de Miguel Angel
Naquela mesma noite, Angélica foi invadida por pesadelo que a fez chorar e gritar de angústia:
“de pé ao lado de minha cama, observa-me em silêncio uma velha índia que ostenta dois chifres portando grossa vela negra / dois ratos se assomam na sua boca e, expelidos num vômito, vão se refugiar debaixo do meu cobertor / protegidos pela escuridão, procurarão o interior das minhas coxas para se refugiar e fazer ninho / encolho as pernas, com horror cubro meu sexo com as mãos / a velha se dirige a um outro quarto, vou atrás, sem ela perceber / só ela entra nele, eu espio da porta entreaberta porque percebo pela fresta do batente, que atrás da porta está outra índia escondida / nua e montada num cavalo branco, espera eu entrar para me atacar / no meio do cômodo, há uma cama e deitada nela uma mulher parece dormir / a velha se agacha e com a chama da vela começa a pôr fogo nos lençóis / o fogo começa a se alastrar, eu fico angustiada por causa da mulher que não se dá conta do que acontece, parece morta, mas eu sei que dorme profundamente / de repente entendo que a mulher é Amanda, minha irmã / preciso acordá-la, porém, não posso ser vista pela índia que espera por mim atrás da porta / então grito desesperadamente para acordar minha irmã sem ligar para a índia que, com sinais medonhos, me ordena parar de gritar, para não acordar essa mulher que merece ser queimada por lhe roubar seus ratos e seu filho / penso lhe explicar que está enganada, que seus dois ratos estão escondidos na minha cama e pode ir lá pegá-los / as chamas provocam fumaça que se levanta e cobrindo o teto, formam nuvens espessas iguais as de um céu tormentoso / penso, com alívio, que se chovesse, o fogo seria apagado / mas continuo a gritar para minha irmã acordar e sair daquela cama / volto ao meu quarto para pegar os ratos e devolvê-los à bruxa, isso fará ela parar / devo encontrá-los antes que o fogo queime minha irmã / procuro no cobertor e entre os lençóis, e descubro os ratos fazendo ninho dentro do travesseiro / mesmo com asco, aperto o travesseiro contra meu peito para eles não fugirem e volto à soleira do quarto / a velha ainda está lá, avivando com um poncho e assoprando o fogo para ampliar as chamas / cuidando para não entrar no quarto, atiro o travesseiro em sua direção e grito que seus malditos ratos estão dentro dele e agora pode deixar minha irmã em paz, senão, vou entrar e eu mesma apagarei o fogo / ela dá uma risada e recolhe o travesseiro que acabei de lhe jogar, procura pelos ratos e disse que não tente enganá-la, que ela já sabe que seus queridinhos estão no esconderijo de minhas pernas / levanto meu roupão para ver se é verdade e vejo que eles conseguiram fazer ninho entre meus pêlos e dezenas de filhotes estão se mexendo / o asco e o desespero tomam conta de mim, tento arrancar os bichos / pulo e corro chorando e chamando minha mãe ajudar a me livrar deles, mas não esqueço minha irmã / então percebo que os ratos são um truque da velha, para eu sair dali e permitir o fogo tomar conta da cama / trovoadas começam a iluminar as nuvens do teto, rezo para chover logo sobre a cama / os trovões fazem um barulho ensurdecedor / uma tormenta se forma / um vento uivando como mil lobos, entra no quarto / a janela se abre com estrondo / me acalmo ao perceber que o barulho está acordando minha irmã / mas aproveito para gritar mais alto Acorda, Amanda! Acorda, irmã / a velha parece preocupada e, a um assobio, os ratos que estavam entre meus pêlos vão em sua direção / são dezenas de filhotes e um após outro, vão subindo pelas pernas dela e entrando pela sua boca escancarada / ela está furiosa com a chuva que começa a cair sobre a cama / consegue apagar o fogo aos poucos / molha minha irmã, que começa a acordar / fico muito feliz e, alegre, pulo como uma louca para fazer a velha ir embora de vez / ela insiste em repor o fogo nos lençóis, apesar da água caindo sobre a vela / me dou conta que é um sortilégio, a água não conseguirá apagar a vela, e dou berros para detê-la, pensando que isso vai ajudar minha irmã acordar de vez: Acorda, Amanda! Acorda, irmã! / de repente, dou-me conta que meus gritos saem de minha boca como um vento que ajuda as janelas se abrirem, e isso poderá apagar o fogo, então grito mais e mais grito Acorda, Amanda! Acorda, irmã!”
Acordada com os gritos de Angélica ressoando pela casa, D. Ivone, assustada, senta na cama e toca o sino. Mateus não demora a chegar.
– Vamos até o quarto de minha filha. Vamos!
Acorda, Amanda! Acorda, irmã!
Mateus cobre os ombros da velha senhora com uma manta e coloca um braço dela ao redor de seu pescoço. Assim apoiada, vão até o cômodo de onde se ouvem gritos.
D. Ivone tenta abrir a porta trancada, bate com os punhos nela.
– Abre a porta, Angélica! Que está acontecendo? Mateus, arromba ela!...
Acorda, Amanda! Acorda, minha irmã!
Mateus abre a porta com um empurrão.
– Vá trazer um chá calmante! Corre! – ordena a senhora e ao entrar no quarto, vê Angélica de olhos fechados surgir entre lençóis molhados de suor, sentar na cama e, se debatendo, tapear o baixo ventre. Impelidos pelo vento que esvoaçam as cortinas, os postigos açoitam ruidosamente a janela. – Que gritos são esses, minha querida?... – Ao ouvir sua voz, a moça abre os olhos ainda espantados de pesadelo e os braços em sinal de acode. – D. Ivone senta a seu lado e a abraça. – Venha cá, já passou, passou... – Angélica acorda, olha em redor apavorada, examina o travesseiro e o arremessa para longe, soluça no colo de D. Ivone que a ampara com seu abraço – Pronto, mamãe está aqui. Chora, criatura. Que medo é esse? ... Chora, meu anjo, chora... Vês? Já passou? Foi-se embora quem te assustou?... – Angélica se aconchega, tremendo...
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Trecho do romance "Moscas e aranhas de guerra" de Dalton W. Reis
2 Comentários
A cada semana nos surpreendes mais!
abraços
Quanta imaginação, meu amigo!
rs.rs.rs.
Beijos,
A Condessa Descalça.