O único som que se ouve é o dos ecos de
meus passos sobre o piso branco tão encerado que posso ver meu reflexo
ondulante agarrado aos meus pés.
Da entrada até o altar estendem-se
bancos de madeira envernizada, vazios hoje. Uma quietude cai como um manto sobre
todo o lugar e acho que é o mais próximo que já vi do que chamam de paz. Faz
frio aqui dentro, não apenas pela climatização, mas pelo vazio. As paredes
erguem-se até o teto com vitrais enormes e estátuas de santos se alternam entre
eles, quietas, presas no tempo, cada uma com uma pose, com um ato que
continuarão repetindo pela eternidade.
Há muitos anos eu quase vesti o
celibato, junto das roupas sacerdotais. O que os religiosos designam como
Chamado veio até mim na juventude, maravilhado pela ritualística da igreja,
pela mensagem do Evangelho, pelas esperanças no futuro após a morte pregada nos
púlpitos. Claro que não foi um momento mágico. Veio entremeado de dúvidas e de
temores. Justamente quando eu me decidi que decidir seria o melhor a fazer e
não ficar pensando demais e pesando as coisas, ela apareceu. Deus me perdeu
como um de seus mensageiros para duas belas fileiras de dentes sob lábios
deliciosos com os quais estou casado até agora.
Mas aqui, nessa igreja, o meu encontro é
com outra mulher.
Caminho quase até o meio da nave e a
encontro, sentada, os cabelos longos e lisos brilhando sob as luzes do teto.
Ela sabe que estou me aproximando, mas não desvia seus olhos do altar, não mexe
um músculo, parece até que sequer está respirando. Vem dela um cheiro de
sabonete misturado com rosas maceradas. Eu me sento ao seu lado e ela solta
entre uma pequena fenda nos lábios um suspiro.
Ela está ali, sua presença indiferente,
mas parece mais com uma ausência virada ao avesso. Os cabelos pendem como uma
cortina diante do rosto, esperando o momento certo para se abrir e começar o
espetáculo.
Está toda de preto, a saia acima dos
joelhos caem nas coxas grossas e suas pernas cruzadas terminam num salto
agulha. Abaixo do pescoço o decote revela a sugestão de um par de seios. Com o
cessar de meus passos o silêncio nos afoga com uma viscosidade perturbadora.
Olho para onde ela olha, o altar vazio, um crucifixo enorme se projetando da
parede com um Jesus com cores vibrantes e musculoso que mais parece um ator de
comercial de loção pós barba.
“Pensei que seu Deus estivesse morto”,
perguntei sem virar o rosto para ela.
“E está. Mas gosto de contemplar os
cultos primitivos. E olhe”, ela aponta para as cadeiras exageradamente
ornamentadas postas logo abaixo do crucifixo. “Não consegue ver os outros
deuses ansiosos na fila pra tomar o lugar dele?”
“Pensei que eles queimariam se entrassem
aqui.”
“Não esqueça do versículo ‘Na casa de
meu Pai há muitas moradas.’”
Faz muitos anos que eu não entro numa
igreja. A primeira vez, eu lembro, foi na adolescência e apenas por causa de
uma garota por quem eu tinha interesse. Foram os minutos mais dolorosos de que
me lembro, pois a monotonia da celebração me incomodava como o banco de madeira
desconfortável em que estava sentado e a garota sequer olhava para mim, mesmo
estando ao meu lado. Ela mantinha uma concentração incompreensível para mim no
que se desenrolava no altar. No final da missa ela se despediu apenas com um
aceno de mão, gesto que eu lembraria nos próximos dias com profunda frustração,
só postergado no domingo seguinte quando eu soube que ela decidira se tornar
freira.
A última vez foi quando eu saía de uma
reunião sobre o seminário. Dali a quatro dias eu iria de vez me tornar
sacerdote, mas quando descia as escadas e vi uma moça subindo os degraus com
graciosidade, se aproximando de mim para me entregar um folheto, foi naquele
momento que a vocação religiosa perdeu totalmente o sentido para mim. Depois
daquele dia eu nunca mais pisaria numa igreja. Até hoje.
“Sabe, esse culto, entre outras tantas
religiões, é curioso” A voz dela me arranca de minhas lembranças. “Tantas
crenças se apegam à imagem de um Deus onipotente, empunhando armas de guerra,
barba longa demonstrando sabedoria e músculos protuberantes demonstrando força
e virilidade, enquanto essa aqui tem como símbolo de sua fé a morte de seu
Deus.”
