Por Hemerson Miranda
A casa de campo era o local perfeito. Quieto, ameno e propício para
a inspiração. Apenas o caseiro e a empregada moravam ali. Sua mulher ligaria
toda tarde e ele gostava de ouvir sua voz. Ela era bastante compreensiva quando
ele precisava se distanciar da cidade para escrever e ainda mais quando o
estavam pressionando. Sete meses se passaram desde que fora publicado seu
último livro e já o estavam questionando quando sairia o próximo. E ele tinha
de dar o seu jeito, afinal seus leitores até poderiam esperar, mas não seus
patrões. Mesmo que não gostasse de forçar inspiração ele foi até aquela casa
consciente de que ela mais cedo ou mais tarde viria.
Seu horário
preferido para escrever era a noite. Passava o dia remoendo em sua cabeça a
história, os personagens e depois que o sol se punha ele colocava em palavras
tudo o que tinha imaginado.
No primeiro dia
foi até o escritório preparar o ambiente. O computador estava lá, um bloco para
anotações, os CDs que costumava ouvir quando estava escrevendo. A empregada lhe
perguntou se ele queria café e ela foi preparar. Olhou ao redor e viu seu lugar
de criação. Respirou fundo já imaginando o tempo longo que ele passaria ali.
O relógio da sala bateu
vinte horas. Ele se ajeitou na cadeira, bebericou o café, estalou os dedos e
começou. Bem, na verdade não começou nada, pois ele não sabia por onde começar.
Riu colocando a mão na cabeça. Tinha imaginado a história durante o dia, mas na
verdade não estava gostando do tema, do enredo e nem dos personagens.
Levantou-se e escolheu o CD de Bach para ouvir. Voltou ao computador e ficou
tamborilando os dedos no teclado. Aquilo o deixava louco. A primeira frase
faria toda a diferença, mas ele não sabia o que escrever. Ficou girando na
cadeira esperando que um sopro de inspiração aparecesse. De repente teve uma
ideia. Começou a digitar uma frase, mas parou no meio dela e apagou o restante.
Não era isso. Continuou pensando e voltou a digitar. Conseguira terminar a
frase, mas a próxima não ficou em harmonia com a primeira e por isso ele apagou
as duas. Passou a mão nos cabelos grisalhos.
Levantou-se e foi
até a janela. Poucas luzes iluminavam o jardim da casa. Uma brisa suave bateu
em seu rosto. As folhas das árvores pareciam dançar conforme a música
compassada pelo vento. Morcegos sobrevoavam as copas atrás de frutas. A lua
parecia maior de onde ele podia observar. Em sua mente as formas dos
personagens de sua história se moldavam; as personalidades, o som de suas
falas, o cheiro de seus corpos. Os nomes iam surgindo conforme ele imaginava
seus rostos. Viu uma cena que poderia muito bem ser a do primeiro capítulo e
aproveitou isso para voltar ao computador.
Os dedos ágeis
pressionavam as teclas rapidamente para não perder o fio da meada, a inspiração
que lhe ocorrera. Terminou um parágrafo e recuou um pouco como que para ver de
outra perspectiva. Fez uma cara feia. Não estava bom. Selecionou todo o texto e
excluiu. Voltou a escrever de outra forma agora, procurando em sua mente
palavras que encaixassem, mas o resultado foi o mesmo. E isso durou toda a
madrugada.
No dia seguinte
ele viu que tinha escrito apenas um parágrafo. Não estava do jeito que ele
queria, mas provavelmente o restante do texto o deixaria melhor. A segunda
noite na verdade não foi tão diferente da primeira. Várias frases continuavam
sendo excluídas, várias palavras substituídas e terminar o primeiro capítulo
parecia ser mais difícil que qualquer outra coisa.
Três dias se
passaram e ele havia escrito apenas uma página. Não estava nada satisfeito com
isso. Passava as madrugadas em claro tentando escrever algo que primeiro o
agradasse e agradasse aos leitores e dormia durante todo o dia. Na quarta noite
apagou tudo e começou de novo. Nesta madrugada conseguira escrever três
páginas, mas mesmo assim ele não se sentia muito satisfeito. Não dormiu e ficou
puxando assunto com o caseiro quando ele cuidava da horta. Conseguiu tirar
algumas ideias da conversa que teve com aquele homem que aparentava tão iletrado.
Na cozinha também conversou com a empregada sobre sua família e mais inspiração
foi tirada daquele diálogo. Essas pessoas tão simples lhe mostraram porções de
suas experiências de vida que iluminaram a sua mente. Sem ter dormido, mas não
se sentindo cansado, ele estava já no computador assim que anoiteceu. Apagou as
três páginas que escrevera e começou uma nova história baseada nas experiências
tidas naquele dia.
