Alex aperta o cinto, força as costas contra a poltrona e crava os
dedos nos braços da mesma, fechando os olhos. Ele tem essa sensação
sempre, nesse momento em que o avião inicia o aquecimento dos motores se
preparando para decolar. O som aumenta e Alex sente ondas martelarem
seus ouvidos, então ele abre a boca para diminuir a pressão, seu coração
quase chegando à garganta e a barriga com uma pedra de gelo se
remexendo no estômago.
Ele agradece em uma prece silenciosa que o
avião esteja quase vazio, assim não tem alguém do seu lado para
presenciar esse momento de vergonha.
Assim o avião inicia sua
subida, lentamente, como um pássaro gigante erguendo com sofreguidão seu
próprio peso. Olhando para a janela, Alex vê a pista negra ficando cada
vez mais maleável, devido a velocidade. Não pode ver, mas pode sentir
as rodas da enorme aeronave perderem o contato com o chão, a terra se
afastando. Com o corpo agora começando a relaxar, ele olha pela janela.
As árvores, as casas, os prédios e os carros passando velozmente, se
tornando cada vez menores até se formarem a imagem que se vê no Google
Maps. Sua cidade.
Em 30 anos é a primeira vez que Alex sai de sua
cidade sem a intenção de voltar. Ele a conhece muito bem, melhor do que
conhece a si mesmo, sabe de seus segredos e seus problemas. Sempre a viu
acordar pela manhã e retirar os moradores de suas casas como remelas
dos olhos. A viu se arrastar pelas tardes, cansada, feia, louca para que
a noite logo chegasse, mas não com força de vontade suficiente para
apressá-la. E também às noites, com suas ruas sombrias, se prostituindo,
abrindo suas pernas para os moradores se entregarem à devassidão. Sua
cidade, mais que os próprios habitantes, é viva, suas ruas pulsam, seus
edifícios tem cheiro de carne e suas sarjetas secretam urina, sangue e
gozo.
O avião pende letargicamente para a direita, se dirigindo
para a luz fria das estrelas, que espetam o manto negro do céu. Os
motores se estabilizam e os ouvidos de Alex se adaptam ao murmúrio da
velocidade. Seus músculos são inundados por uma alívio momentâneo e ele
se dá conta de que seus dedos estão doendo, pois ainda os crava na
poltrona, então relaxa.
Após apertar o botão para chamar a
aeromoça e ela aparecer, pede um copo de whisky com gelo. Alex toma em
dois goles seguidos todo o whisky e sente já a sonolência, a união do
cansaço com uma noite mal dormida e o álcool. O tilintar dos cubos de
gelo como o sino que indica ser a hora de dormir. Sem se dar conta, sem
sequer notar mudança de ambiente, ele adentra a cortina onírica dos
sonhos.
Agora Alex tem 11 anos e está entrando com o Doug, seu
cachorro, por um buraco na base do muro, no cemitério que fica próximo a
primeira casa onde cresceu. Antes ele havia jogado por cima do muro uma
bola de futebol vermelha, mas a metade da metade de uma de verdade,
usada por muitas crianças no que chamavam de futebol mirim. Depois de
achar a bola, ele e Doug passam pelos túmulos, pisam na grama queimada,
aspiram o ar viciado de gente morta e lamentações. Sabem que a essa hora
o coveiro está almoçando e o cemitério é grande demais para ele, ali
onde estão, conseguir vê-los.
É a primeira vez que Alex traz Doug
até esse cemitério. Algumas árvores se erguem nas alamedas e algumas
delas inclusive dão frutos e o garoto não deixa de pensar que são frutos
dos mortos. Se pergunta se eles já não brotam mortos. Que gosto eles
teriam.
Doug se mantém curvado enquanto anda, o focinho rente ao chão, cheirando e bufando. Cheira cada lápide, e então mija em uma.
“Desculpe, senhora Brígida”, diz Alex para o túmulo.
O
cachorro sai mijando e cheirando, mijando e cheirando e Alex se
pergunta se ele conseguiria cortar a urina da mesma forma que Doug.
Então, se cansando de contemplar esse espetáculo escatológico, ele chama
Doug e lança a bola vermelha longe. A bola faz um arco no ar, mas…
Ela para no meio do caminho e volta.
Ela
simplesmente refaz o caminho de meio arco e volta para os pés de Alex. O
garoto cria fendas entre as sobrancelhas. Ele pega a bola e faz o mesmo
movimento. Doug mira na bola e corre, mas a perde de vista e fica doido
tentando achar onde ela caiu, porque ela faz a mesma coisa.
