conferindo a minha foto na orelha. Voltou a me encarar e olhar para o livro. Tinha
definitivamente me reconhecido. Estava
cara a cara com o próprio autor do livro que lia.
Para
um escritor iniciante como eu, ver alguém lendo o seu livro seria uma
realização. Para o leitor, encontrar acidentalmente o próprio autor do livro
que estava lendo seria muita sorte e uma grande satisfação. O leitor fechou a
cara.
Levantou-se,
veio até o meu banco, sentou-se ao meu lado (o trem já estava meio vazio) e me
abordou, apontando o livro:
—
Foi você quem escreveu este livro, não foi?
—
Foi sim. Respondi, num misto de orgulho e timidez. Tomei coragem: — Quer que eu
escreva uma dedicatória.
Ele
sorriu, mas o bobo aqui não percebeu que era um sorriso irônico.
—
Na verdade eu queria o meu dinheiro de volta.
—
O quê???
—
Brincadeira. Eu ganhei esse livro de um amigo.
—
Ah tá. Fiquei aliviado. — Me empresta que eu o autografo.
—
Não precisa. Eu não quero autógrafo. Só quero te dizer umas verdades. Eu sabia
que ia te encontrar um dia para despejar toda a minha insatisfação na sua cara.
Esse livro é muito ruim. Infantil. Mal escrito. Cheio de erros de português.
Vocabulário pobre, com muitas repetições. Pleonasmos. Muito mal pesquisado.
Você se diz jornalista, mas não entende nada da própria profissão. Dos fatos
históricos. Você não tem experiência nenhuma de vida. Não pode escrever um
livro. É um crianção. Vai se preparar melhor, meu filho! Vai procurar um
emprego decente! Vai fazer um concurso público! Ainda bem que eu não dei um
tostão nessa merda! Se eu pudesse, mandava proibir a venda desse livro.
Cabisbaixo
de vergonha, sem perceber que já estava sendo observado pelos outros passageiros,
alguns com pena e a maioria rindo da minha cara, estava com a voz embargada quando lhe
respondi:
—
Eu já pedi para retirá-lo do mercado. Não precisa fazer isso. Esse foi o meu
primeiro livro. Escrevi outro de contos e tenho um blog na internet também.
—
Que também são uma merda! Pesquisei o seu nome na internet. E li tudo o que
você escreveu. São todos uma porcaria! Uma babaquice!
O "Richard Branson" jogou o livro violentamente na minha cara e foi embora. Não deu
tempo de reagir e lhe dizer que eu não tive a sorte de encontrar
bons revisores e um editor que editasse o livro de verdade, podendo até
reescrever a história. Além das palavras me faltarem, não iria adiantar. Eu estava errado mesmo.
Fiquei
quieto com a minha humilhação. Ouvindo
apenas o garoto chato rir da minha cara e ser repreendido pela mãe, de algumas
idosas me olharem com pena e de um grupo de estudantes universitárias
cochichando sobre mim, algo sobre eu ser um retardado. O crítico do metrô tinha
condenado o meu livro em alto e bom som, para que todos os passageiros, pelo
menos no vagão onde eu estava, pudessem ouvir.
Já
chorando em silêncio, limpando as lágrimas com os meus olhos, levantei-me para desembarcar.
Chutei o livro pra longe antes de saltar do trem. Caminhando na estação, ainda
com a cabeça baixa de tanta vergonha, fui seguido pelos dois jovens mal
encarados, que me alcançaram.
Um
deles, o sem camisa, deu um tapinha nas minhas costas e disse, carregado de
gírias:
— Fica assim não, meu amigo. Tem mano que é o
maior caô. Só sabe humilhar os outros.
—
Mó playba esse cara aí. Acha que só porque é rico se acha no direito de detonar
todo mundo. E tu também, porque eu senti que tu ficou com medo da gente.
Completou o de cabelo pintado.
—
Desculpa.
—
Tá desculpado, mano!
O
sem camisa perguntou:
—
Posso ficar com o livro? Eu peguei o que você jogou lá no trem. Ih tem uma
dedicatória sua aqui. Não deve ser pra ele, pois você escreveu para uma mulher:
“Para Adriana, com carinho. Boa leitura”.
—
Pode.
—
Posso ficar com o teu celular também? Isso é um assalto. Anunciou o de camisa
de basquete, já apertando uma pistola prateada e fria contra a minha costela.
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