OBRIGADO, MIGUEL! - ESSE POVO HÁ RECEBIDO A BENÇÃO DE TER UM PRESIDENTE DIGNO DE TODA ADORAÇÃO

de Miguel Angel (in memoriam)

Despacho encontrado entre os pertences de Lord Russell enviado por Edward Thorntom
sobre a situação do Paraguai


Assunção,
Setembro 6 de 1864.
Confidencial


Senhor:

É lamentável observar, durante minha breve estada nesta cidade, que o Governo da República não tem melhorado sob a autoridade de seu atual magistrado. Assim como foi despótico durante a presidência do pai, tem-se voltado certamente mais tirânico desde que seu filho Solano López chegou ao poder. Pratica-se o mesmo sistema inquisitorial na sua mais ampla extensão. O número de espiões é imenso; na verdade não existe um individuo na República, a quem não se lhe ensine que, por dever à sua pátria e pela obediência devida às autoridades, tem que dar constantemente parte fidedigna dos atos privados e das palavras de seus vizinhos. As famílias estão bem inteiradas de que seus serventes fazem constantes visitas ao Departamento de Polícia com o propósito de relatar tudo o que acontece em suas casas, e sabem que alguma admoestação de parte delas, terá como conseqüência imediata, falsas denúncias que poderiam ameaçar sua liberdade e expô-las aos castigos mais severos. Nem sequer na presença dos filhos se atrevem a expressar seus pensamentos. A cidade está cheia de policiais e espionam cada casa, e até interrogam, no meio da noite, qualquer pedestre solitário, a respeito de quem é de onde vem e aonde vai. Perseguem qualquer pessoa suspeita, e até na porta do quarto do clube onde eu morava, se postava um indivíduo, vestido com as roupas comuns do país, que, segundo me disse um amigo paraguaio, tratava-se de um espião que vigiava a todos os que vinham me visitar e, naturalmente, dava parte de todos eles.

As prisões estão cheias dos chamados presos políticos, muitos dos quais pertencem às melhores famílias; tem entre eles quatro sacerdotes que foram aprisionados na época da eleição do Presidente, acusados de ter tentado levantar uma revolução.

(...)

O sistema de sua Excelência parece ser o de deprimir e humilhar; se algum sujeito demonstra um pouco mais de talento, liberalidade ou independência de caráter acha-se logo algum pretexto mesquinho para jogá-lo na prisão; se há oportunidade para enriquecer, estão sempre à mão os meios para empobrecer-lhe. Com exceção da família do Presidente, ninguém possui nem sequer uma fortuna moderada, e um de seus próprios irmãos, que há incorrido em seu desagrado, intenta em vão livrar-se da pobreza sob qualquer sacrifício.

Não pode haver nenhuma justiça onde os juizes não são pagos e são instrumentos servis do Presidente, onde sua Excelência revisa cada sentença, e ainda depois de ditada, às vezes a revoga.

Considerando tudo, os impostos são enormemente altos.
(rasurado)

Os direitos de exportação são dos 10 aos 20 por cento sobre o valor. Impõe-se um dizimo em espécie sobre todo gênero de produto agrícola ou animal. Todo comerciante, pequeno traficante ou manufatureiro, deve pagar uma pesada patente, mas os impostos que gravitam muito pesadamente sobre as classes mais pobres, são o trabalho forçado, o uso de carretas e animais para o serviço público, sem remuneração, e a apropriação de gado e outros víveres para o exército, sem pagamento.

(...)

 A razão dada para esta medida é a atitude hostil do Brasil com a República do Uruguai, mas eu suspeito que o motivo principal é o temor constante que tem o Presidente de que estoure uma revolução em sua própria Pátria. Esses recrutas não recebem pagos, e o gado para alimentar-lhes se toma dos proprietários sem pago, e os couros, que não se devolvem, são curtidos pelos soldados.