“A morte é uma coisa presente tanto
nessa religião quanto nessas paredes”, eu digo olhando ao meu redor.
Apesar da assepsia desse lugar, de sua
calmaria desconcertante, as imagens que me vem à mente são de massacres
perpetrados em nome de sua religião. Mulheres sucumbindo a uma caça irracional
por bruxas, homens queimados em fogueiras por não se submeterem a um homem,
como eles, que se dizia representante de Deus na Terra. Sangue de vítimas de
séculos e séculos se derramam por essas paredes. A criatividade humana sendo
usada para dar vida a instrumentos de tortura tão demoníacos que causam náusea
até hoje. Eu cruzo minhas pernas, suspiro e falo para ela:
“Depois do ano 324 da EC, alguns fiéis
insistiam em ter seus corpos enterrados ao redor ou dentro das igrejas, isso
porque eles queriam ter uma aproximação maior com os santos, os homens e
mulheres que dedicaram completamente suas vidas a Deus e produziam milagres e
que eram sepultados nos templos. Quem tinha mais dinheiro, óbvio, conseguia um
bom lugar dentro da igreja, o mais próximo possível de algum santo que havia
sido sepultado ali. A demanda era tanta que se tivesse um lugar que coubesse um
corpo, eles o colocavam. A coisa era tão absurda que cadáveres chegaram a ser
colocados até nos telhados e empilhados nas paredes. Agora imagine o cheiro
nauseante nesses locais, com o calor que fazia, sem essa climatização que temos
hoje aqui. Nem o cheiro constante dos incensos queimados no altar podia
esconder o fedor de carne em putrefação. As igrejas eram, sem dúvida,
sepulturas enormes.”
Ela afasta os cabelos do rosto e esboça
um sorriso torto, erguendo o queixo.
“Sepulcros caiados’, como disse o homem
ali. Belos por fora, mas cheios de ossos de mortos e toda imundície por dentro.
Que ironia, não?”
Pensei na expressão “esqueletos no
armário” e a modifiquei para “esqueletos nas paredes”. Ela pega um arquivo que
está do seu lado e tira de dentro dele um folder, que passa para mim ainda
olhando para os joelhos. Eu o pego e sinto um calafrio percorrer minha espinha.
São mais ossos ocultos. Ela fala:
“Me admira que uma religião que cultua
uma mulher ainda seja tão patriarcal. Mas levando em consideração o que disse
um de seus fundadores de que ‘a mulher deve permanecer calada’, bem, dá pra ver
que ela é só um eco das religiões mais antigas, certo?”
Eu ainda não abro o folder. Dado o
assunto que vim discutir aqui, preciso reunir um pouco mais de frieza. Talvez o
fato de ter duas filhas adolescentes tenha me feito adquirir um filamento de
emoção que desconhecia antes de ser pai. Meu suspiro é longo e parece me
esvaziar. Ela continua:
“As mulheres sempre tiveram um papel
secundário na história. Mesmo nas vitórias de grandes exércitos. Muito se fala
sobre a genial ideia do Cavalo de Tróia, mas ninguém sequer se importa com quantas
mulheres foram estupradas após o massacre, tendo sido tomadas como espólio para
unicamente satisfazer os vencedores.”
“Essa conversa toda pede um copo cheio
até a boca de bourbon.”
“Todos curtem um filme de terror onde a
mulher é possuída por um demônio. Existem fãs de serial killers que
aprisionaram, humilharam, violentaram e mataram mulheres. Uma mulher morta é
sempre o que atrai nos livros, filmes, seriados e na própria realidade.”
Sugo todo o ar que posso e olho para a
capa do folder.
Na verdade ele parece mais um cardápio.
Se olhar rapidamente, parece o menu de um restaurante. O papel não é qualquer
um, mas um caro que desconheço o nome. A capa é coberta por rosas vermelhas e a
palavra Éden flutua sobre elas, uma ironia bizarra. Há uma data muito recente
impressa, dessa semana. Quando abro o que vejo são fotos de mulheres, algumas
em posições sensuais, outras mais pornográficas, nuas, escondendo suas partes
íntimas ou de pernas totalmente abertas. Todas elas estão divididas em
categorias.
A primeira parte é intitulada Ninfetas.
Fotos de mulheres entre 16 e 25 anos pairam ao lado de informações sobre Cor,
Idade, Peso, Busto, Quadris e Nacionalidade. Elas sorriem como se houvesse uma
arma apontada na sua direção ou fazem expressões eróticas, mas todas tem os
olhos injetados.
