- Então, me diz uma coisa... Se eu morresse hoje, quantas pessoas
você acha que viriam no funeral?
- Humm – ela parou e ficou pensativa. Não o olhou com cara de
espanto por estar falando de uma coisa tão fúnebre como aquela. Mordeu o canto
do lábio inferior. Colocou a xícara de café sobre o pires, que já tinha café
derramado de quando ela o mexeu. – Vamos ver... Bom, os seus parentes aqui de
São Paulo provavelmente viriam, certo?
- É... Acho que sim. Continua.
- Os parentes de Minas nem pensar.
- Nem pensar mesmo. Pagar passagem, cinco, seis horas de ônibus... Rá,
rá...
- E tirando o Júlio, acho que ninguém mais ia ir não. 20 pessoas?
- Ué, e você não vai ir não?
- Não, eu não iria no seu funeral nem morta – disse pegando a xícara de café e
tomando mais um gole.
- Rá, rá, só você mesmo, Ana...
Américo levantou-se. Colocou a sua mochila que estava no chão sobre a cadeira e
disse a Ana:
- Toma conta da mochila? Eu vou no banheiro.
- Ok, pode ficar tranquilo.
Ela pegou a colherinha e mexeu o café mais um pouco. O açúcar sempre teimava em
ficar no fundo. Tomou mais um golinho para ver se agora estava doce o
suficiente. Olhou para trás e viu a atendente começando a fazer seu x-salada.
Sobre a mesa ao lado da chapa, o x-bacon de Américo já estava pronto. O queijo
derretia. Ela passou a língua sobre os dentes. Estava salivando.
A padaria estava um pouco vazia, apesar do horário de almoço. Não era uma das
melhores do bairro, mas por algum motivo ela gostava dali e sempre acabava sendo
a sua escolha.
Algumas pessoas entravam e iam direto para a fila do pão. Essa
parte da padaria sim, sempre movimentada, mas ali, na área perto do balcão, com
algumas mesas e cadeiras, onde ela e Américo estavam sentados não.
Na parede perto do caixa havia uma bandeira da Portuguesa.
Apesar de quase nunca assistir ou ler sobre futebol no jornal, ela procurava
saber como estava a Lusa. A família de origem portuguesa, agora tinha poucos
torcedores. Muito por conta da influência dos agregados da família, as novas
gerações torciam para o Corinthians, Palmeiras ou São Paulo. E mesmo ela não se
importando com futebol tanto assim, Ana achava isso triste.
Começou a ficar entediada. O que ocorria com frequência. Pegou a mochila de
Américo e a abriu. Tinha uma garrafa d'água pela metade, um envelope com
algumas contas, e alguns livros velhos. Nenhum a interessou.
Américo lia muito. Tinha um pequeno sebo próximo a Avenida
Guilherme Cothing, de uma portinha de aço de 2 metros de largura. Na verdade o
salãozinho era uma tripa de 2 e meio por 8. Herdara do avô o prédio e se antes
era um bar movimentado, hoje era um sebo que ficava às moscas. Se precisasse
pagar aluguel já teria falido anos atrás.
Mexeu mais a fundo na mochila e achou a carteira de Américo. Ele e essa mania
de andar com a carteira dentro da mochila e não no bolso, que nem pessoas
adultas. Sempre que ela falava alguma coisa sobre isso a ele, ele rebatia
dizendo que as mulheres andam com as carteiras nas bolsas e ninguém fala nada.
Ana dizia que então ela não era mulher.
Abriu a carteira. Tinha dois cartões de créditos, vários cartões de visitas dos
lugares mais aleatórios possíveis, duas notas de vinte e duas moedas de um
real. A atendente do pão a encarou ao vê-la mexendo na carteira alheia. Ana
simplesmente voltou fazer o que estava fazendo.
Junto com os cartões de visitas tinha um cartão branco e vermelho. Tirou-o e
viu a uma foto bem desfocada de Américo, seu nome, endereço e RG com os dizeres
no topo: Biblioteca de São Paulo. Ela estava colocando o cartão de volta quando
ouviu a sua voz.
- Eu pedi pra você cuidar da mochila, e não vasculhar ela.
Pegou a sua carteira, colocou-a no bolso e pôs a mochila de volta no chão.
- Vem cá, por que você tem um cartão da Biblioteca se você tem um sebo. Você
não vive praticamente numa mini biblioteca?
- Sim, é que lá tem os lançamentos.
- Ah, e você não pode perdê-los de jeito nenhum!
- Idiota – disse sorrindo. – Ainda não chegou os lanches?
- Nah. Mas o seu já tá pronto ali – apontou para a mesa atrás dela.
– Eu estou quase pulando o balcão pra ir pegar.
Ela voltou a olhar para o café.
- Nada de interessante na minha mochila?
- Ainda na mochila?
- Tá, eu paro.
- Não, nada. Você e esses livros chatos que ninguém conhece.
- Pois é, esse sou eu.
A atendente chegou com um prato em cada mão. Colocou-os na mesa e voltou para
buscar as bisnagas de ketchup, mostarda e maionese.
- Vocês querem pimenta?
- Sim, por favor – Ana disse meio agressiva.
A mulher se assustou um pouco, achando aquilo meio estranho. Virou as costas e
voltou com o vidro de pimenta.
- É que depois de ir pra Índia, não consigo comer nada sem pimenta.
A mulher abriu a boca e soltou um “Ah” silencioso. E sumiu de vista.
Ao olhar para Américo, viu-o com os dentes sarcásticos abertos.
- Para com isso.
Começaram a comer. Ana colocou apenas pimenta em seu x-salada, ao contrário de
Américo, que nunca punha ketchup ou qualquer coisa nem em lanche, nem em pizza.
Considerava o ato um sacrilégio.
- Vai, só um pouquinho pra você experimentar.
- Não. Não Ana, para com isso.
- Bobo. Não sabe o que tá perdendo.
Na metade dos lanches Ana parou de comer e olhou bem sério para ele.
- E... – hesitou.
Américo parou de comer.
- Humm?
- Ah, nada não – disse e deu mais uma mordida em seu x-salada.
Américo largou seu x-bacon sobre o guardanapo e olhou ao redor.
- Até que não tem tanta gente, né?
- É...
Ele tomou o último gole de seu café.
- E você, vai fazer o que hoje? – disse ele pondo a xícara de volta no pires.
- Ah, não sei não.
- Humm...
Pegou o x-bacon de novo para terminar a metade restante.
- E no meu... Você iria no meu funeral? – disse Ana abruptamente e o olhou
bastante séria.
- Você quer que eu vá?
- É... Acho que sim.
- Então pode deixar que eu vou.
Conto de
Lucas Beça
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