Não é à toa que a palavra seduzir deriva do latim "se-ducere",
literalmente "conduzir a si mesmo". Pois é exatamente isso que ela
faz comigo.
Estamos deitados sob a sombra de uma frondosa árvore no campus, fumando.
Um silêncio se instalou entre nós, mas não uma pausa incômoda. Quando o
silêncio for quebrado não será uma tentativa de reiniciar a conversa, mas será
um prosseguimento. Esse silêncio poderia perdurar por anos e quando fosse
desfeito permaneceria a mesma conversa, os mesmos sentimentos. Esse é o tipo de
intimidade que nós temos e que está, como todas as coisas boas e importantes da
vida, fadado a terminar.
Cena 1
Ele fuma, mas parece não ter nenhum prazer nisso. Expele a fumaça tão
vagarosamente quanto faz o cigarro, envolto em brumas, uma espiral preguiçosa.
Ele fuma apenas por fumar. Não sente prazer nisso, nem necessidade. Ele fuma
apenas para me acompanhar.
A presença dele causa alguma coisa em mim. Há algo em toda a composição
dele que me atrai e não é algo sexual, se bem que poderia ser. Eu poderia
resumir o que é estar em sua companhia dizendo que é como se sentir em casa.
Compartilhamos tanto conhecimentos quanto silêncios e essa é uma das coisas que
eu temo perder. Eu e minha mania de antecipar o final de todas as coisas.
Ele é cheio de informações, sempre me surpreendendo com alguma novidade.
Estar com ele é a ausência do tédio da vida, pois ele sempre tem algo para
falar e mesmo quando não fala, alguma coisa, é como se o envolvesse uma aura de
mistério. Ele parece sempre esconder alguma coisa, mesmo que não esteja
escondendo. Na presença dele sempre paira algum suspense.
"Não é engraçado? Quando uma pessoa morre num incêndio ela acaba
com uma pose de boxeador. Isso porque os músculos se encolhem, os braços se
contraem, os punhos se fecham como se estivessem protegendo sua cabeça. Os
joelhos se dobram diante do calor. Diante da morte ainda tomamos uma posição de
defesa, como se fôssemos atacar."
Ele fala e eu sinto que meus olhos brilham. Claro, sua voz grave ajuda e
seu sotaque, a forma como ele termina as palavras com ...de ou ...te, tão
diferente de mim. Além disso ele sempre demonstra uma sintonia com meus
pensamentos, o que me agrada bastante. Mas também me desafia, discordando de
alguns de meus pontos de vista, me criticando, por vezes. E aquilo que deveria
me irritar, que é o que acontece num primeiro momento, me faz querer desafiar
ele também.
Ele fala como se estivesse lendo. Suas palavras são como um texto
corrigido várias vezes, até ele achar que está perfeito.
Um dia estávamos falando sobre as sombras de Platão, a caverna etc. Fui
eu que comecei o assunto. Uma das coisas que me deixam envaidecida é a forma
como ele me escuta. Ele realmente demonstra interesse, ele inclina seu corpo
para mais perto de mim como se não quisesse perder nenhuma palavra, como se
também quisesse ler meu rosto. Depois que eu falei sobre a caverna e as sombras
ele ficou um tempo pensativo. Então ele, como se acordasse de um sonho, se
aproximou mais de mim.
O corpo dele tem cheiro de terra molhada.
Afastou as mechas de cabelo que caiam no meu rosto e começou a falar.
Ele nunca me chamava pelo nome.
"Tava pensando numa coisa, Folhinha. Não, eu não vou falar das suas
olheiras, sei que você continua com problemas pra dormir. Mas essa história que
você falou do Platão e tal. Veja isso."
Seus dedos contornam os lados de minha testa e meus olhos. Seu hálito é
de café forte.
"Sua cabeça é a caverna. Seus olhos são a entrada da caverna. Tu
vive dentro da tua cabeça e só vê o que quer. E só vê as sombras, inventando um
significado pra cada uma delas."
Minha boca, entreaberta por causa desse maravilhoso pensamento, solta um
suspiro.
"Fecha essa boca. Senão eu vou te beijar."
Ele sorri. Até onde eu lembro ele sempre está sorrindo. Ou me fazendo
sorrir. E isso tudo parece uma história romântica. Mas não é.
