Folhas Secas


O som que se ouve é quebradiço, porque estamos deitados sobre um enorme lençol de folhas secas, amareladas, cinzentas e acobreadas. Cada movimento que façamos é de uma delas se quebrando, uma espécie de reflexo da vida, onde cada movimento é alguma coisa se quebrando, se destruindo. O cheiro é de madeira velha, mas se eu respirar bem fundo posso sentir o odor adocicado das folhas mais abaixo, úmidas e podres. Eu sempre achei interessante o fato de as coisas apodrecidas terem essa doçura aromática em seus núcleos.

As últimas palavras dela foram “eu não sei”. Não é uma frase que entre para os anais da história como única ou se torne famosa, mas pode ser cheia de significado filosófico se alguém perguntar qual a última coisa que ela disse, isso se não souber qual foi a pergunta feita antes dessa resposta. Minha pergunta. Nada filosófica.
A essa hora o sol está no seu auge, mas a enorme copa dessa árvore é tão fechada que os raios não conseguem perpassar a folhagem e nós apelidamos esse lugar de Buraco Negro, pois “suga” até a luz do sol. Esse foi nosso lugar desde que tínhamos 12 anos, quando minha família se mudou para essa cidade e, enquanto mamãe e papai desempacotavam as coisas, eles disseram para eu dar uma volta e conhecer a vizinhança, mas eu sabia que eles me queriam longe, já que eu, atrapalhado como sempre fui, ajudaria mais se não ajudasse eles. Quando me aproximei dessa árvore naquele dia, fiquei estupefato por sua imponência, achei que era a maior árvore que já tinha visto, mas logo o que tomou minha atenção foi a garota de vestido florido que estava deitada de bruços sobre as folhas, perto do tronco rugoso. Fui me aproximando e as folhas sob meus passos me denunciaram. Ela virou bruscamente a cabeça na minha direção, o que me causou um breve susto, mas logo arregalou seus olhos junto de um sorriso de dois dentes faltando, e falou com urgência:
“Rápido, vem cá! Me ajuda aqui!”
Fiquei de joelhos ao seu lado e no que ela estava concentrada era em uma folha de caderno em branco. O que havia sobre a folha era uma espécie de genocídio macabro. Corpos mutilados, cabeças decepadas e espalhadas, abdômens separados dos troncos. Formigas de várias cores sucumbiram à crueldade daquela garota e agora estavam em sua mesa de operações para sofrerem algum tipo de experiência.
Eu sorri.
“Pega. Segura essa aqui que eu vou colar a cabeça de outra nesse corpo.”
E ela pegou cola branca do bolso de seu vestido e começou a operação com suas mãos ágeis e cirúrgicas, auxiliada por mim, seu enfermeiro. A partir desse dia Mariana e eu nos tornamos melhores amigos.
O caso é que nenhuma boa história começa com alguém feliz, a não ser que logo em seguida de um sorriso venha alguma tragédia. Ninguém quer ouvir histórias de pessoas que são felizes para sempre, pois são um tédio, a não ser que alguma desgraça ocorra em seguida, pois nós amamos as coisas tristes, as coisas que se destroem e morrem e essa história não poderia ser diferente.
Tudo começou quando nós completamos 18 anos. A idade de ouro da maioria dos jovens naquela época, iludidos de que as coisas seriam mais fáceis a partir de agora. Naqueles dias a nossa amizade continuava se fortificando a cada encontro, a cada momento que compartilhávamos e era difícil pensar em algum acontecimento em que nos não estávamos juntos. Muito provavelmente essa amizade se tornaria algo mais, uma coisa que nós postergávamos para que não se estragasse o que sentíamos um pelo outro. Se tivesse durado tempo suficiente, talvez nós estivéssemos casados hoje.
Naquele dia em que nós comemoramos nosso aniversário, ela caiu. Foi uma queda considerável, principalmente porque ela caiu de bunda de uma altura de quase dois metros. Claro, ambos estávamos bêbados e não vimos o buraco ao lado da calçada, que terminava em um concreto usado para sabe lá o quê. Com o sangue quente, como dizia minha avó, ela levantou da queda e não sentiu nada, disse, mesmo massageando a bunda várias vezes. O que fizemos foi o que qualquer pessoa sã faria: rimos.
Então duas semanas depois sua coxa começou a doer. A princípio, ela disse, era mais um incômodo que uma dor propriamente dita. Então os dias seguiram e se tornou uma dor mais forte. Segundo ela, era como se a dor estivesse dentro do osso de sua coxa. Quando o raio da dor começou a se expandir, ela foi no posto de saúde e tomou uma injeção que doeu tanto quanto a coxa, mas ao menos fez a dor passar.
Mas não durou muito.
Após várias injeções, a dor persistia, teimosa, agora rindo da injeção que dizia curá-la. Como um exército se aproximando, como um tsunami calmamente se erguendo, para destruir tudo à sua frente, essa dor foi aumentando gradativamente, até que a coxa, sua magra coxa, era a única parte de seu corpo de que ela tinha consciência.