Conseguira
terminar um capítulo. Ajeitou-se na cadeira para ler e sua cara foi mudando
conforme ele analisava o texto. Realmente não havia gostado. Não entendia o que
estava acontecendo. Os seus primeiros livros fluíram com uma facilidade tão
grande. Talvez fosse a pressão que estava causando isso. Talvez precisasse de
mais alguma coisa. Ele realmente gostaria de saber o que faltava. Quando sua
mulher ligava perguntando se tudo estava indo bem ele dizia que sim para não a
deixar preocupada.
Também não dormira
nessa noite. Logo cedo chamou o caseiro para ir pescar. Quem sabe essa
atividade tão reflexiva lhe trouxesse inspiração para uma história. A conversa
com aquele homem também poderia ser proveitosa. Quando voltaram na hora do
almoço só haviam pegado dois peixes e o seu era infimamente menor do que o do
caseiro. Ele quis almoçar com os empregados nesse dia. A conversa continuava
proveitosa e prazerosa. E o peixe também estava muito bom. Detalhes da vida
daquelas duas pessoas o faziam viajar e as vezes voltar a mente para sua
própria infância.
Durante a noite
recomeçou o seu martírio. Colocou mais Bach para ouvir. Pediu mais café. Releu
o capítulo que havia escrito e decidiu, mais uma vez, apagar tudo aquilo.
Quando a empregada veio deixar o café disse que ela poderia tomar. Dessa vez
ele preferiu algo mais forte e abriu uma de suas garrafas de uísque. Foi até a
janela com o copo na mão. O líquido descia em sua garganta como se limpasse várias
impurezas em seu caminho. E parece que a limpeza fora tão completa que atingira
até seu cérebro. Naquele momento ele tivera um estalo. Uma luz parecia ter sido
acesa em sua cabeça. Um sorriso enorme abriu-se em sua boca, como um louco
antes de aprontar alguma loucura. Correu para o computador.
Não estava
acreditando. Finalmente as musas tinham soprado seu hálito sobre ele.
Bruscamente batia nas teclas formando palavras rápidas. Um desejo voraz de
escrever e não parar mais tomou conta dele. Mordia o lábio inferior como se
estivesse prestes a devorar a carne fresca de uma presa. Tomava goles e mais
goles do uísque e não parou para descansar nenhum só minuto. A madrugada toda
ouviu o som das teclas fortemente pressionadas. Os suspiros de alegria, as risadas
que ele começou a dar com uma alegria invejável. Sua ânsia de terminar aquilo
foi tamanha que ele, de alguma maneira que ele mesmo não podia explicar,
escreveu o livro todo naquela mesma madrugada. Seus dedos doíam ao extremo.
Seus braços pareciam ter sido esmagados. Encostado na cadeira olhou para a sua
obra. Um sorriso macabro aflorou-lhe nos lábios. Um olhar louco podia ser visto
no seu rosto. Ele estava ofegante e feliz. Extremamente contente com sua
criação. Olhava-a como a um filho recém-nascido. Lágrimas começaram a brotar de
seus olhos como se toda a sua vida tivesse como único propósito o de escrever
aquela história. E ele estava certo disso. Era com certeza a melhor história
que ele já havia escrito. Mudaria a vida de muitas pessoas. Mudaria até mesmo a
sua própria vida. Viu os exemplares se esgotarem das livrarias, da internet e
transformarem-se em dinheiro e fama para ele. Imaginou a cara dos seus patrões
e dos leitores ávidos de algo épico. Sim, pois aquele livro seria um épico da
criação humana. Ele não conseguia sentir modéstia ao contemplar a sua criação.
Tudo o que ele sentia era o seu coração bater forte. Infelizmente bateu forte
demais.
Os tímidos
primeiros raios solares da aurora entravam pela janela do seu escritório quando
ele sentiu uma dor profunda no peito e caiu sobre o teclado. Um grito abafado
foi seu último som. O copo ainda cheio caiu molhando o carpete. Seus olhos já
sem vida miravam apenas o sol nascendo. O criador havia morrido.
O caseiro já
estava de pé mexendo na fiação desencapada num dos quartos da casa. A empregada
estava tomando banho, preparando-se para fazer o desjejum. Um barulho foi
ouvido de longe. A água quente do chuveiro de repente tinha ficado gelada. Num
dos quartos o caseiro estava de pé, ofegante, com um alicate na mão, olhando
para o lugar onde há pouco um fogo vindo dos fios quase o deixara cego. Toda a
energia da casa sumiu.
O corpo do
escritor foi encontrado quando a empregada entrou no escritório para convidá-lo
a tomar um café. Seu grito agudo invocou o caseiro. A polícia e sua mulher
foram chamadas. O ataque cardíaco fora fulminante. O HD do computador havia
queimado na hora da explosão na fiação. O criador e a criatura se perderam para
sempre.
O propósito de sua
vida fora escrever aquele livro. Aquele épico, como ele mesmo o batizou. Um
livro que jamais seria esquecido, pois teria sido um clássico, uma das grandes
obras da criação humana. Um livro que mudaria a vida de muitas pessoas, sua
forma de enxergar as coisas, sua forma de lidar com elas. Um livro que marcaria
uma era, mas que jamais seria lido por alguém.
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