Matheus acordou com raiva. Mais
uma vez. Havia despertando desse jeito fazia já umas três semanas. No sofá.
Naquele sofá de três lugares desgraçado e desconfortável. Hoje ele se arrepende
por ter escolhido o mais barato.
Ele se levantou e calçou logo seu
par de tênis. Ficou com a calça cinza de moletom e a camiseta branca com uma
estampa do Coliseu e a palavra Itália no ombro esquerdo. Vestiu a blusa com
capuz e foi para o banheiro. Depois que saiu de lá foi até a cozinha, pegou
duas fatias de pão-de-forma, presunto e maionese. Fez um sanduíche e colocou o resto
do café do dia anterior em uma caneca. Programou o microondas para um minuto e
após colocar a caneca lá, esperou. Sentou-se à mesa de jantar. Cruzou as pernas
e olhou para o relógio de parede. Eram seis e quarenta e sete. Lá fora o sol já
iluminava as ruas.
Ele se assustou com o apito do microondas.
Fechou o saco do pão, tampou o pote de maionese e colocou-a de volta na
geladeira, junto com as fatias de presunto. Tirou a caneca de café do
microondas. Ao fechar a portinha, ouviu o forte barulho que fez. Da cozinha ele
ouviu a porta do quarto se abrir. Tomou o café em um só gole, mesmo escaldante
e saiu correndo com o sanduíche de presunto na mão. Ao sair da casa tratou de
bater a porta da cozinha com força.
Sua esposa chegou à janela da
sala a tempo de ver o marido começar sua corrida matinal. Cada dia mais cedo.
Matheus dobrou a esquina da sua
casa e começou a subir por uma longa rua, que dava no outro lado do morro. Moravam
em um bairro residencial. Havia terrenos com casas bonitas, cercas baixas,
árvores e muitas possuíam até jardins.
Ele diminuiu um pouco o ritmo ao
chegar à metade da subida. Ali morava uma senhora simpática que acordava cedo
para cuidar de sua criação de coelhos e porquinhos-da-índia. Ao passar por ela
acenou. Ela retribuiu com um sorriso e um balançar de cabeça.
Lá em cima, viu uma paisagem
maravilhosa que não se cansava de ver. O sol nascia atrás do morro, em meio às
casas de até dois andares e pomares. A luz batia em seu rosto. Ele passou a mão
pela barba por fazer. Deu uma risada alta e se preparou para se aquecer quando
ouviu uma voz.
“Ei, tem
gente querendo dormir aqui.”
Ao se virar viu um mendigo que
dormia sob um pé de mangueira. As frutas estavam vermelhas e prontas para serem
consumidas.
“Você me acorda cada dia mais
cedo, sabia?”
Matheus olhou para ele. Estava
coberto com uma manta colorida suja. Sentou-se. O cachorro que estava atrás
dele também acordou e começou a se espreguiçar.
O mendigo devia ter a mesma idade
de Matheus, mas aparentava bem mais. Uns quarenta talvez. E sua situação não
ajudava em nada. Matheus coçou a cabeça. Colocou as mãos na cintura. Depois, ao
colocá-las nos bolsos da frente do moletom, atravessou a rua. Ficou a uns dois
metros de distância do homem.
“Me desculpe. Não quis te
acordar.”
“Mas acordou com aquela risada...”
“É”, disse isso de um jeito
triste. Abaixou-se e chamou o cãozinho estalando os dedos. “Ele morde?”
“Não, é mansinho.”
“Vem aqui, garoto.”
“O nome dele é Rex.”
“Rex?”
“É.”
O mendigo ergueu a mão e pegou
uma garrafa pet sem rótulo com água pela metade. Tomou alguns goles. Observou o
outro brincando com o cachorro por um tempo antes de perguntar seriamente:
“Problemas com a mulher?”
Matheus olhou para o mendigo
assustado.
“Como você...?”
“Eu já vi isso acontecer.”
Matheus deu um sorriso triste.
“Estou certo?”
“Infelizmente”, Matheus olhou
para o chão. Deixou a tristeza transparecer mais uma vez. O cachorro voltou
para seu dono. “Você e sua...”
“Ex-mulher. Éramos novos. Eu traí
ela e depois as coisas não voltaram a ser as mesmas... Depois que a gente se
separou eu perdi tudo e vim parar nas ruas.”
Matheus não sabia o que dizer.
“Sabe o que faltou...? Depois que
a gente se casou?”
“Hã... Não, o que?”
“Comunicação. Às vezes é melhor a
verdade na lata do que meias palavras.”
Eles ficam em silêncio por um
tempo.
“Qual o seu nome?”
“João.”
“Prazer”, os dois se
cumprimentam. “Matheus.”
“Certo... Só por favor, não faça
barulho, tá bom? Essa rua é bem calma e...”
“Vou tentar me lembrar.” Ele
começou a andar. “Espere aqui que eu já volto”, e desapareceu da vista de João,
descendo a rua.
“João!”, sussurrou Matheus. “Acorda!”
O mendigo despertou com o cheiro
do pão-de-queijo.
“Aqui, trouxe pra você.”
Ainda com os olhos sonolentos,
João sorriu ao ver o delicioso café da manhã que via em sua frente. Matheus
entregou o pão-de-queijo. Em sua outra mão havia dois copos plásticos com café.
Ele sentou-se ao lado de João.
“Tem café também.”
“Nossa! Muito obrigado. Não sei o
que dizer.”
“Está tudo bem.”
Tomaram o café da manhã juntos.
“Sabe o que pode fazer bem?
Perguntar, sem rodeios.”
“Perguntar o quê?”
“O que ela quer. De verdade.” Ele
parou por um momento. “É claro que a resposta pode não ser tão boa, mas acho
que é melhor, sabe...”
“Assim não tem mais meias
palavras.”
“Exato.”
João riu e depois de acabar a
refeição Matheus foi embora. Ele agradeceu. Matheus fez o mesmo.
Ele chegou do trabalho aquele dia
e sentou-se no sofá. Sua esposa já fez cara feia e levantou-se para sair da
sala.
“Espere. Acho que a gente precisa
conversar.”
“O que foi?” Havia irritação em
seu tom de voz.
“Pode se sentar?”
Ela se sentou e fitou o marido.
Ergueu as sobrancelhas em busca de respostas.
“O que você quer?”, disse Matheus
firme. “Sabe, do jeito que a gente está indo...”
Ela hesitou por um momento. Mexeu
com as mãos e depois de um longo tempo de silêncio olhou nos olhos de Matheus e
disse:
“Eu quero o divórcio.”
Conto de Lucas Beça
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