Meses depois, agora com uma dor que a impossibilitava até de andar normalmente, ela foi internada e fez uma biopsia. O resultado mostrava que ela possuía câncer, um tumor maligno, uma criatura indiferente que se alimentava de seu corpo e não saciaria sua fome até devorá-la por completo.
Sorrisos tristes, mãos dadas, agora ela vivia no hospital, sem cabelos, de camisola, magra e pálida como o modelo de um futuro cadáver. Mariana perdeu todo o brilho de sua vida, passando a ter a cor esmaecida da desesperança, da tristeza, da angústia. Nossas conversas, comigo sentado ao lado de sua cama, eram assuntos que morriam em um sorriso insustentável.
Metástase. Esse nome se tornou uma assombração. A criatura que a consumia por dentro se proliferava, seguia sua marcha de destruição. Enraizada no mais profundo do corpo de minha amiga, o tumor se expandia, criando ramificações, conquistando território, fincando sua bandeira em locais antes pertencentes a uma jovem cujo objetivo na vida era ser pianista. Os dedos magros já não possuíam força para sequer se erguer e dedilhar uma nota.
Naquela tarde eu cheguei com uma caixa de chocolate escondida dentro da calça, pois os enfermeiros não me permitiam trazer doces. Ela sorriu quando me viu tirar a caixa de entre minhas partes e eu garanti que não estava fedendo, o que a fez gargalhar.
Sentada em uma cadeira de rodas, ela mordiscou um bombom, mas logo ele foi salgado por suas lágrimas. Ela chorou compulsivamente e eu não podia fazer nada, absolutamente nada. A minha incapacidade brigava em tamanho com a minha tristeza. Ela olhou para mim, a minha imagem distorcida pelos olhos lacrimados, e falou:
“Tá piorando… Tá crescendo. A minha vagina…”
Costumávamos falar palavrões corriqueiramente, mas nossas palavras se tornaram bastante sérias devido a seu estado. Inconscientemente, nós dávamos uma espécie de reverência diante da situação. O que ela queria me dizer era que o tumor estava tão grande que agora a sua vagina, seu órgão sexual interno, estava estufando. Nas palavras dela, “saindo pra fora”. Ela quis levantar a camisola para que eu pudesse ver, mas eu a impedi. Uma bola maciça e metálica se formou em minha garganta e eu prendi o choro.
“… eu vou morrer?”
O que se diz em uma hora dessas? A mente parece ser preparada para a negação, então claro que minha resposta foi um não, apesar de saber com todas as fibras do meu corpo e do dela que isso era uma grande mas necessária mentira. A realidade, por mais que nos esforcemos, nunca aceita negociações.
“Você pode me levar pro Buraco Negro?”
E foi assim que acabamos aqui. Com manobras dignas de Hollywood, conseguimos fugir do hospital. Eu a ergui nos braços da cadeira de rodas e a deitei no tapete de folhas secas. Seu olhar era anuviado pelas medicações, seus movimentos lentos e frágeis. Ela entrelaçou os dedos nos meus, olhando para a copa da grande árvore e sorriu, após um longo suspiro.
“Lembra das sessões de filmes?”
E com essa frase minha mente viajou ao passado, quando passávamos mais de uma hora só na locadora, escolhendo os VHS que alugaríamos e passaríamos tarde e noite assistindo. A gente assistia de tudo, tudo mesmo, incluindo os filmes mais ruins que de tão horríveis acabavam sendo bons. Mas havia um filme que sempre vinha junto dos outros, não importava o dia, mesmo que não desse tempo de assistir. Era o Show de Truman. Nós assistimos esse filme 27 vezes e em todas as vezes, quando ele subia a escada para se despedir do público, nós nos emocionávamos.
Diante dessas lembranças eu também sorri e falei:
“Sabe o que é estranho, Mari? A gente assistiu o Show de Truman milhares de vezes, mas eu nunca consigo lembrar o nome da esposa dele. Você sabe o nome dela?”
E então meus ouvidos foram invadidos por suas últimas palavras. Assim que sua voz morreu, eu senti sua mão tremer na minha, seu corpo inteiro tremeu sobre as folhas quebradiças. A sua outra mão estava erguida, fraca, na direção da copa negra da árvore. Então sua mão, seu braço, dois mundos, o dela e o meu, caíram naquele lugar.

Nos dias atuais eu já fui casado e já me separei, mas tenho uma filha. Ela já tem 12 anos e hoje é o meu fim de semana para ficar com ela. Sua cabeça está recostada no braço do sofá e suas pernas se esticam sobre as minhas. Na TV está passando O Show de Truman.
“Olha papai! O nome da esposa do Truman é igual o meu!”
Meu corpo inteiro dá um sobressalto e uma tristeza amarga se liquefaz na minha garganta. Minha filha está olhando para mim com seus grandes olhos e um sorriso de dois dentes faltando. Seu dedinho gordo aponta para a TV.
Engolindo a negra tristeza e com os olhos ardendo pelas lágrimas que se aproximam, eu passo a mão na cabeça loira dela e digo:
“É, Meryl. Ela tem o seu nome.”

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