VENENO ATLÉTICO

Gustavo do Carmo


A adrenalina parecia explodir o seu cérebro. O sangue corria nas veias, ao mesmo ritmo incessante do maratonista, prestes a ficar engarrafado na artéria engordurada do coração, o que provocaria um colapso. Felisberto resiste. Rompeu a fita de chegada, imediatamente solta pelos assistentes. Caiu morto.



Felisberto estava desempregado havia nove meses. Tempo de gestação de uma vida, que praticamente já não existia para ele. A da sua esposa terminara há um ano, derrotada por uma doença rara e incurável que a deixou vegetativa por três anos. Não ouvia, não falava e não enxergava. Não teve filhos. Nem deu tempo. Juliana descobriu os primeiros sintomas da doença duas semanas depois do casamento.

O dinheiro dos pais já não tinha mais. A mãe, doente, carecia de remédios e tratamento contra o Mal de Alzheimer. O pai, com problemas financeiros, há cinco anos, vendeu a padaria que tinha e só vivia com a aposentadoria ínfima, com os medicamentos da esposa comendo a metade.

Trabalhava no telemarketing de uma financeira. Recebia um ordenado de seiscentos reais que mal dava para pagar o aluguel e as despesas do apartamento de um pequeno e velho prédio na Penha, onde morava com os pais e a esposa falecida. Quando a moça adoeceu, aí que o orçamento ficou ainda mais apertado. Por isso, começou a faltar ao serviço. Quando Julianinha morreu, ausentou-se do trabalho por um mês. Ganhou licença definitiva.

Felisberto já tinha quarenta anos e se sentia velho demais para arrumar outro emprego. Tentou trabalhar em outras operadoras de telemarketing. Só que diante das exigências do mercado selvagem, nada conseguiu. Além de não ter curso de inglês, também abandonou o segundo grau na metade.

Para a situação piorar, só faltava ser despejado... Aconteceu há um mês. E foi exatamente isso que o levou a tomar uma atitude drástica: tentar o suicídio. Beber álcool doméstico ou inseticida, cravar uma faca no peito, riscar o pulso com uma navalha afiada, enforcar-se com o cinto no chuveiro, jogar-se do alto do morro ou de um edifício bem alto. Não conseguiu nada disso. Pensava nos pais e era impedido pelo instinto de sobrevivência.

Na sua última tentativa, caminhava pela Presidente Vargas. Ia provocar um atropelamento quando viu, pendurado nos postes da avenida, repetidos galhardetes anunciando a maratona do Rio de Janeiro. Decidiu inscrever-se na hora. Pagou a inscrição com os últimos cinqüenta reais que tinha. Aproveitou a cópia dos documentos que havia levado a uma financeira no centro, onde teve o pedido de empréstimo negado. Não tinha mais crédito na praça. Só lhe restava um mês para procurar um novo lugar para morar ou encontrar a morte.

Felisberto não tinha um porte atlético. Mesmo com a fome que se iniciava com a sua nascente miséria, ainda portava uma indisfarçável barriga e alguns pneuzinhos. Ele sabia. Foi a sua idéia. Se não tinha coragem para dar cabo de sua vida, pelo menos, correria sem nenhuma preparação os quarenta e dois quilômetros da maratona.

Com a gordura que já deve ter dominado os seus vasos sangüíneos, acreditava ter um infarto provocado pela incapacidade do sangue ser bombeado durante tanto esforço. Se não morresse, poderia ganhar a corrida, obter uma boa classificação ou mesmo completar a prova, o que poderia render um dinheiro razoável para, pelo menos, pagar um mês em uma pensão barata no centro da cidade.

Na segunda pior das hipóteses, a maratona serviria de treino para uma futura carreira nas provas de fundo do atletismo. Levou para casa o kit com o número de inscrição e o chip da cronometragem, além de alguns brindes. Mesmo assim, chegou em casa abatido, dizendo logo para os pais que não conseguiu o empréstimo. O pai chorou em desespero e também tossiu. Tem um grande enfisema pulmonar que o deixou internado diversas vezes. A mãe, com o Alzheimer avançando, se esqueceu da penúria pela qual estava passando com o filho e o marido.

Acordou cedo, disposto a morrer. Vestiu uma camiseta velha, uma bermuda surrada e calçou o seu tênis encardido e furado. Foi ao quarto dos pais que ainda dormiam e beijou a testa de cada um. Pensou em escrever um bilhete de despedida, mas recuou porque não queria assustá-los com anúncios de morte. Rabiscou que ia procurar emprego.

Chegou ao local da maratona. Concorreria com milhares de pessoas. Largaria no último pelotão. Havia alguns mais vigorosos que, em grupo, pareciam desdenhar de todos que competiriam com eles. Os magrinhos eram os mais humildes. Um deles até puxou conversa. Perguntou se ele estava preparado para a corrida. Com vergonha de dizer que estava ali para morrer, Felisberto limitou-se a dizer que sim. Como resposta ouviu todo o processo de treinamento e nutrição do colega. Fingiu estar interessado. No pelotão também havia gente mais velha que os seus pais. Escutou uma senhora dizer que estava correndo apenas por prazer. Outro contava que estava se recuperando de uma ponte de safena.

O juiz disparou a pistola de ar comprimido. Lá na frente, os quenianos já disparavam. Num ímpeto impressionante, Felisberto parecia andar um metro a cada passo. Flutuava sobre os concorrentes do último pelotão. Em cinco minutos, já deixava para trás os fortes que os desdenhavam, os magrinhos humildes e, claro, os velhinhos safenados que corriam por prazer.

No décimo quilômetro, ultrapassou o segundo pelotão sem nenhuma perda de ritmo. Estava na metade da prova quando alcançou os cinco primeiros colocados, todos quenianos, que se assustaram com a aproximação do adversário desconhecido. A imprensa estranhou a aparência de Felisberto. Achou que ele era um simples coelho de prova. Os fiscais checaram a cronometragem para certificarem de que ele não era um penetra louco. Os computadores indicaram corretamente que o número 8888 estava na sexta colocação.

Mesmo com o fôlego maior que na largada, Felisberto bebeu apenas um copo de água dado pela organização. Nem sequer banhou-se nos chuveirinhos que apareciam em alguns trechos do percurso.

A adrenalina parecia explodir o seu cérebro. O sangue corria nas veias, ao mesmo ritmo incessante de Felisberto, prestes a ficar engarrafado na artéria engordurada do coração, o que provocaria um colapso que poderia fulminar a embrionária carreira do atleta suicida. Rompeu a fita de chegada, imediatamente solta pelos fiscais de linha. Caiu morto. De cansaço.

O veneno atlético de Felisberto não fez efeito. Ele, que pretendia morrer correndo, venceu surpreendentemente a maratona. Depois de acordar do desmaio e sair da observação do ambulatório, subiu ao pódio, entre quatro quenianos. Ganhou uma coroa de louros, um carro zero-quilômetro e um cheque de duzentos mil reais. Ouviu o hino nacional.

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1 Comentários

Anônimo disse…
Eu diria que felisbertos existem nas esperanças perdidas de cada um de nós. Dentro de mim; dentro de vc, meu amigo Gustavo...
Há horas em que não nos matamos por covardia, por medo da possível dor, ou do fracasso . O que seria o fracasso do fracasso.
Muitas vezes o medo de falhar imobiliza. É nesse momento que temos de reagir. Felisberto reagiu à sua maneira: matou-se!
Gostei, mas prefiro finais felizes...