DIFÍCIL TALENTO - 5a Parte (Final)

Conto de Gustavo do Carmo

Uma semana depois, o caça-talentos ligou de sua corretora avisando que agendou o teste na terça-feira seguinte, no início da tarde. Ambos pediram folga extra aos seus respectivos superiores prometendo compensação. Breno trabalharia duas madrugadas seguidas, algo que não faz. Agostino abriria mão de um dia de férias.

Foram ao clube. O mesmo onde levou Michelle, filha de Eliélton, para fazer o teste do vôlei. Breno e Agostino encontraram com o primo deste segundo: Severino. Este trabalha no clube e também ajudou a agendar o teste com a menina, mas não havia ido trabalhar naquele dia.

Desta vez, apareceu e fez questão de conhecer a nova promessa do primo. Queria conferir de perto se o primo desta vez conseguiria emplacar algum talento. Apresentou as instalações de futebol a Agostino e seu, digamos, pupilo. Os dois também conheceram o treinador responsável pela peneira.

Jamílson era um ex-jogador que encerrou a carreira precocemente e formou-se em educação física. Era mais negro e tinha uma barriga de chope que o aspirante não tinha. A única coisa em que combinavam era a cabeça praticamente nua de cabelos.

O técnico convida Breno para ir ao vestiário trocar de roupa e iniciar o teste. Antes de se afastar do seu (quem sabe?) provável descobridor, ele lhe agradece pela oportunidade e recebe em troca um boa sorte.

Acompanhando a cena, Severino, seu primo, o leva para um canto da entrada do campo e adverte:

— Vem cá? Tem certeza que esse cara aí é bom, né?
— Claro que é.
— É bom ser mesmo. Pois se ele sair mal no teste eu nunca mais te deixo trazer gente para descobrir talento, hein? Levei um baita esporro do coordenador do clube quando te deixei trazer aquela menina pro vôlei. Se esse Breno não der certo eu poderei ser demitido.
— Pode ficar tranqüilo que o Breno vai emplacar. Não precisa se preocupar.

E Severino realmente nem precisou se preocupar. Breno se saiu muito bem no teste. Das vinte bolas que recebeu de Jamilson dominou todas e acertou quinze na rede, das cinco que errou, quatro bateram na trave e isolou apenas uma.

Houve uma alegria coletiva naquele clube. Sorrisos por todos os lados, mas cada um com um significado diferente. Expectativa da parte de Jamílson, que teve a esperança de descobrir mais um reforço para o time do qual é auxiliar técnico. Felicidade de Breno, que estava realizando, sim, o sonho de ser jogador profissional, que tinha desde menino, ao contrário do que havia dito antes, mas as dificuldades da vida o levaram para ser motorista de ônibus. Alívio para Severino que vê finalmente o primo emplacar algum talento e não sujar o seu nome como funcionário do clube. E Agostino, claro, ia conseguir o que tanto queria desde que chegou ao Rio: revelar um talento.

Depois do teste técnico, Breno foi convidado para participar do coletivo com o elenco profissional, atuando no time dos reservas. Agostino queria assistir mas precisou ir para o trabalho, deixando o clube, prometendo voltar no dia seguinte para confirmar se ele foi ou não aprovado e, talvez, ver o primeiro talento que conseguiu indicar assinar contrato e ganhar uma comissão. Severino também precisou voltar para a sua função de contínuo.

Depois do trabalho, Agostino ligou para Breno, perguntando se ele foi aprovado.

— E aí cara? Como foi no coletivo? Foi contratado?
— Passei no teste. Joguei no time profissional reserva. Ganhamos o coletivo, fiz três gols de cabeça. Mas ainda vou fazer os exames médicos para assinar o contrato.
— Então você já está contratado. Com certeza vai passar.
— Quem sabe? Mas estou um pouco pessimista. Eu tive um problema cardíaco quando criança. Não sei se vão me aprovar.
— Claro que vão. Você vai tirar isso de letra. Vamos sair para comemorar?
— Olha, não dá. Além de não querer comemorar antes da hora eu vou fazer plantão hoje na empresa.
— Tudo bem. A gente combina outro dia então.
— Ok. É até bom a gente discutir isso. A comissão que você quer, entre outras coisas. De qualquer forma quero te agradecer por tudo que está fazendo por mim.
— Não precisa agradecer. Eu estou aqui neste mundo para isso. Para descobrir talentos. Não tive muita sorte com algumas pessoas, mas você será o verdadeiro talento.

Depois de outras futilidades os dois se despediram do telefone. Não imaginavam que seria a última conversa entre os dois. Horas depois, Breno embarcava para o que acreditava ser mais uma viagem de trabalho de muitas.

