Breviário das Horas Mortas



Domingo, 1 de setembro

Querido diário,
estou fritando dois ovos cujas gemas moles ficaram tão perfeitas que agora eu estou de braços cruzados e afastado admirando minha própria obra de arte, com um orgulho que sinto poucas vezes e por isso passo a rir de mim mesmo.

Preparo algumas torradas e em seguida o café. Quando a cafeteira começa a chiar eu grito “Nanda!” e vou até o banheiro. A tampa do vaso está escancarada e ele parece bocejar. Pela porta aberta eu consigo ouvir o arrastar dos chinelos. Ela me ouviu e levantou da cama. Lavo as mãos e volto para servir a mesa. A cafeteira preenche a cozinha com o delicioso aroma do café.

Ainda é cedo, mas eu estou completamente exausto. Não deixo ela perceber isso. Jamais deixarei ela perceber isso. Para me ajudar e para minha sorte ela está de costas, olhando pela janela. Faz um pouco de frio, e ela está nua. Veio com o cobertor até a cozinha, mas o deixou cair aos seus pés, talvez para receber a revigorante brisa matinal, assim que se colocou diante da janela. Dá para ver sua pele arrepiada. Felizmente estamos no décimo andar e a visão que temos dessa janela é a extensão do rio. Então não tem perigo de alguém estar bisbilhotando. A cafeteira para de gemer.

Seu corpo é  quase muito magro, mas lindo. Suas costas reverberam a atração que minhas mãos sentem de acariciá-la. Seu tronco se ergue resoluto sobre a curvatura da bunda, cuja nádega esquerda tem a tatuagem de um coração cor de rosa traspassado por uma flecha. Seus cabelos negros estão presos num coque desleixado que eu mesmo fiz.

Vou até Nanda e lhe dou um beijo breve no ombro nu. Ela não se mexe e sequer sinto seu corpo estremecer. Me abaixo para pegar o cobertor e cobrir seu corpo. Meu rosto está bem próximo de suas pernas, de sua bunda. Respiro fundo e consigo sentir seu perfume azedo de quem acabou de acordar. A cubro, sentindo sobre o cobertor seus mamilos túrgidos.

“Venha, meu bem.”

Eu a conduzo delicadamente até a mesa, onde ela senta e aconchega-se no cobertor. Vou servindo o café em nossas xícaras e os ovos ainda desprendem uma espiral de fumaça. Nanda olha para a mesa, mas também olha para o nada. Seu olhar está perdido num horizonte que só ela vê. Olha para os objetos como se nunca tivesse visto tais coisas e ao mesmo tempo se resignando que, a bem da verdade, nem um deles tem algum significado. Há cinco anos Nanda está perdida dentro de seu próprio corpo. Perdida, essa é certamente a palavra correta.

Afasto uma mecha rebelde de seu cabelo e brinco com ela.

“Você é a única mulher que eu conheço que acorda parecendo uma modelo.”

Nanda não consegue rir, não consegue demonstrar sua alegria a não ser no seu peculiar sorriso que é um breve suspiro expulso de entre seus lábios, lábios que se curvam para um lado, como que puxados por um fio de marionete, ficam congelados por um tempo e depois derretem, morrem, até voltar ao seu estado normal. Ela ergue a cabeça e seus olhos claros me perscrutam e eu sinto um nó se formar em minha garganta. Por uns segundos ela não sabe quem eu sou, até que seu frágil sorriso se forma novamente me dando a entender que me reconheceu.

Me contenho ante a vontade de acariciar seu rosto, pois se o fizer certamente eu vou chorar.
Pego uma colher de sopa e com ela levo um pouco do café até a boca de Nanda. Ela ama café, então suga o líquido com prazer. Corto um pedaço de ovo, que quebra a gema e deixa o líquido amarelo escorrer no prato. Levo uma garfada de ovo a ela e depois passo um pedaço de torrada na gema líquida e lhe dou na boca. Seus olhos estão fixos em algum fantasma que só ela vê. Ou fantasmas. Talvez para ela um mar de seres incorpóreos nos rodeie. Seus olhos são dois poços sem fundo. Meus dedos voltam de sua boca com gema e saliva.

“Ficou gostoso, não foi?”