“Mas que…”, Alex fala e sua frase continua apenas em seu cérebro, “…merda é essa?”
A
bola retorna até os seus pés, enquanto Doug ainda tenta achá-la em meio
aos túmulos dos anos 60, 70, 80 e 90. Em vez de arremessar com a mão
novamente, Alex dá um chute na bola, que rola pela grama queimada, pela
grama verde, passa o meio fio e desliza pelos paralelepípedos da rua
ladeada de árvores, para parar antes que atravesse a rua e volta, como
se alguém a tivesse parado com o pé e chutado de volta, com a mesma
força que o garoto usou.
Alex tem apenas 11 anos, mas ele entende
um pouco das leis da física. Isso não é para acontecer sob nenhuma
circunstância. Quando a bola ainda está rolando para seus pés, ele chuta
ainda mais forte e ela dá um leve arco baixo no meio da rua, mas para
antes de tocar o tronco de uma árvore e volta em velocidade ainda maior,
no que seu instinto a para com a canela. A bola quica uma, duas três
vezes e para. Doug está novamente entretido no seu cheira e mija. Alex o
vê erguendo a pata traseira e dando um banho em Joaquim, amado filho,
querido marido, inigualável pai.
Coçando a cabeça e olhando para a
bola vermelha à sua frente, ele não sabe muito bem o que pensar sobre o
que está acontecendo. Como que querendo surpreender o “algo” que está
devolvendo a bola, ele faz uma, duas embaixadas e fingindo fazer uma
terceira ele chuta a bola com toda força, que atravessa a rua e as
árvores depois dela e some em meio a folhagem da quadra mais a frente.
Mas Alex, por alguma razão que nem ele entende, olha para o céu e vê a
bola vermelha formando um arco perfeito e vindo em sua direção. De muito
longe alguém parece ter alcançado a bola antes que ela caísse no chão e
deu um chute que conseguiu essa distância. Ele não pensa, apenas age.
Seu cérebro calcula a trajetória da bola sem se importar em explicar ao
garoto como faz isso e faz erguer uma mão que, parece até magia, agarra a
bola com força.
Então ele caminha até o muro do cemitério. Doug
está ainda cheirando e mijando nos túmulos. “Querida mãe”, “amado
marido”, “inesquecível filho”, as lápides vão sendo deixadas para trás.
Então Alex joga a bola por sobre muro. No muro, ela para e volta. Uma,
duas, três vezes. Quatro, cinco, seis vezes. Doug está sentado ao seu
lado vendo toda essa cena. Alex joga a bola pelo buraco por onde eles
entraram, mas ela sequer chega às ruínas do reboco mal feito, ela apenas
volta. Então numa última tentativa de jogar a bola por cima do muro, ao
ver ela voltar com a mesma força com que ele lançou, desiste e foge
daquele lugar com Doug pelo mesmo buraco em que entraram.
A
poltrona sacoleja com um pouco de violência e acorda Alex, que já ouve a
voz do piloto apaziguando os poucos passageiros. Lá fora passam nuvens
no céu negro que mais parecem brumas nos filmes de Tim Burton. Ao
lembrar do sonho, Alex se dá conta de que nunca contou essa experiência a
ninguém. Até porque, quem acreditaria em um garoto de 11 anos dizendo
que uma pequena bola simplesmente não queria sair do cemitério? No mesmo
ano o seu cachorro, Doug, morreu com problemas no fígado e junto com
ele essa história que só agora, tantos anos depois, seu cérebro fez
questão de lhe lembrar.
Com os olhos ainda sonolentos, ele olha
para o lado, para as outras poltronas vazias e nota uma coisa curiosa.
Duas perninhas gordinhas com pezinhos calçados em sandálias cor de
creme, balançam. E apenas eles estão à mostra, pois o restante do
pequeno corpo está afundado na poltrona. Alex sorri, mas antes de voltar
a recostar-se e retomar o sono, ele vê uma cabeça de cabelos muito
negros e encaracolados presos em maria-chiquinhas. A garotinha o olha
curiosa, com seus enormes olhos, endireita o corpo para que possa vê-lo
melhor de frente e se mantém assim. Alex sorri e dá uma tchau com sua
mão, mas não recebe resposta, não recebe qualquer reação e temendo que
os pais dela estivessem por perto e pensassem mal dele, apenas se
recosta na poltrona.
