28 de junho
Ela vem do outro lado da rua, seu corpo esguio deslizando sobre a faixa
de pedestre. Seus cabelos curtos e acobreados emolduram o rosto fino. Os olhos
possuem um brilho como duas chamas bruxuleantes, acima das profundas olheiras.
Na mão ela traz um copo de café expresso. 75 mg de cafeína.
Quando caminhamos lado a lado eu digo a ela que tenho problemas com
finais. O meu problema é que não acredito neles. Para mim tudo está inacabado.
Nenhum trabalho está finalizado. Sempre fica necessitado de reforma, de uma
atualização. As coisas sempre em constante transformação. Não se termina um
relacionamento, não se dá um final para uma amizade. Tudo permanece como
escombros. Nem os buracos negros são um fim. Ao redor as coisas são como se
alguém tivesse começado a construir algo, mas abandonou por ter ficado cansado.
Tudo são ruínas, nada está acabado, vive eternamente se acabando.
Uma lufada de vento traz até mim o odor de seu hálito amargo.
Quando eu ler isso no futuro estarei mais velha do que posso lembrar. Se
você estiver lendo isso, bem-vinda de volta à realidade. O que você pensava
sobre finais mudou? Eu duvido muito. As coisas que aconteceram desde então
devem ter corroborado ainda mais a ideia que você tinha sobre isso. Finalizar
alguma coisa seria aquele tipo de paz que a vida jamais deixaria você alcançar.
O mundo continua sendo assombrado por fantasmas de coisas inacabadas.
30 de junho
Eu estou sempre triste. É que às vezes esqueço disso.
Então um sorriso brota quando ela vem dobrando a esquina para o lugar em
que combinamos nos encontrar. Há uma sedução emanada de seu ar de constante
sono, suas olheiras acentuam seus grandes olhos, como um abismo que te chama a
cair nele.
Na mão ela traz uma lata de coca cola. 35 mg de cafeína.
"Sabe, eu tô cansada de as pessoas dizerem pra eu tirar o pé do
chão. Você não fica entediada com a perfeição que as coisas todas estão
tomando? O som das músicas é cristalino, limpo demais. Dá uma saudade do ruído
que tinham os discos de vinil. As imagens então. Tudo agora é full hd. Sempre
preciso, sempre perfeito. A digitalização, como um buraco negro, suga a vida de
tudo o que passe perto dela. Tudo está morto."
Ela sempre fala como se lesse meus pensamentos. Como se soubesse
expressar coisas que eu não conseguia.
Você aí no futuro, já experimentou damasco? Sabe, as pessoas se parecem
com essa fruta. Costumamos apreciar as pessoas pelo leve sabor doce que possui
sua fruta. Mas você tem que gostar muito de uma pessoa para suportar o leve
amargor em volta do caroço.
Um amigo do trabalho disse hoje que todas as mulheres são doidas. Me
senti como se não fosse doida o suficiente.
5 de julho
O bocejo parece uma insatisfação em câmera lenta. E ele aparece nos
piores momentos, como se fosse uma forma do corpo te dizer quem é que manda
nessa porra. Eu vejo isso no homem que boceja numa conversa aparentemente
importante com outro na mesa ao lado.
Ela chegou antes de mim, então já está com o notebook ligado, esperando
que eu também faça o mesmo.
"Uma vez eu vi um amigo ter a perna esmagada por uma viga" ela
fala enquanto eu lhe passo uns papéis com anotações. "Ele estava com medo
de que nunca mais conseguisse andar. Falava bem perto de mim e eu senti seu
hálito com um cheiro avinagrado. Desde então fiquei me perguntando se vinagre é
o cheiro do medo."
Eu pergunto se ela tem medo de morrer. Ela diz que não pode ser pior que
viver.
Na mão ela segura uma xícara de chocolate meio amargo. 20 mg de cafeína.
8 de julho
Faz calor e ela usa uma blusa de alça. Nunca havia reparado em seu
pescoço, em suas clavículas. A sua pele me faz salivar inconscientemente. Uma
gota de suor cai de seu queixo e se esconde entre os seios. Forço meu olhar
para algum lugar longe, onde pessoas caminham ou correm ou passeiam com seus
cachorros. Olho para minha própria pele, esse lugar macio e levemente perfumado
onde a vida registra os fracassos e meu cansaço.
Sua mão segura um energético. 80 mg de cafeína.
Eu pergunto a ela se já leu um livro que foi como se lhe dessem uma
bofetada na cara. A resposta saiu de sua boca como carne que se desprende do
osso. "Noites Brancas", ela diz e eu lembro do impacto desse livro em
mim.