Ela mastiga. Lhe dou mais café e bebo um longo gole do meu. Na mesa ela fica desenhando um circulo com o dedo indicador no tampo de granito. Olho para meu relógio e percebo que em dez minutos vai começar Bob Esponja, o desenho preferido dela. A TV é o único outro som que quebra o silêncio dessa casa. O outro é minha própria voz, curtida em cigarros por alguns anos, vício ao qual eu já me livrei, e doses de conhaque antes de dormir.

Minha mente começa a divagar em pensamentos que compartilhava com Nanda quando ela ainda falava. Sobre pessoas desinteressantes. Eu nunca cheguei a acreditar que existam de fato pessoas desinteressantes. Basta procurar direito. Imagino que nem todo mundo necessite ser original. Na verdade eu acho que todos nascemos originais, então crescemos e dizemos que precisamos trabalhar nossa individualidade, individualidade essa, pelo muito que se vê hoje em dia principalmente na internet, que consiste em se parecer cada vez mais com os outros. O tempo e a necessidade nos faz perder nossa originalidade e nos tornamos ecos de outros que conhecemos.

A tosse de Nanda me desperta.

Lhe dou mais uma colherada de café. Esses diálogos acabaram porque essa mulher de apenas 25 anos, de alguma forma, esqueceu. Perdeu-se dentro de si mesma e esqueceu o caminho de volta. Agora o que temos é apenas meu monólogo. Um solilóquio que ecoa nessas paredes que possuem três ou quatro demãos de silêncio e tristeza. Nanda sempre dizia que minha voz era bonita. Ah Nanda, se você soubesse o quanto eu estou cansado de ouvir a minha própria voz.

Hoje é dia de faxina. Enquanto ela vai alternar entre assistir desenhos e dormir, minha felina, eu vou dar uma geral nesse apartamento e preparar um lugar específico para nossa nova companheira que é uma gatinha que vamos pegar amanhã à tarde. Como eu já consigo detectar a maioria das emoções de Nanda em seu constante silêncio, percebi que ela ficou muito feliz quando fomos ontem ao petshop ver uma para comprar. Não demorou muito até ela se apaixonar por uma filhotinha em específico, apontando em câmera lenta para ela, cujos olhos curiosos se fixavam em Nanda. Quando lhe perguntei que nome gostaria de dar a ela, apontou para um pacote de ração para cachorros do nosso lado. A principio não entendi, até que peguei o pacote e aproximei da mão dela. Ela apontou para a palavra “canina”, então tapei com minha mão as duas primeiras letras e ela soltou seu peculiar sorriso. A gatinha se chamaria Nina.

Terminamos de comer e eu levo Nanda para a sala, liguei a TV e vou ao quarto pegar uma calcinha e um sutiã. Ela, com um movimento negativo de cabeça, o rejeitou, então vesti apenas a calcinha, fazendo cocegas em seu pé quando o levanto, o que causou um espasmo em seu corpo frágil e um barulho de algo entre uma risada abafada ou tosse. Um fato que sempre me deixou curioso é que Nanda não consegue fazer afirmações com a cabeça, só negações. Das únicas coisas normais que ela fazia antes desse seu atual estado, o único resquício é a negação. Acomodei o cobertor em seu corpo e lhe dei um beijo na cabeça, mas ela já entrara no mundo da Fenda do Biquini.

Há 5 anos a mente de Nanda era uma das coisas mais apaixonantes que eu já havia conhecido. Sua cabeça era um arquivo muito bem organizado, uma sala minimalista, limpa e clara. Agora é um quarto em ruínas, papéis espalhados e desorganizados pelo vento que entra de uma janela quebrada junto com o raio amarelado do sol. O piso só possui estilhaços que machucam.

Meu suspiro foi tão profundo diante dessas lembranças que ela virou a cabeça para mim. Sorri, para que ela soubesse que estava tudo bem.

Começo a tirar a poeira dos móveis, a varrer o piso, a passar pano, a colocar a roupa para lavar na máquina, a lavar o banheiro. Eu fui um desses homens que durante a infância e adolescência vivia sob o jugo do machismo. Éramos três irmãos, dois homens e uma mulher, mas meu pai não permitia que meu irmão ou eu chegássemos sequer perto da cozinha. Isso de lavar louça, limpar a casa, eram trabalhos unicamente para as mulheres, então nossa irmã era, como diziam, perfeitamente prendada, enquanto nós dois sequer sabíamos dobrar uma camisa.