Ao inclinar um pouco a cabeça em uma posição
mais confortável, ele percebe que a garotinha continua olhando para ele.
Impassível, metódica. Ele inclina a cabeça na direção da visão dela e
dá um sorriso, mas novamente, sem reação. A garotinha mal pisca, mas
Alex já passou por essa situação várias vezes. Não apenas com pessoas
que tem algo diferente no rosto, mas pessoas padrões mesmo, algumas
crianças tem uma mania muito feia de ficar encarando. E é justamente o
que está acontecendo agora e Alex acha isso muito irritante. Mas ele não
sabe se os pais estão próximos e também não quer criar confusão em um
avião. Então vira a cabeça para o outro lado e, após um suspiro
profundo, fecha os olhos.
Só que, claro, tem coisas que nem se
fecharmos os olhos sairão da nossa frente, pois se imprimem no cérebro. E
agora a agonia que ele sente é por não saber se ela ainda está
encarando ele. Olha para o relógio no pulso e vê que ainda tem uma hora
de viagem. Os olhos da menina parecem cutucar suas costas, o hálito dela
parece soprar na sua nuca. Claro que não é o que está acontecendo, mas a
ansiedade o faz sentir essas coisas. Assim, rendendo-se às próprias
ilusões, ele vira-se e… a menina não está lá.
Como tem pouca
gente no avião, isso aqui parece um cemitério. Cada poltrona bem que
poderia ser uma lápide onde Doug iria cheirar e mijar. A bem da verdade,
se você pensar bem, cada poltrona pode ser um túmulo em potencial,
porque se essa belezinha de toneladas perder suas funções normais e se
lançar de nariz para o chão, estamos todos mortos.
Alex
espanta-se com os próprios pensamentos. Fica com uma mão erguida e a
boca entreaberta como se estivesse criticando a si mesmo diante de tais
ideias. Decide apertar o botão e chamar a aeromoça. Da última vez o
whisky ajudou. Certo que o sonho foi bem mais longo que o tempo de seu
cochilo, mas dessa vez poderia dar certo.
Quem aparece é um jovem negro de traços indígenas e um sorriso ofuscante. Ele desliga o sinal de chamada e fala:
“Pois não, senhor?”
“Whisky duplo, por favor. Sem gelo. E um copo de água com gás.”
“Pois não, senhor.”
Quando
o jovem sai Alex olha para a janela em uma tentativa fracassada de ver a
lua cheia. Recosta-se novamente na poltrona e tem um pulo, um susto que
o faz colocar a mão no coração e inchar uma bola de carne maciça na sua
garganta. É a garotinha. Ela está sentada uma poltrona depois dele,
seus olhinhos curiosos o encarando novamente e a boquinha demonstrando
que por trás dela seus dentes podem estar rangendo, talvez reminiscência
de bruxismo, Alex pensa.
O vestido tem cores azuis e douradas,
mas com uma impressão de desbotamento, como se fosse uma roupa muito
usada, muito lavada, o que em um primeiro momento intrigou Alex, mas ele
decidiu que tinha coisas mais importantes a se notar. Relaxando, mas
com o impacto ainda no corpo, ele sorri sem graça e tenta se comunicar.
“Tudo bem? Onde estão seus pais?”
Ela não responde, apenas olha para os próprios pezinhos e começa a balançá-los.
Um
desconforto recai sobre Alex. Tem uma parede de tensão entre ele e a
garotinha que ele não consegue explicar. Ela para de balançar as pernas e
olha para ele, em seguida aponta para a janela, fazendo-o virar o
pescoço com tal rapidez que se ouve o estalar de uma vértebra. Ele, a
princípio não entendeu o que ela queria lhe mostrar, mas então conseguiu
ver, se retorcendo um pouco, uma parte da lua cheia, aquela luz
prateada dançando no céu.
Quando virou de volta, a menina já não
estava mais na poltrona. Ótimo, enganado por uma criança, pensou ele.
Abriu o cinto e se esticou pelas poltronas para olhar o corredor. Do
lado esquerdo não tinha nada e do outro o jovem negro de traços
indígenas se aproximava com a bandeja.
“Desculpe a demora, senhor… eu…”
Alex
se apressou em acalmar o jovem, já que ele deu a impressão de que
estava impaciente, mas também não mencionou a garota. Agradeceu e
insistiu em que o jovem entendesse que ele não o estava procurando.