A outra categoria é chamada Milfs.
Mulheres mais velhas, entre 40 e 50 anos, visivelmente alteradas com cirurgias
e implantes. Suas fotos dançam ao lado das mesmas informações. A princípio,
vendo essas duas características, você pensaria que esse é um menu para
acompanhantes de luxo, mas não.
Junto às informações corporais das
mulheres estão valores em dinheiro. São preços exorbitantes, numa primeira
olhada, mas na verdade estamos falando sobre pessoas. Essa quantia é dada como
o valor de um ser humano. Isso aqui na minha mão é um menu de tráfico de
mulheres, que você escolhe como se estivesse escolhendo qual prato principal e
qual acompanhamento deseja para hoje. Isso tudo escondido sob a camada
religiosa de uma igreja que, como disse minha amiga aqui ao lado, ironicamente
cultua uma mulher.
“Viu o meu valor aí? Eu até poderia me
sentir lisonjeada, não fosse a bile subindo à minha garganta.”
Em outra seção a palavra Virgens
intitula com arabescos para demonstrar alguma importância. Garotas entre 14 e
20 anos, nem todas mostrando o rosto, com as pernas abertas para que suas
vulvas sejam expostas num melhor ângulo, tendo nas Informações o acréscimo de
atestado de virgindade. Os valores, claramente, são maiores, havendo inclusive
uma nota de rodapé anunciando que a cada mês é feito um leilão com elas.
Meu suspiro faz minha colega recomeçar a
falar.
“E o mais engraçado é que essa mulher
que eles cultuam é uma virgem, não é mesmo? O símbolo da pureza. Sabia que,
diferente de muitas crenças, nem sempre as virgens eram sacrificadas? Quando um
viking recebia um funeral uma escrava virgem era trazida diante do povo e era
prostituída basicamente por todos os homens do acampamento. Ela precisava ter a
semente de todos os homens derramada em si, ser corrompida e desonrada para que
estivesse preparada para o sacrifício. Ela passava praticamente 10 dias com as
pernas abertas para que os homens a penetrassem."
“Então uma velha chamada Anjo da Morte a
embebedava. A garota bebia até cair. Então ali, bêbada e inconsciente, uma
origem do que se faz muito hoje em dia em boates com dormonid, ela era
novamente desonrada, passando 6 vezes por 6 homens, como se fosse um prato de
comida. Depois que os homens estavam saciados a jovem era colocada ao lado do
cadáver e a velha, o Anjo da Morte, afundava uma lamina no peito dela. Por
várias vezes a velha enfiava a faca no peito da jovem, como um último ato de
penetração, uma espécie de coito brutal.”
Não era muito diferente da atualidade,
eu penso. e o show de horrores continua. Na próxima seção o título é Fetiche,
uma palavra que serviria para despertar alguma repulsa, acho, não muito
condizente com o conteúdo. Me pareceu mais um preconceito velado. Fotos de
mulheres passando dos 60 anos, mulheres obesas, mulheres com algum membro
mutilado e mulheres negras se misturavam nessa categoria. Meu estômago
revoluteia e eu tapo a boca contendo um acesso de vômito. Fecho os olhos e
respiro fundo novamente.
Ainda nessa categoria os valores são bem
baixos. Me chama a atenção o valor das mulheres negras ser o menor. Isso tudo
parece surreal, mas tendo trabalhado nesse meio durante tanto tempo eu sei até
onde a cabeça de alguns homens pode ir. Mesmo assim o choque de algumas imagens
e informações é inevitável. O que me alivia, pois ser insensível a isso tudo me
deixaria preocupado.
No entanto eu sei que a última parte é a
pior. Sempre é a pior e, sei também, que é a mais lucrativa.
Nem dou atenção para o título e meus
olhos veem e tentam desver ao mesmo tempo.
Penso nas minhas filhas em sua tenra
infância e o cuidado que eu sempre tive com elas, como se fossem bonecas de
porcelana que a qualquer movimento poderiam quebrar. Penso em toda a inocência
que elas possuíam e na minha frustração em saber que nem sempre poderia
protegê-las do mundo. O que sempre me intrigou foi saber como algumas pessoas
teriam coragem de fazer algum mal a seres tão frágeis e inocentes. Nunca os
entendi e continuo sem o menor desejo de entender.