Isso mudou para mim quando conheci Nanda. Foi a mulher mais independente que conheci. Ela fazia questão de me ensinar tudo que eu não sabia, para que eu não passasse o resto da vida dependendo dela ou de outra pessoa. Nanda me ensinou coisas sobre a vida que meus pais, talvez por amor, vai saber, faziam questão de esconder de mim. Por isso quando ela me pediu em casamento, isso mesmo, ela fez o pedido, eu não tive dúvidas de que gostaria de passar o resto da minha vida ao lado dela.

Agora veja essa situação. Nanda tornou-se totalmente dependente de mim. A vida tem um humor negro absurdamente escabroso.

Da porta da cozinha eu consigo ver a parte de trás da cabeça dela. Ela fica agora ali, parada, inerte, como uma casa vazia, abandonada. Seu corpo que vivia dando passos impossíveis de dança, agora se curva ante o cansaço da apatia.

Nanda era a alegria dessa casa. Agora a casa reflete seu próprio estado. Sua cabeça agora é uma câmara de eco onde ela está trancada. Faz 5 anos, mas a dor no meu peito continua a mesma. E sempre que eu paro para ficar pensando nisso eu não consigo evitar. Eu sempre choro.


Terça, 3 de setembro

Querido diário,

Nina é uma bola tricolor de pelos com uma disposição invejável e que não para quieta dentro do apartamento. Desde que chegou foi toda a alegria de Nanda. Ela não consegue acompanhar a gatinha, claro, mas seu sorriso agora está mais constante. Posso ver pela parca expressão corporal de Nanda que ela está feliz e saber e ver isso me deixa feliz também.

Acabamos de almoçar e as duas estão no chão. Nanda não consegue jogar a bolinha para a gata pegar, mas a gata não tem um espírito julgador, na verdade não está nem aí. Ela corre, dá piruetas, se esfrega e rodeia o corpo de Nanda como se estivesse em órbita. A pior parte é que ela ainda não aprendeu a usar a caixa de areia. Aí sobra para mim.

Amanhã é aniversário de Nanda. Então o banho especial que dou a ela todo sábado foi transferido para hoje. Peguei dois dias de folga para fazer com que ela comemore bem o seu dia. Assim que eu terminar de lavar e secar a louça do almoço e organizar a estante de livros, vamos para o banheiro e eu espero realmente que Nina dê uma pausa.

Com a gatinha a lhe rodear o corpo Nanda ergue lentamente sua cabeça e olha para mim quando passo entre elas. Eu paro. Ela continua me encarando, mas não com aquele olhar de quem não sabe quem sou. A curiosidade de seu olhar agora é diferente e, por mais incrível que me pareça,  aparenta ser nova. Eu sorrio e me abaixo para a olhar na mesma altura. Ela não costuma fazer isso. Nina começa a querer brincar com meus pés e eu tento mantê-la quieta, mas sem tirar os olhos dos olhos de Nanda.

Sem que algo mude em seu rosto ela faz uma coisa que é muito rara na nossa vida. Nanda ergue sua mão direita e a leva até meu rosto. Eu não fiz a barba, então tem pelos em vários locais e ela os acaricia. Passa a mão na minha boca, como que querendo sentir a maciez de meus lábios. Sinto um nó se formar na minha garganta e antes que eu caia em prantos começo a conversar com ela.

“Tá animada pro seu aniversário amanhã?”

Não espero resposta. Ela sequer presta atenção nas minhas palavras, entretida que está roçando os dedos no canto de minha boca. Fazer 26 anos amanhã para ela não tem mais significado algum.

“Daqui a pouco a gente vai tomar aquele banho, tá?”

Ela sobe os dedos até o canto de meu olho, então seus olhos me encaram e, fazendo formar um calor forte dentro do meu peito, ela sorri para mim. Ela sorri e sinto sua mão tremer. Pego sua mão e dou vários beijos nela. Ela continua sorrindo, como se depois de muito tempo lembrasse de quem eu sou e o que estou fazendo aqui, o que eu significo na vida dela. Não consigo imaginar o que ela está sentindo. Não consigo sequer visualizar o que ela está vendo ou tentando me dizer. Só penso nela, encarcerada nessa prisão de carne e gritando sem que eu possa ouvir.

Me aproximo e lhe dou um beijo na bochecha, me levantando em seguida para que ela não veja as minhas lágrimas. Não demora muito e a atenção dela se volta para Nina, que está lutando com a barra de seu vestido.