Um dia ele me chama para beber. Estamos num bar. Depois de duas garrafas
de cerveja ele pede uma dose de whisky e eu peço uma taça de vinho. Há uma
cumplicidade entre nós dois que, por alguma razão ainda desconhecida, nós não
permitimos que se tornasse amor. É uma coisa só nossa, que já levou muitas
pessoas a pensarem em nós como um casal. Eu até, de certa forma, gostaria que
fosse. Mas eu tenho medo de que isso tudo, exatamente isso que nós temos,
acabe, morra sob o próprio peso.
Até aí estávamos conversando animadamente, como sempre é. Um assunto se
seguindo a outro, entremeado por brincadeiras. Quem ouvisse acharia que somos
dois filósofos pessimistas, mas que riem bastante. Quando o whisky e o vinho
chegam, ele bebe um gole e com toda naturalidade olha para mim e diz:
"Ah, tenho uma notícia pra te dar. Eu tô com câncer."
Cena 2
Os seus olhos negros fazem tudo aquilo que eu sempre desejei: esquecer.
Ela pega a taça de vinho, mas sua mão treme. Seu rosto, que belo rosto,
eu sempre tive vontade de o macular de alguma forma. Não com violência. Ele é
tão lindo que chega a ser um insulto. Seu rosto está pálido quando olha para
mim.
O único arrependimentos que eu carrego comigo é de nunca confessar a ela
que a amava. Ela morde o lábio inferior, o que sempre faz quando está nervosa.
Seu peito arfando sob a blusa verde.
Quando ela fala, sua voz é tão doce que chega a ser infantil. Mas ela
destila uma inteligência que eu invejo. Seu corpo emana ondas de compreensão da
realidade. Seu cérebro, se eu pudesse, o colocaria em minhas mãos apenas para
contemplar. E isso foi sempre tudo o que me atraiu nela. Havia, claro, uma
atração física. Seus atos, até os mais fúteis, exalavam uma atração natural.
Mas era sua mente a coisa que mais me atraia. Eu poderia passar horas
conversando com ela e mesmo assim os assuntos não terminavam. Mesmo o silêncio
era algo a ser compartilhado.
Mas não o de agora.
Esse é um silêncio novo, alienígena. Claro que não foi minha intenção.
Eu tentei ser o mais casual possível e, apesar de comungamos um sutil humor
negro, claramente ela estava abalada. Seu corpo agora é uma sinfonia de
suspiros exaustos.
Sou tomado por um sentimento de que passei a vida toda tentando
expressar bem alguma coisa quando na verdade eu nunca tive nada a dizer.
Esse silêncio é uma aniquilação por si só. Uma compreensão mútua de um
final inalcançável. O que me deixa mais triste é que eu não a fiz sorrir.
A gente deseja que a vida tenha algum brilho cinematográfico, algum
filtro com paleta de cores em tons celestiais. Mas a verdade é que a vida é uma
merda.
A comida é granulosa, o café é amargo, o banho é sempre diferente do que
a gente quer. O sexo é só o atrito de corpos que exsudam líquidos fétidos,
membros assimétricos que lembram dois macacos pelados se roçando. Esse whisky é
só um líquido amarelado que arranha minha garganta. Essa mulher à minha frente
é só uma primata que a cada dia que passa apodrece e tenta abafar esse fato sob
camadas e mais camadas de maquiagem, tintura, batom, esmalte e perfume. E mesmo
assim, eu gosto dela. Ela expõe uma realidade que outros não conseguem.
Ela fuma e parece que há todo um prazer nisso. Um prazer que eu nunca
vou sentir. A fumaça à sua volta forma uma espiral de tédio com ela no meio, o
olho enfastiado do furacão.
Sua boca, esses lábios vermelhos que contém um poder atrativo tão grande
sobre mim, está fechada, mas eu sinto que detrás deles há um grito que eu nunca
ouvirei e nunca poderei consolar.
A Árvore
Debaixo da sombra da árvore eu me ergo e pego da mochila a garrafa
térmica. Eu Fiz café para nós dois. Ela adora que eu faça café. Esse silêncio
de agora é um silêncio que retorna à normalidade. Um silêncio resignado.
Bebemos olhando um para o outro. Eu esboçando um sorriso condenado.
No dia seguinte eu estou no hospital. É a segunda vez hoje. A primeira
foi para a quimioterapia. A segunda foi para ver metade de mim morrer.
Ela foi atropelada por um carro guiado por um homem embriagado. Eu ouvi
o médico falar "hora da morte". E eu pensei em como a morte costuma
ser pontual. A gente pode se suicidar de várias formas antes de morrer de
verdade.
Hemerson Miranda
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