As fotos aqui são de criaturinhas entre
2 e 10 anos. A maioria são garotas, mas também há garotos. Meu estômago parece
ser apertado por uma mão forte quando há uma pequena seção com bebês e os
valores absurdamente altos.
Tudo isso aqui parece um pesadelo, um
sonho construído no mais profundo círculo do inferno, fedendo a podridão e
fezes. Homens que professam uma religião promulgadora de um deus de amor, cujo
livro sagrado fala “deixai vir a mim os pequeninos”, vendendo mulheres e
crianças a homens pervertidos, bebedores da taça de imundície do próprio diabo.
Às vezes só acho que se Deus realmente
existe e me ama, bem, Ele deveria se mostrar a mim numa forma humana, de
preferência um homem, e me deixar dar um chute muito bem dado em seu saco divino.
“Posso imaginar o que você está sentindo
nessa seção. Mas só imaginar. Tivesse eu filhos sentiria o mesmo nojo que sinto
se desprender de sua carne agora.”
Passo uma mão espalmada no rosto e sinto
uma fina camada de suor me cobrir, um suor frio e que me faz ter repugnância de
mim mesmo. A ojeriza é uma mão invisível a me socar o estômago.
“Há quanto tempo estão agindo?”
“Outra coisa revoltante: há 2 anos e
meio. A coisa aqui era muito bem encoberta. Não fosse uma freira novata
denunciar, eles talvez prosseguissem por mais 2 anos, ou mais. Tudo não passou
de sorte, uma ironia do acaso que fez esse material aí chegar às mãos dela.”
“O padre sabe de tudo, obviamente.”
“Sim. Ele deve estar chegando pra nos
ver. Peço que mantenha o sangue frio.”
Olho para meu lado direito e vejo um dos
mais famosos símbolos dessa religião: o confessionário. De madeira brilhante e
com duas entradas cobertas por cortinas de veludo cor vinho, uma luz acima está
apagada, o que indica que ele está livre. Nesse lugar a confissão se mantém em
segredo entre o padre e o fiel. Nada no mundo poderia dar ao sacerdote a
permissão de contar a alguém os segredos confessados naquele lugar. Sob pena de
automática excomunhão (latae setentiae) o que for dito ali morre ali,
não importando o conteúdo. O padre poderia até saber antecipadamente da morte
de uma pessoa através de quem confessava, mas não poderia avisar às
autoridades. O segredo sacramental é inviolável e eu me pergunto quantos desses
homens que aceitaram a chamada vocação não tiveram noites insones servindo como
túmulos de segredos revelados apenas a eles.
Poucos minutos depois aparece um homem
de uma parte oculta atrás do altar, trazendo uma cadeira branca de plástico ao
lado do corpo. Sua barriga proeminente estica uma camisa branca de botões,
encimada pelo colarinho sacerdotal. Sua cabeça é redonda e coroada por cabelos
castanhos que estão rareando e embranquecendo. Olhos miúdos, mas
perscrutadores, bochechas salientes. Numa primeira olhada você lembra daqueles
monges que aparecem em imagens nas embalagens de achocolatados ou leite. Ele
parece ter saído da Idade Média e serviria muito bem para ser Papai Noel no fim
do ano. Toda a sua pessoa emana uma simpatia atraente. Ele se dirige até nós
com um sorriso de vovô no rosto e uma mão com pelos já brancos nas costas
estendida.
“Boa tarde. Eu sou o Padre Azevedo.”
Minha colega já havia tomado o folder de
minha mão e o guardado em seu arquivo. Com um enorme esforço eu aperto a mão do
homem na minha frente. Ele cheira a algo mentolado. Aperta a mão de minha
colega e eu percebo, mesmo que faça o mais discretamente possível, que ele lhe
analisa o corpo como um profissional.
“Em que posso ajudá-los?”
A conversa que se segue é rápida, clara
e desprovida de adornos. Minha colega fala mais, o que me alivia, já que meu
sangue continua a ferver. Ouvindo tudo sem interromper, não há nenhuma
expressão no rosto do padre que o denuncie. A falta de sentimentos é quase
bizarro. Ela termina falando da invasão aos computadores da paróquia, da
denúncia da freira, do acesso que conseguimos ao material, colocando à frente
dele o nojento folder.
Não há uma só ranhura de mudança na
expressão do padre. Seus olhos, cujo brilho lembraram os do meu avô, não
vacilam. Ele apenas dá um profundo suspiro, sua enorme barriga numa ascensão e
queda peculiar. Olha para mim, bem nos olhos, depois para a minha colega, com o
mesmo olhar fixo. Ergue-se da cadeira, estende seus braços, juntando suas mãos
em nossa direção.