Dirigia seu ônibus semivazio, lotado apenas por ele e mais três passageiros: um estudante moreno claro, uma senhora gorda e negra e uma mulata de cabelos louros num vestido justo, segurando uma bolsa. Não havia trocador. Era ele mesmo quem recebia o dinheiro pelas passagens.

Passava por uma rua erma próxima a uma favela. Alguém lhe deu sinal para parar fora do ponto. Mesmo desconfiado com a aparência dos passageiros, parou por puro profissionalismo.

Eram dois negros como ele, com roupas largadas e rasgadas, cheiro de bebida e dentes branquíssimos. Um deles com os cabelos pintados de louro. Ambos têm voz carregada de gírias, mas o outro, um careca, xingou, depois de ver o ônibus vazio:

— Caralho! A porra desse ônibus tá vazio, muleque! Num dá pra assaltá ninguém hoji.
— Aí! Vamu assaltá assim mermo. Vai dar pra tirá alguma coisa! Insiste o “louro”.
— Dá nada! Muita poca gente!
— Mas tem um playboy ali cheio de rôpa de marca.

Os meliantes pulam sobre a roleta. O “louro” tira a sua arma da cintura da bermuda e rouba a mochila de marca do estudante, jogando seus livros pela janela aberta. O careca rouba o relógio da moça, a bolsinha de trocados da idosa e o mp3 do estudante. Antes de sair, faz questão de dar um tiro certeiro na cabeça de Breno, que cai morto sobre o volante. O estudante assaltado corre para o volante, pula a catraca e pisa no freio.

Ansioso para oficializar a revelação do primeiro talento que descobriu Agostino madruga no clube. Vai direto ao campo de futebol, sem sequer procurar pelo primo Severino. Mas este logo o encontra e diz, com semblante fúnebre:

— Você ia passar direto por mim, né? Mas preciso te dizer uma coisa.

Achando que Breno teria se saído mal em outro teste ou mesmo tendo descoberto que o problema de coração que tinha o impediria de iniciar uma carreira profissional de jogador de futebol, Agostino resignou-se:

— O Breno não serviu, né?
— Vem cá que eu vou te levar pra falar com o Jamílson.
— Cara, o que houve?

Agostino não teve resposta do primo enquanto não o colocou em contato próximo do responsável por treinar os novos talentos. Encontrou Jamílson também com fisionomia mortuária, tendo o acréscimo do brilho das lágrimas em seus olhos.

O pernambucano que tentava descobrir talentos desde que chegou ao Rio apavarou-se com o clima de tristeza no clube. Não era só do primo e do treinador. Apreensivo perguntou:

— O que houve, Jamílson? O Breno não foi aprovado.
— Aprovado foi. E era uma das melhores promessas do clube.
— Já sei. Alguém foi mais esperto do que a gente e contratou o cara?
— Não! Respondeu Jamílson impaciente.
— O que houve, então?
— O Breno morreu!
— Quê isso, cara???? Não brinca!!!!
— Não estou brincando. O Breno morreu ontem de madrugada.

Arrasado, Agostino tenta suspirar fundo e pergunta:

— Foi coração? Ele teve um problema cardíaco quando criança.
— Não. Foi assassinado. Levou um tiro na cabeça de um assaltante no seu turno de motorista de ônibus.

A ficha caiu e Agostino deu um grito que ecoou por todos os departamentos do clube:

— NÃÃÃÃÃÃO!!!!!!!!!!!!!!!

Saiu esbaforido e atravessou todo o corredor do clube. Do campo à portaria. Ganhou a rua. Não viu o táxi que passava em alta velocidade. Voou alto.

Agostino teve alta do hospital após seis meses de coma. Recebeu a visita de Eliélton e sua filha Michelle Silva, que acharam melhor não contar para ele que o pedreiro ia gravar um CD e que a menina fora contratada por um grande time de vôlei para atuar na equipe juvenil.

Desistiu de caçar talentos. Decidiu desenvolver o próprio. Dedicou-se a fundo ao trabalho, estudou e foi aprovado no vestibular de arquitetura.

Dez anos depois já estava formado e realizado na profissão. Agostino tornou-se um homem de negócios, sem tempo de ler o caderno de esportes do jornal, que anunciava Michelle como a melhor jogadora das olimpíadas, após ajudar a seleção brasileira a conquistar uma medalha de ouro. No caderno de cultura um anúncio de um DVD com o dueto de Martina Reis e Eliélton da Silva. O arquiteto só lia os cadernos de economia e de imóveis.

FIM

4a Parte

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