Termino a estante de livros que fica em nosso quarto. Nós dois temos gostos literários semelhantes, então nossa coleção é tudo o que a gente leu e gostou. Algumas noites eu me disponho a ler para ela antes de dormir, principalmente algum livro de Henry Rider Haggard. Os dois volumes sobre A Senhora de Nossa Vontade, são os preferidos dela e eu tenho quase decoradas algumas frases.

Pego todo o necessário para dar banho em Nanda. Temos que fazer a depilação completa, cortar e fazer as unhas, hidratar o cabelo. Aprendi a fazer a chamada trança espinha de peixe e ela fica bem contente quando está com ela.

Amanhã minha irmã e a mãe de Nanda virão para comemorarmos. Virão à tarde, pois se tornou um ritual ela e eu apenas comemorarmos durante a manhã, quando eu lhe faço alguns mimos. Isso desde que casamos. Nada disso mudou.

Coloco todas as coisas no banheiro e vou para a sala pegar Nanda.

Não consigo reprimir o sorriso quando vejo a cena. Ela está deitada no tapete com a gata sobre seu busto, que fica brincando com uma mecha de seu cabelo. Nanda sorri, fazendo o som familiar de quando está se divertindo. Eu chego junto e tiro a gata de cima dela, a coloco no sofá e lhe entrego um mordedor que deixei esperando esse momento chegar.

Volto para Nanda e ela está sentada no chão.

“Muito bem, agora vamos pro banho, tá bem?”

Hoje está sendo um dia de surpresas e Nanda faz coisas que costuma não fazer, como agora, em que ela ergue os braços na minha direção. Eu sorrio.

“Ora, mais que folgada! Quer ir no colo?”

Eu a ergo sem muita dificuldade, enlaçando suas costas e coxas, pois Nanda emagreceu bastante nos últimos anos. Não que ela não coma, apenas seu corpo parece estar cansado para manter um peso melhor. Fazemos exercícios regularmente e ela ainda tem consigo a beleza do corpo que conheci. Ela enterra a cabeça entre meu ombro e pescoço e sinto o aroma leitoso de seu hidratante. Entramos no quarto e a coloco de pé.

Ela se tornou muito obediente. Antes ela sequer permitia que eu a ajudasse em alguma coisa. Em 5 anos, nem uma única vez ela foi malcriada ou ficou emburrada. Como se estivesse consciente de meu esforço, ela apenas faz o que tem de fazer, se entregar a uma dependência que sabe não ter remédio. E é por isso que ainda sou apaixonado pela personalidade dessa mulher.

Ela ergue os braços para que eu suba seu vestido. Está usando apenas calcinha. Seus pequenos seios se mantém numa curvatura firme enquanto ela deixa os braços erguidos. Os mamilos acobreados se intumescem quando sente a brisa fria. Eu abaixo seus braços e começo a baixar sua calcinha, passando-a pelos pés. Já tem um bom número de pelos púbicos no seu sexo desde a última depilação. A visão dela nua, de seus seios, de sua pele alva e macia, de seu sexo e do cheiro gostoso que ele emana me excita, mas hoje a minha ereção é a escultura em carne da própria tristeza.

Deixamos de fazer amor há algum tempo. Foi estranho desde o começo, mas eu seguia em frente porque tanto ela quanto eu ainda tínhamos desejo um pelo outro. Só que eu me senti estranho. Nanda não tem mais total controle sobre seu corpo. Ela fica inerte na cama, os olhos perdidos, a pele sem reação. Ela sequer tem lubrificação. Então eu me sentia mal. Eu sentia como se na verdade estivesse cometendo um estupro, pois eu estava invadindo um corpo cuja vida não se manifestava.

Passei apenas a ficar acariciando seu corpo, observando, sentindo o cheiro e o gosto quando o beijava, mas já não conseguia passar disso.

Sim, me envergonho do que vou dizer, mas por duas vezes tentei encontrar prazer em outra pessoa, e apesar de o corpo encontrar satisfação, minha cabeça não conseguia. Não vou me vangloriar por isso. O misto de sensações que me acometeu é tão grande que eu não seria capaz de descrever.  

Tínhamos planos. Queríamos filhos, viajar. Ela terminaria seu curso de psicologia, abriria um consultório e moraríamos na capital do país. Eu terminaria meu curso de engenharia, seria famoso e escreveria um livro. Isso tudo se tornou escombros de um naufrágio na beira de uma praia deserta.

Depilo suas pernas, seu sexo. Corto suas unhas. Começo a lhe dar banho, ensaboando, esfregando, sem me conter algumas vezes que minha mão se demore em suas partes macias, carnudas e eróticas. Isso tudo conversando, recitando meu monólogo diário, enquanto ela é uma boneca sem vida que eu vou cuidando com carinho. Esfrego seus cabelos e ela demonstra alguma reação, olhando para mim enquanto a água enxágua sua cabeça. Seus olhos tremem e se ela estiver chorando debaixo desse chuveiro eu nunca saberei.

Eu a abraço, nossos corpos nus banhados pela água quente. Ficamos assim por 10 minutos, 20 minutos, meia hora. Ela não vai a lugar nenhum e eu não quero que ela vá. Posso sentir seu coração batendo de encontro ao meu peito, sua respiração no meu pescoço. Desligo o chuveiro, mas permanecemos ali, abraçados, tempo suficiente para a água escoar e começarmos a sentir frio.

Eu me afasto e olho para ela. Nanda tem a expressão inocente de uma criança. Sua mente insubstituível está presa nesse corpo de mulher. Eu a beijo na boca, mas como sempre, ela não reage. Continuo lhe dando vários beijos rápidos até fazê-la sorrir e eu sorrir também.

Pego a toalha, a envolvo e a ergo novamente no colo, levando-a para a cama. Quando a deito e me afasto, ela segura meu braço. Isso também é muito raro de acontecer. Ela não quer que eu saia? Eu me aproximo mais e ela, súbito, pega em meu membro.

Quase 5 anos depois do que aconteceu, sob a luz âmbar que entra pela janela, nós fazemos amor.


Quarta, 4 de setembro

Querido diário,
acordei com a sensação boa de uma ótima noite de sono após fazer amor. A tristeza pareceu se romper durante a madrugada. Nanda conseguiu deixar escapar gemidos e arquejos, coisas que há muito tempo eu não via seu corpo manifestar. Talvez isso tudo seja indício de um novo capítulo em nossa vida, eu penso, tentando empurrar o pessimismo que surge no horizonte.

Faço o mínimo de movimento e barulho possível para não acordar Nanda. Molho o rosto no banheiro e me visto para sair. Nina serpenteia entre minhas pernas e eu coloco sua ração. Em seguida saio para a rua. A brisa fria matinal já começa a se dissipar ante o castigante sol. São duas quadras até a padaria.

Desde a adolescência eu tenho uma mania besta em datas comemorativas. Principalmente aniversários. Sempre fiz isso com os meus e passei a fazer com os da Nanda também. É fato que as datas que comemoramos em si mesmo não significam nada. Quando o sol se pôs e em seguida nasceu ele não fez pensando em nenhum de nós, não inculcou a um novo dia uma comemoração por que eu ou você nascemos nessa mesma data. Nós é que damos valor a essas coisas, imputando sentido nelas. Como a virada do ano e aniversários. É uma ilusão que compartilhamos. O universo nos vira as costas com sua indiferença infinita. A angústia também é cósmica.  Mas mesmo assim eu teimo em buscar algo no dia, um acontecimento, um sinal, de que este é, de fato, um dia especial. Sou um idiota, eu sei, mas é assim que eu sou.

Então enquanto caminho até a padaria eu observo tudo ao redor. Talvez o sorriso de alguém seja uma indicação de que ele saiba que dia é hoje? Os pássaros no céu em um voo sincronizado estão comemorando? O dia permanece ensolarado por saber que hoje é um momento especial para Nanda e não vai deixar que nuvens escuras maculem o céu?

Bem, não custa sonhar.

O efeito doppler se manifesta num grupo de crianças em bicicletas que desce a ladeira em alegria eufórica. Na calçada uma senhora caminha lentamente sob um guarda-chuva. Em um apartamento no terceiro andar uma moça de belos cabelos loiros está na janela retirando pelos de sua sobrancelha com a ajuda de uma pinça e um espelhinho redondo. Um homem com cabelos de duas cores, loiro e negro, tem as mechas tão perfeitamente esculpidas em creme que parece mais uma sobremesa apetitosa. Quando passa por mim o seu perfume fica me acompanhando.

Chego na padaria e há uma fila no caixa, ninguém no balcão e umas poucas mesas ocupadas. O cheiro é de café, misto quente e ovo. A moça que está no balcão passando algum líquido nos vidros ergue o tronco e me oferece um sorriso e um bom dia, ambos salpicados com açúcar e canela.

“Bom dia. Eu encomendei ontem um bolo prestígio pra pegar hoje de manhã.”

É o bolo preferido de Nanda. Meu coração acelera só de imaginar seus olhos se arregalando e seu sorriso peculiar nascendo ao ver o bolo que vou levar.

“Ah sim, só um momento, isso é com a Branca. Já volto.”

Ela caminha para dentro do estabelecimento gritando “Branca!” e eu olho para uma mesa perto de mim. Ainda não são nem 6 horas, mas há um copo de whisky cheio até a metade, um envelope do lado e uma bengala escorada na cadeira. Sinto meu corpo dar uma breve sacudida só em pensar no líquido âmbar rasgar minha garganta tão cedo.

“Oi! É você que veio pegar o bolo?”

Me volto para o balcão e meu cérebro trava. A mulher que chamam de Branca é negra como ébano. Lindos olhos amendoados e lábios carnudos. Eu evito esboçar um sorriso por causa da minha idiotice para que ela não pense que estou rindo dela. Então dou um tranco na cabeça e volto a funcionar.

“Sim, sou eu. É o de prestígio.”
“Fernanda, certo?”

Ainda estou lento por causa do antagonismo dessa mulher com seu nome, então levo segundos para entender que ela está falando do nome desenhado no bolo.

“Isso. Fernanda.”
“Só um momento.”

Ela some em outro local do estabelecimento e eu me viro quando ouço ao fundo a porta de um banheiro se abrir. Um senhor de cabelos tão brancos como algodão se dirige em passos vacilantes até a mesa onde está a bengala, o envelope e o whisky. Ele senta com certa dificuldade, abre o envelope e lê seu conteúdo. Imagino que sejam péssimas notícias. Suas mãos tremem ao segurar o papel. Deposita o que leu na mesa, pega o copo e bebe metade do líquido com sofreguidão. Observo seu pomo de Adão sob a pele flácida subir e descer.

Só então percebo que estou petrificado olhando para ele, me virando rapidamente antes que ele perceba. Branca volta com uma caixa vermelha e dourada. Seu sorriso chega a ofuscar.

“Aqui está. E dê meus parabéns a ela.”
“Ah, muito obrigado.”

Sorrio e vou para o caixa. Sou o terceiro da fila. O senhor da carta ergue o copo vazio pedindo para ser cheio. Ele parece ser um cliente assíduo, pois a moça que me atendeu no balcão primeiro faz alguns gracejos enquanto o atende.

Chega minha vez. Mais um par de dentes me cumprimenta. Faço o pagamento e volto para casa. Quando abro a porta com certa dificuldade por causa do volume que carrego sou recebido por Nina miando. Eu faço “xiu!” para que ela não acorde Nanda, mas a casa toda tem um silêncio congelado.

Coloco a caixa na mesa da cozinha e desempacoto. Faço um café e umas torradas para levar na cama, mantendo o mesmo ritual de anos depois que casamos. Nina está brincando com algum pedaço de papel na sala.

Quando termino de preparar tudo, vou até o quarto. Ela não é de acordar cedo, ainda mais depois de ontem, uma noite que deve ter lhe cobrado certo esforço. Atravesso a porta e seu corpo está de lado, os cabelos caídos no rosto. Lâminas de luz solar são lançadas na sua pele nua, deixando a pequena penugem que a cobre lhe dê uma aparência celestial. Ainda estou para ver algo mais bonito e sublime do que uma bela mulher dormindo.

Me aproximo e beijo seu ombro. Sua pele está fria, quase gelada. Afasto os cabelos do rosto e sua boca está entreaberta, um fio de saliva como uma teia de aranha caindo de seu lábio inferior. Me aproximo de seu ouvido e sussurro sem a intenção de a acordar:

“Feliz aniversário, meu amor.”


Sexta, 6 de setembro


Querido diário,
o sol parece a metade de uma moeda dourada se escondendo no horizonte, morrendo entre nuvens que tem o tom de um hematoma. Uma brisa suave atinge o rosto e me despenteia o cabelo. Todos já foram embora. Todos perceberam que eu gostaria de ficar um pouco mais e sozinho.

Há duas coroas de flores encostadas na lápide e um buquê de rosas brancas entre elas. Com as mãos nos bolsos eu me demoro olhando o nome entalhado na pedra. Fernanda tinha pavor em ser cremada e me fez prometer que mudaria de ideia e que seria enterrado no mesmo túmulo que ela.

No dia do seu aniversário, depois que eu sussurrei em seu ouvido e toquei em seus lábios, não ter sentido sua respiração me causou um despertar doloroso. Eu sacudia seu corpo como se isso desse algum resultado. Como a gente costuma sacudir uma caneta que está falhando para que escreva direito. Como a gente dá batidas no controle remoto cujas pilhas já morreram e achamos que isso vai fazer ele voltar à vida e mudar a porra do canal. Tentei me manter racional, mas a dor que me atingiu entrou direto em minha corrente sanguínea e se espalhou por todo o meu corpo. Liguei desesperado para uma ambulância, mas por mais rápido que tivessem chegado, de nada adiantaria.

Nanda foi embora e nem se despediu de mim. Sei que não receberia palavras, mas ao menos achava que algo em seu corpo, na sua linguagem corporal ou no silêncio que eu já interpretava, me mandassem uma mensagem de despedida, mas não. Ela foi embora com o mesmo impacto que apareceu na minha vida. Quando fizemos amor naquela noite, enquanto meu corpo pesava sobre o dela, seus lábios se abriram algumas vezes, como que para me dizer alguma coisa, mas eu não conseguia ouvir nada, pois sua voz era uma asa de borboleta adejando.

Seus órgãos relaxaram e desistiram, faliram. Seu corpo inteiro exalou por todos os poros um último suspiro cansado. O médico falou que ela não sentiu dor alguma, como se isso de alguma forma pudesse me fazer sentir melhor.

Tudo o que aconteceu depois parecia um sonho, fragmentos tão desencontrados que se me pedirem para descrever eu com certeza vou me confundir.

Agora estou aqui. Diante do túmulo da minha mulher. Já havia um silêncio barulhento em nossas vidas há 5 anos, mas agora esse silêncio cresceu, tomou forma e solidez, ficando palpável, me pesando na pele como uma manta fria.

Quando a beijei no ombro naquela manhã o seu corpo estava frio porque ela já não estava mais ali. Eu estava beijando um corpo abandonado e sempre é frio nos lugares abandonados.

Então a morte é isso? Não conseguir falar com alguém? Ter o desejo de falar e não poder? Se for, então ela já estava morta há alguns anos?

Olho para o céu e uma única nuvem minúscula mancha o céu absurdamente rosado, se preparando para ser tingido de negro. Do jeito que estou, com o rosto voltado para cima, eu puxo pela boca e nariz todo o ar que consigo. Baixo a cabeça e o mantenho preso, o oxigênio pressionando as paredes do meu tronco.

Com rapidez e violência eu expulso todo o ar que aspirei. Faço isso com tal força que curvo minha coluna. Então sinto todo um peso antigo ser vomitado de mim. Todo o peso que eu sentia nos ombros e no peito pareceram cair diante de meus pés. Meu corpo quase pode flutuar. A sensação que eu sinto é como se eu tivesse expelido dias, meses, anos. Talvez vidas inteiras. Endireito o corpo e a leveza que sinto me faz fechar os olhos e deixar cair os ombros como quando fazemos diante de uma situação que finalmente se resolveu.

Todas as pessoas que estiveram aqui no sepultamento usaram variações da mesma frase.

“Foi o melhor que aconteceu para ela.”

Nós, vivos, nos sentimos tão superiores.

“Ela finalmente se libertou de todo o sofrimento que estava passando por tanto tempo.”

A gente sempre acha que sabe o que é melhor para o outro.

“Ela finalmente está livre.”

Essas pessoas com suas frases ensaiadas, mentiras morais, todas elas podem ir para o inferno.

Nanda me falou uma vez, numa espécie de profecia sombria, que tinha medo de viver em estado vegetativo. Que preferia morrer. Porque quando a gente morre, acabou, mas continuar vivo e se tornar inacessível, ser alguém que não se pode encontrar, é pior que a morte.

Aqui, diante do túmulo, depois de ter expulso todo o ar e o peso que me prendiam no corpo, olho para o nome da pessoa que dizem agora estar livre e, num misto de vergonha e alívio eu sussurro para mim mesmo entredentes:

“Quem está livre sou eu.”


Hemerson Miranda

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