“Bem, façam seu trabalho.”
Aquilo me perturbou sobremaneira. Ele
está consciente plenamente de sua culpa, de seus atos e de sua total
participação nessa obra demoníaca toda. Nada em sua expressão corporal denuncia
medo, apreensão, arrependimento. Ele apenas está ali, de pé, nos oferecendo
seus pulsos para colocarmos as algemas. Essa atitude de superioridade, como se
soubesse de algo que nós não sabíamos, faz o inferno dentro de mim aumentar.
“O senhor não tem nada a dizer?”
Ele olha para a minha colega e responde:
“Posso falar na delegacia, ao lado de
meu advogado.”
Sua voz não possui estremecimento. É
calma e branda.
“Escute aqui, seu...”
A mão de minha colega aperta meu ombro
com força. O padre olha para mim com seu semblante de monge budista e ergue as
sobrancelhas.
“O que acha que é isso tudo, policial?”
Minha respiração está quente e
apressada. Sinto suor se formar na minha nuca e escorrer pelas costas.
“O que quer dizer com isso?”
“Você já leu a parte de trás do folder,
policial? Viu o nome dessa organização?”
Pego o folder que minha colega já começa
a tirar do arquivo e viro para ver suas costas. No canto inferior esquerdo há o
desenho de alguns tentáculos serpenteando a palavra Hidra.
“Hidra, policial, porque se vocês nos
cortam uma cabeça, nascem outras. Isso aqui é um negócio onde corre dinheiro,
policial. Você pensa que derrubando isso aqui vai desmoronar o restante? A cada
criança que você salva mais cinco tomarão seu lugar.”
Nessa hora um sorriso rasga o rosto do
padre, um sorriso de deboche, escárnio, um desprezo por tudo e por todos. Minha
colega pega suas algemas na bolsa e as coloca nele enquanto fala:
“O senhor não tem vergonha de fazer
parte disso?”
O padre suspira.
“É apenas um trabalho, minha querida
policial.”
“São pessoas!”
“Nunca leu a Bíblia? Escravos, mulheres
sendo vendidas? Isso, policial”, ele gira a cabeça para mostrar a grande
estrutura da igreja e em seguida aponta com ela para o folder, “é a Obra de
Deus.”
Nesse momento eu não tenho controle
sobre o meu corpo. Percebo que o padre descansou todo o corpo nos joelhos, mais
de 100 quilos apoiados sobre eles. Eu me aproximo e piso com toda a força, 5 ou
6 quilos de pura raiva, com o calcanhar esquerdo em sua patela direita. Sua
rótula é esmagada e sua perna se dobra, para trás. Exatamente como o joelho
articula, só que ao contrário.
Ele grita, urra e seu corpo desaba no
banco em que estávamos sentados no momento em que nos afastamos para os lados.
Minha colega coloca a mão em sua boca escancarada, olhando para mim com olhos
arregalados.
O padre tem todo o rosto banhado em
lágrimas, a pele vermelha prestes a explodir. Ossos quebraram, cartilagens
dilaceraram, ligamentos se romperam. A dor que ele está sentindo não é nada
comparada à dor que ele já causou.
Minha colega ajeita o corpo e pega o
celular para chamar a ambulância.
“Rápido, o padre sofreu um acidente. Ele
caiu e fraturou o joelho.”
Ela olha para mim com seus olhos
cristalinos. Eu sorrio. O padre ainda se debate no chão, com uivos de dor.
Sim, ele está certo. Nós decepamos
apenas uma cabeça da hidra, mas foi muito prazeroso causar dor ao servo de
Deus. Não foi esse Deus se fazendo presente aqui para receber o que merece por
se manter calado diante de tanta maldade, mas parte do peso que eu senta no
peito foi descarregada em seu representante aqui na Terra.
Me viro para o altar e, erguendo os braços
e falando mais alto que os guinchos animalescos do padre, eu grito:
“Ocupante enim nonnumquam Odium
generis Humani!”
“O que é isso? Uma oração?”, pergunta
minha colega, agora ao meu lado, colocando uma mecha de seu cabelo atrás da
orelha e encarando também o grande crucifixo.
“Não, é Sêneca.”
“O que significa?”
“Às vezes o ódio da raça humana supera.”
Hemerson Miranda
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