O aniversário do Presidente foi no dia 24 de julho último. Desde então a população de Assunção e de outras muitas vilas da República foram obrigados a dedicar-lhe banquetes, bailes e outras festas, e quer-se fazer crer ao corpo diplomático e a outros estrangeiros que elas são manifestações espontâneas, mostrando o entusiasmo do povo em favor do Presidente. Faz poucos dias celebrou-se uma missa a expensas das senhoras da cidade, pela prosperidade e bem-estar do Presidente, e na mesma noite se deu um baile em honra de sua Excelência. Na missa, o bispo disse um sermão quase raiando a blasfêmia, pela quantidade de elogios e adulações amontoados sobre o Presidente,
(rasurado)

Para sufragar os gastos de estas festas, se exigiu a contribuição de todas as classes [sociais], não se esqueceu nem ao menos dos presos políticos; (ilegível) Ergueu-se um tablado em uma das praças públicas, onde se fez dançar as classes baixas, e se postaram sentinelas para impedir que as mulheres se retirassem, mesmo que estivessem cansadas. Uma infeliz que observou quão duro era ver-se forçada a bailar quando se padecia fome, foi levada ao Departamento de Policia e castigada com cem golpes (açoites) dados com um pau, e muitas outras foram desterradas ao interior por culpas análogas.

Como o Presidente está ansioso de que seus concidadãos não se agitem em questões políticas, se cuida pouco de caírem em vícios de todo gênero, e é extremada a imoralidade que permeia o país. Sua Excelência mesmo tem dado o mau exemplo; aparte de uma quantidade de suas concidadãs que tem cedido a seus desejos, provavelmente com a maior repugnância, existe uma inglesa, que se chama a si mesma Mrs. Lynch, que o seguiu desde Paris em 1854. Desde então esta mulher tem vivido em Assunção, em meio, relativamente, ao maior esplendor.

Com certeza ela possui grande influencia sobre o Presidente, e suas ordens, expedidas imperiosamente, são obedecidas com a mesma presteza e com igual servilismo que as do próprio Presidente. Foi ela a que iniciou e organizou as festas a que é aludido. (ilegível) Apenas necessito dizer a sua Senhoria com quão fundo e amargo ódio a olham as senhoras nativas.

(...)

Tenho uma opinião desfavorável do conhecimento militar do oficial paraguaio, ou da destreza do soldado no manejo das armas de fogo, mas ambos possuem, seguramente, uma boa qualidade: a obediência cega.

Diante da descrição imperfeita da situação política desta República com que acabo de aborrecer a sua Senhoria, caberia supor que semelhante tirania, como não titubeio em qualificá-la, não poderia durar muito. Não obstante, penso que nenhum cambio seja iminente. A grande maioria do povo é suficientemente ignorante como para crer que não tem país algum tão poderoso ou tão feliz como o Paraguai, e que esse povo há recebido a benção de ter um Presidente digno de toda adoração.
(rasurado)

Haveria três ou quatro mil que sabem mais e para quem a vida sob tal governo é uma carga. Entre eles a falta de confiança recíproca é tão grande, que não parece possível nenhuma combinação, e eu não acredito que exista um homem que se atreva a confiar seus sentimentos, com respeito ao governo, a seu irmão ou a seu amigo mais querido, por temor de ser denunciado... (ilegível)

É considerado necessário assinalar este despacho como "Confidencial", pois sua Senhoria pode imaginar facilmente que sua publicação faria que Assunção não fosse uma residência plácida para mim, ou ainda para outros ministros ingleses, e a possibilidade de ser útil a meus compatriotas, ante o governo paraguaio, diminuiria muito se seu conteúdo fosse conhecido.

Tenho a honra de ser, com o mais alto respeito,

Meu senhor.

De sua Senhoria o mais obediente Humilde Servidor
Edwd. Thortom.


Muito Honorável

Conde Russell K. G. 
1864 Assunção, Setembro 6. 
Mr.Thorton N 76
 Confidencial.

Recdo. Nov. 6.
Por R. M. S. Mersey.
Situação actual del Paraguay.
Tirania ejercida por el
Presidente sobre los Ciudadanos
(F. O. 63.110. Nº 76).

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Extraído de "Los origenes de la guerra de la Triple Alianza", Pelham Horton Box.

Fragmento do romance "Sobre Moscas e Aranhas de Guerra" de Dalton Reis

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