Ela é o que hoje você chamaria de "limpa". Sem piercing, sem
tatuagens ou cabelo colorido ou escarificação. Ela hoje não teria problemas com
tatuagens flácidas, bunda caída e coxas magras. Para que você saiba, caso sua
memória falhe, você nunca a beijou, apesar de desejar. Mas tenho a impressão de
que sua boca é amarga, sem nada adocicado que pudesse mascarar o gosto
inevitável de sua tristeza.
Ela fala como se saísse de uma profunda reflexão.
"Já parou pra pensar que a pessoa precisa estar muito fudida pra
criar arte? Olha Nietzsche e sua sífilis, Mozart e seu acúmulo de ureia no
sangue. Frida Kahlo vivia com as pernas sangrando. É sério. Parece que a
inspiração precisa de uma desgraça própria. Por isso Cioran fala que os
escritores de segunda linha tendem a autenticidade. Claro, eles não são muito
capazes de maquiar a individualidade do que os leva a escrever. Imagina o que
Dostoiévski sofreu pra escrever tudo o que escreveu."
Depois que ela termina eu olho para um homem muito gordo que está
sentado numa lanchonete, com essa desesperança vítrea que tem todos os gordos
enquanto mastiga de forma rítmica seus quilos de frango frito.
Só para que conste nesse registro, você já foi gorda, mas nem por isso
se tornou imbecil ao ponto de militar pela gordofobia. Ao menos eu espero.
15 de julho
Na mão ela segura uma lata de ice tea. 60 mg de cafeína.
Continua o calor. Parece o dia mais quente do ano. Eu ergo meus braços
para aspirar o odor das axilas e meu cenho franze num misto entre desgosto e um
aroma adocicado. Ela ri. Há uma insistência desconcertante do real e um esforço
ridiculamente palpável para ignorá-lo. Eu estava naquele estado que só é
reconhecível quando se sai dele.
"Ontem um amigo me ligou dizendo que encontrou a mulher dele na
cama com outro homem. Ele disse que percebeu que não se importava. Na verdade
ele não se importava há anos. Então sentiu um pouco de pena deles e lhes
desejou boa sorte."
Olho para ela e rio. Percebi que ela seria capaz de perdoar qualquer
coisa. Perdoar com sua indiferença infinita. E percebi também que coisas reais
não me fazem chorar, só as falsas, as que estão no mundo da ficção. E me
resignei com isso. Existe uma paz na autorrepulsa.
Eu digo a ela que a primeira coisa que existe é o horror, que
basicamente é o primeiro horror. Aí nós temos que assimilá-lo. Ela fala:
"A gente é um bando de filhos da puta. Tu sabia que um pintor
italiano chamado Manzoni colocou a própria merda dele numa lata, tô falando de
merda mesmo, que ele cagou, aí pôs uma etiqueta na lata dizendo "100% pura
merda de artista" e o povo comprou?! "
19 de julho
A chuva parou antes do meio dia. O céu, absurdamente bonito, era tingido
por uma cor amarelada em meio a pequenas nuvens granulosas.
Ela apareceu no café molhada. Nunca usava guarda-chuva. Seus lábios
estavam molhados, ela era a Eva, com os lábios ainda úmidos do fruto proibido.
Ela pede um cafezinho. 100 mg de cafeína.
"Você já percebeu que quando você goza, você não está lá?" ela
fala enquanto eu abro o sachê para derramar o açúcar no meu café. Eu a olho com
rugas entre as sobrancelhas. Ela continua. "Esse êxtase aniquila você.
Você não fica ali pra experimentar o gozo. Sua participação é apenas na
preparação, no que antecede e no final, quando sente aquele vazio
sórdido."
Para que fique registrado, nós nunca fizemos sexo, mas ela me causava
orgasmos intelectuais. A coisa mais bonita que lembro dela é que ela me
questionava sobre minha individualidade. A conclusão a que cheguei é de que só
somos indivíduos se estivermos inseridos num constructo composto por outros
indivíduos, que respeitam ou não sua individualidade e seus direitos e
escolhas.
Se você está lendo isso é porque essa é a história de tudo o que deu
errado. Tudo é uma ilusão, uma ficção criada para te manter controlada. Até
isso que você chama de realidade é uma camada falsa sobre a verdade. Sabe esse
teu rosto? Tirando a maquiagem, ainda tem três camadas de pele. Essa que você
toca, o stratum corneum, é uma capa de células mortas. Não vire o rosto. Olhe
para si mesma. Essas células mortas estão sendo empurradas, expulsas, pelas de
debaixo. Tem o manto ácido, a derme, os músculos. Você pensa agora que conhece
a si mesma? Não seja ridícula.
Hemerson Miranda
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