de Miguel Angel (in memoriam)
(...)
O dia inteiro marcharam atrás da caravana sem alcançá-la. Exaustos e a noite chegando, suspenderam a caminhada e se aconchegaram sob uma árvore. Tião providenciou lenha e acendeu uma fogueira, o calor e a fadiga o ninaram até o desmaio. Perto dele, o doutor, insulado em si mesmo, parecia dormitar.
Tião acordou com os gritos de Machado que a poucos passos, de braços abertos e olhos fixos no céu, clamava:
- As estrelas! "Queres pegar estrelas cintilantes porque no alto as enxergas?" Você as vê? Uma tempestade de luzeiros cai da noite e eu vôo no escuro infinito, amigo. E o mundo me aperta e meu coração açoita e... ai! quanto me sufoca!
Emudeceu de súbito, e, como alucinado, procurou em torno algo perdido. De sua boca escancarada, foi surgindo um som especioso que se tornou um grito rouco de animal que não tem nome; dobrou os joelhos e estirou-se no chão, os olhos esgazeados prosseguiram girando nas órbitas em descontrole, os braços iniciaram um tremor espasmódico que se disseminou para suas mãos e pernas a contorcer o corpo todo, como se montado no lombo ilusório de cavalo raivoso a sacudi-lo em convulsões elevando-o acima do solo; as palavras mergulhavam na espuma de sua boca a asfixiá-lo em remoinho incongruente. Era o paroxismo do colapso temido.
Meio oculto atrás da árvore, Tião tudo via, e nada entendia. