Na volta para casa decidi pegar o ônibus no
ponto final. O abrigo estava lotado. Não tinha lugar para me sentar. Estava
morrendo de cansaço. Não quis esperar em pé. Estava muito quente. Mesmo com o sol assando
o meu couro cabeludo preferi andar. Parado ele incide mais sobre a minha
cabeça. Andando, pelo menos, vou uniformizando a fritura dos meus miolos.
No ponto final, além de poder ficar debaixo
de uma marquise, poderia pegar o ônibus vazio, o que não aconteceria se eu
pegasse de onde eu estava. Até a última parada ainda havia mais três pontos no
caminho.
Inicio a minha jornada de vinte quilômetros
rumo ao ponto final. Já conheço esse trajeto. Aliás, acho que nem chega a ter
vinte quilômetros. Talvez cinco. O calor e o cansaço já bagunçam o meu
raciocínio. As minhas contas.
Quando acabo de atravessar a primeira
esquina, passa o ônibus que me leva de volta para casa. Passa direto, em alta
velocidade. Sigo o meu caminho.
Passo por uma lanchonete. Pessoas comem sem
pressa, como se vivessem ali. Eu também poderia parar para comer ou beber uma
água de coco. Mas estava com pressa. Queria chegar logo em casa e me livrar
daquele calor na minha cabeça.
Na segunda esquina vejo uma criança
aparentando uns oito anos. Fazia manha. Chorava e esperneava. Provavelmente
queria algum brinquedo. A mãe, impaciente, esbravejava:
— SE VOCÊ NÃO CALAR ESSA BOCA, EU TE DOU
UMA SURRA!!!!
Pensei em parar em um abrigo próximo a
cena. Gostaria de conferir se a mãe cumpriria a promessa. Muita gente torcia
para isso. Algumas senhoras tentavam demovê-la da idéia. Se a mãe bateu ou não
na criança? Não sei. Segui em frente.
Logo vi a loja de brinquedos que foi o pivô
do escândalo da criança. Os funcionários ainda observavam na porta, atônitos.
Poderia parar para perguntá-los o que houve. Mas isso não era da minha conta.
Segui.
A partir da terceira esquina, avistei outro
ônibus da minha linha. Acabei voltando para o ponto próximo de onde a mãe ameaçava
bater na criança. Não havia ninguém no abrigo além da mulher e do menino que
chorava. Parecia mais calmo. Nem sei se tinha levado a tal surra ou não. Para
mim não importava. O ônibus que eu precisava chegou. Mas não parou. Eu estava
no ponto errado. Continuei o meu caminho.
Repeti a passagem pela loja de brinquedos e
a terceira esquina, onde eu tinha avistado aquele ônibus que me fez voltar.
Continuei o caminho.
Na frente de um banco vejo um mendigo
abaixar as calças e, com a apoteose apontada para quem quisesse olhar, fazia o
que os políticos fazem com a nossa cidade, o nosso estado. Nosso país.
Mais pra frente, um vendedor de relógios abria
o seu casaco e me oferecia as suas mercadorias, que brilhavam com a luz do sol.
Eu nem dei importância. Também não reparei que ele estava nu. A mocinha de trás
percebeu. Deu um grito e chamou a polícia aos berros de TARADO!! O policial
militar desceu o cacetete no ambulante maluco. Já sem o meu testemunho. Eu estava
longe.
Olho para outra calçada e vejo um turista
fotografar um mendigo. É por isso que o Brasil não vai pra frente. As nossas
mazelas são glamourizadas. Me deu
vontade de atravessar a rua com ele e mostrá-lo as verdadeira maravilhas do Rio
de Janeiro que estavam na rua paralela: a praia. Fiquei na minha. Segui o meu
caminho.
Duas esquinas depois eu vi uma multidão
cercando alguém ou alguma coisa. Dando mais alguns passos, deu para ver um
homem caído no chão. O sangue se empoçava e escorria pelo asfalto quente. Nem
quis saber se estava morto ou não. Continuei andando.
Já estava a umas três esquinas do ponto
final quando avisto outro ônibus parado no semáforo logo no final da calçada.
Atravesso rapidamente com o sinal aberto. Quase sou atropelado. Não dá tempo. O
semáforo abriu e o ônibus seguiu o seu caminho. E eu o meu.
Passo por uma senhora com o rosto
ensangüentado, chorando, dizendo para policiais que foi assaltada. Na esquina
seguinte, ouço tiros. Parece ser um assalto. Fico com medo. Paro numa
lanchonete e compro um refrigerante. Com a cara e a coragem, sigo em frente. Ando a passos
rápidos. Apesar do meu cansaço. Dois ladrões quase me empurram e entram na rua
transversal. Os policiais, também. Era um assalto no supermercado do outro lado
da rua.
Consigo fugir das balas perdidas. Consigo
chegar ao ponto final. Não consegui pegar o ônibus que estava parado, me
esperando. Algo pesado caiu sobre mim. Pesado como uma marquise.
0 Comentários