A
mesa já estava posta desde a manhã da véspera. Foi quando Edith começou a
preparar a casa para a visita do ex-marido e dos dois filhos adolescentes, que
ficaram sob a guarda do pai.
Madrugou
na feira para comprar frutas frescas, especialmente as ameixas, as uvas verdes
e o abacaxi. O peru ela começou a temperar assim que chegou da feira. Passou a
manhã inteira na cozinha para isso. O resto da tarde levou para assar a ave no
forno do seu velho fogão de quatro bocas.
Enquanto
o peru assava, estendeu a toalha (a mais nova e limpa da casa) sobre a mesa
para logo colocar os descansos também novos, as louças, talheres e copos de
cristal que ela sempre guardava na cristaleira empoeirada para ocasiões
especiais, assim como os castiçais e as velas vermelhas.
As castanhas e as rabanadas ficaram prontas
pouco antes do peru chegar triunfante e esfumaçado à mesa retangular grande,
onde esfriaria em algumas horas.
Os
presentes já descansavam sob o pinheiro de 1,60m, feito de grama artificial.
Comprara uma moderna furadeira para o ex-marido. Um tablet para a filha mais velha e uma prancha de surf para o
caçula, que segundo lhe falaram, já se interessava pelo esporte.
A
prancha era mais alta que a árvore e, embalada em um papel alumínio verde,
confundia-se com o ornamento natalício, repleto de bolas de plástico brilhante
e colorido. O tablet ficou dentro de uma caixa com embrulho rosa, que mais
parecia um estojo. A filha estava crescendo, mas continuava uma menina para
Edith. A furadeira do ex-marido repousava no chão da sala, embrulhada em um
papel cinza. A árvore também abrigava o presente do porteiro do edifício,
Severino: uma garrafa de vinho chileno.
Faltavam
duas horas para os filhos chegarem. Edith pensou ansiosa. Foi tomar um banho
rápido, mas revigorante para esperá-los. Ficou receosa de tocar o interfone ou o
telefone e não poder atender porque estava no chuveiro. Lembrou-se de levar o
telefone e o celular para o banheiro. Nenhum deles tocou.
Saiu
do banho e colocou o seu melhor vestido: um azul marinho que comprara quando
assinou o divórcio. Perfumou-se com Madame Cabochard, com o qual conheceu o
ex-marido e os filhos adoravam.
Enfim
tocou o telefone. Era engano. Sentou-se no sofá. Ligou a televisão para conter
a ansiedade. Já passava a novela das seis. O telefone voltou a tocar. Além de
esperar os filhos, Edith também esperava uma ligação da única irmã ainda viva.
Era apenas uma operadora de telemarketing com o seu sotaque paulistano querendo
vender um curso de inglês. “Raios! Até no Natal essa praga perturba! Quando a
gente precisa estão fora do expediente” Pensou, indignada.
O
interfone tocou. Tensão. “São eles! São eles!” Recompôs-se rapidamente. Colocou
o brinco e o sapato de salto antes de atender. Ficou decepcionada quando soube
que era o porteiro anunciando o entregador do jornal pedindo caixinha. Ficou
tão revoltada que se recusou a dar.
Aproveitou
para chamar o porteiro e lhe dar o presente. Severino agradeceu, se desculpou e
disse que estava sozinho na portaria e não podia ser visto com garrafa de
bebida pelo síndico. Mas iria buscar o presente e lhe dar um Feliz Natal depois,
assim que acabasse o seu expediente, pois não estaria de plantão.
A
televisão já passava a novela das sete. Ninguém aparecia. Começou a roer as
unhas. Queria mesmo era fumar, mas estava tentando largar o vício. O telefone
tocou mais uma vez. Parou após o terceiro toque. Resolveu se concentrar no
jornal das oito, que já começava. Adormeceu.
Acordou
com a campainha da porta. “São os meus tesouros, que subiram direto!” Correu
para atender, mas voltou a ficar frustrada quando ouviu a voz nordestina do
porteiro Severino. Já estava começando a ficar triste. Fingiu alegria.
Pegou
o embrulho com a garrafa na árvore, que já piscava há uma hora, e enfim lhe deu
o presente. Não sem antes tentar convidá-lo para ceiar com ela. Severino
recusou novamente o convite com carinho. Ia passar o Natal com a família no
subúrbio. O porteiro retribuiu e lhe chamou para passar com ele e a família. Agora
foi a vez de Edith recusar, pois estava esperando o ex-marido e os dois filhos.
Se
despediu do porteiro e olhou para a mesa farta, mas inútil. O peru já estava
mais frio do que cadáver de indigente no IML. Pensou em esquentar. Para quê?
Ninguém ia aparecer mesmo. Já ia dar dez horas da noite. A televisão já exibia a
Missa do Galo. Perdeu as esperanças.
Começou
a chorar. Caiu em prantos e na realidade. Foi abandonada pelo marido porque era
alcoólatra e viciada em jogos de azar. Os filhos preferiram morar com o pai. Os
pais e tios já eram falecidos. A única irmã viva estava sem falar com ela
porque perdeu a casa própria por causa Edith, de quem foi fiadora por causa de
um empréstimo para saldar as dívidas de jogo. Claro que Edith não pagou e o
banco exigiu a casa da irmã. Os amigos também a abandonaram porque souberam da
história e tinham medo de lhes acontecesse o mesmo.
O
apartamento de três quartos em Ipanema foi deixado pelo marido por gentileza e
pena. Era o ex quem pagava o condomínio e as contas de luz e telefone, porque
se dependesse de Edith, tudo seria gasto com jogo. Ele até conseguiu impedir a
ex-mulher de vender o apartamento. Por sorte, Edith fez tratamento contra o
jogo. Mas já estava em depressão.
A
expectativa da vinda do ex e dos filhos era uma tentativa de se manter otimista.
O peru, de gelado, estragou com o calor carioca. Assim como as frutas, as
castanhas e as rabanadas, todas cobertas por panos para não pegar poeira e nem
moscas. As nozes, protegidas pela dura casca que o seu filho caçula adorava
quebrar com o soquete de feijão, nem chegaram a tanto.
A
furadeira continuou silenciosa no chão. Nem saiu da caixa. O tablet ficaria
eternamente offline. A prancha só estava surfando a sua sombra na parede. O
único presente dado foi o vinho do porteiro e era o último da sua adega. Os
outros presentes foram comprados com o dinheiro que ela ganhou do bicho. Ainda
estava voltando a jogar.
Já
era alta madrugada do dia 25 de dezembro quando se olhou no espelho do buffet e
se viu esquelética, loura e acabada aos 50 anos. Deu uma última olhada nos
presentes abandonados, na televisão velha já desligada, nos copos e pratos
empoeirados, nos móveis velhos e nas paredes descascadas.
Abriu
o janelão da sala do apartamento, enquanto ouvia famílias rindo e trocando
votos de Feliz Natal, além de gargalhadas de amigos ocultos. Se jogou.
Seu
corpo teve a queda do décimo-primeiro andar amortecida por um ar condicionado e
uma árvore. Sobreviveu. Foi socorrida lúcida pelo porteiro plantonista, vizinhos,
curiosos, imprensa e a polícia. Pediu um cigarro.
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