Bebeu a água com gás de um gole só e recostou-se, confuso com as
próprias ideias. Segurando o copo de whisky diante do rosto, uma
nebulosa de pensamentos o acometeu, todos dessincronizados, sem
cronologia, alguns até suspeitos de que fossem criações de sua própria
cabeça e não reais. Esse turbilhão parou na questão de se realmente os
pensamentos teriam tal poder sobre o corpo, pois agora ele sente sua
bexiga implorar para ser esvaziada.
Enquanto segue no corredor
até o banheiro, poucos assentos estão ocupados e as pessoas dormem, ou
estão ouvindo música em fones, ou assistindo a algum filme. Tudo é
silêncio. Como é seu costume, ele abre a porta do banheiro e entra de
costas. Tranca a porta e ao se virar três linhas verticais se formam
entre suas sobrancelhas. Ali, acima do vaso sanitário, letras escritas
em vermelho, que ele inicialmente pensa ser sangue, mas logo em seguida
conclui que é batom, formam duas palavras. Um nome, para ser mais exato.
Lílian Alves. E é só isso. Não que esse seja um lugar costumeiro para
isso, mas Alex lembra de banheiros públicos, onde esses nomes escritos
nas portas e paredes vem acompanhados de números de telefone, de
prostitutas ou alguém com fetiche. Mas no banheiro de um avião?
Ele
ergue a tampa do vaso e urina, todo o seu corpo parecendo esvaziar, sua
coluna se envergando para trás, aliviando a bexiga e relaxado os
músculos. É depois de lavar as mãos e se aproximar para abrir a porta
que ele vê, escrito com o mesmo material, mas com um acréscimo, bem na
altura de sua barriga, na porta: “Meu nome é Lílian Alves”.
A
sensação que lhe permeia o corpo desde o sonho no cemitério, passando
pelas aparições da garotinha agora se manifestam com mais força. Seu
coração parece fones de ouvido pulsando rápido nas suas orelhas. Quando
volta para o corredor percebe que a garotinha está saindo de perto de
seu assento. Ela não olha para trás, mesmo assim sai correndo, como que
com medo de ser vista, mas não com tanta preocupação para ser cuidadosa.
A
língua de Alex pede a bebida destilada. Quando ele chega até seu
assento uma enorme mão invisível bate em seu peito. Seus olhos não
conseguem acreditar no que vê. Ali, onde antes ele estava sentado, uma
bola vermelha, mas a metade da metade de uma de verdade, usada por
muitas crianças no que chamavam de futebol mirim. Ele não podia afirmar
ser a mesma bola, a do cemitério, pois ela está bastante gasta, mas até
que faria sentido, já que isso foi há 20 anos.
Alex pega a bola,
aperta, como se esse ato o ajudasse a retomar a realidade. Ele não
senta, apenas aperta o botão para chamar alguém. A garotinha deixara
aquela bola ali e agora ele queria saber a razão.
“Pois não, senhor?”, uma mulher esguia e de mãos aracnídeas surge ao lado de Alex com o sorriso das aeromoças.
“Ahn,
por favor, você pode me fazer a gentileza de me dizer quem são os pais
de uma garotinha que estava por aqui? Ela tem os cabelos bem negros e
encaracolados e está de maria-chiquinhas.”
Ainda mantendo o sorriso e com uma formalidade fabricada em madeira e aço, a aeromoça responde:
“Não há nenhuma criança a bordo, senhor.”
Calafrios
se erguem da planta dos pés de Alex. Ele não quer ser indelicado, mas
também não quer acreditar no que está acontecendo, e mesmo já tendo
ouvido sua voz na própria cabeça antes de sair pela boca e já achando-a
ridícula, ele pergunta:
“Tem certeza?”
“Absoluta, senhor”, o
sorriso da mulher se encolhe um pouco ao olhar a bola vermelha na mão
de Alex e numa expressão de preocupação, mas muito bem fabricada, ela
pergunta “Algum problema, senhor?”
Alex balança a cabeça,
negativamente. Pede desculpas, senta-se com a bola na mão. Na outra
segura o copo de whisky e o bebe em um fôlego só. E, como vê que a
mulher ainda está ali do seu lado, pede mais um.
Olhando para o
relógio ele se surpreendeu em quanto o tempo passou rápido e nesse mesmo
instante o piloto anuncia que estão sobrevoando os céus da cidade onde o
voo fará a escala. É nessa hora que Alex toma sua decisão, toma mais
whisky que lhe trouxeram, toma fôlegos profundos e toma consciência de
que alguma coisa muito estranha está ligada à sua própria vida.
Poucos
minutos depois Alex está desembarcando do avião para a escala, na qual
esperará apenas uma hora para o próximo voo. Ou ao menos era isso que
estava planejado. Só que o que ele faz é ir no terminal e solicitar uma
passagem de volta. Para sua sorte o voo sai em uma hora e nesse momento
na vida de Alex, mesmo consciente de que o tempo adquire elasticidade e
que ele costuma demorar muito mais quando precisamos que ele passe logo,
ele vê todas essas leis e teorias caírem dos seus lados. Em menos de
duas horas, que não lhe pareceram longas, talvez devido ao seu estado
mental, ele estava de volta ao aeroporto de sua cidade natal. Pegou um
uber que o levou até a as proximidades da casa onde nasceu. Preferiu ir a
pé o restante da viagem porque mesmo com sua cabeça cheia, ele não
gostaria de dizer para o motorista parar em frente ao cemitério.
São
9 horas da manhã e Alex atravessa os portões do cemitério onde há 20
anos sua bola vermelha quis fazer morada. A mesma bola que entra com ele
agora, bem segura em sua mão.
Mesmo sendo um lugar de morte, a
vida é celebrada onde quer que você olhe. Nas copas frondosas e verdes
das árvores, nas rosas coloridas nos túmulos, no canto dos pássaros.
Alex
caminha calmamente e o cemitério não está cheio. Caminha devagar porque
todo o seu corpo pesa. Seus pensamentos e os acontecimentos das últimas
horas parecem estar orbitando seu corpo, criando ramificações de si
mesmo que lhe deixam lento, como se estivesse se movendo em meio a uma
névoa densa. Em uma rua ele olha as lápides. Passa ao lado dos anos 80,
anos 90. Estimada filha, querida esposa. Então vê um sobrenome Alves. E
mais à frente mais um. Mas não encontra nenhuma Lílian. Tem uma Letícia e
um Luan. Serão da mesma família ou pura coincidência?
Leila.
Leila Alves. Essa é a última dos Alves aqui presentes. E a névoa densa
ao redor de Alex agora parece se desvanecer até ele se dar conta d que
tem uma pessoa em frente ao túmulo de Leila. Uma mulher, de joelhos
limpando a poeira da lápide com um pincel, organizando algumas rosas e
velas. Alex se espanta de não ter visto a mulher antes. Até que a mulher
o vê.
“Pois não?”
Alex fica sem jeito, mas ou ele esclarece logo as coisas ou não vai conseguir viver bem depois disso.
“Desculpe, eu sei que vai parecer estranho…”
A
mulher tem os olhos úmidos, nas maçãs de seu rosto lágrimas ressecadas
formaram sulcos, mas que não tiraram sua beleza. Seus cabelos são
extremamente negros e encaracolados. Alex engole em seco ao perceber que
a mulher é completa atenção a ele, mesmo estando onde está. Apontando
para o túmulo ele pergunta:
“É sua filha?”
“Ah não, é minha
irmã. Ela morreu há 20 anos, como pode ver na placa.” A mulher voltou a
olhar para ele. “Ela morreu…” e sua voz ficou presa em sua garganta
enquanto seus olhos estavam presos na mão de Alex. “Onde você…?”, disse
apontando para a bola vermelha.
Alex estendeu a mão e ia falar,
mas a mulher cobriu novamente seu rosto com uma nova enxurrada de de
lágrimas, em tal profusão que eram acompanhadas de soluços que o
deixaram preocupado. Com certo esforço ele perguntou:
“A senhora conhece essa bola?”
“Sim”,
um sorriso sincero se abriu em meio aos prantos. “No mesmo ano que
Leila morreu e voltamos pra visitar seu túmulo eu encontrei essa bola
aqui e levei pra casa.”
Um certo alívio começou a percorrer o
corpo de Alex. Então era isso. A irmã dela queria que ele devolvesse a
bola, que, de certa forma ela roubara dele. Alex, mesmo emocionado,
sorriu por dentro.
“Então você é a Lílian”, falou Alex soltando um suspiro.
A
mulher o olhou com um pavor vívido nos olhos. As lágrimas já
diminuíram, mas sua boca agora tinha um formato indiscernível. Alex,
intrigado e inconsciente, deixou seu corpo se mover um pouco para trás.
“Não…”,
a mulher disse. “Essa bola aqui eu dei pra minha filha quando nasceu.
Eu vim hoje avisar a minha irmã que Lílian, a sobrinha dela, morreu
ontem à noite.”
Hemerson Miranda
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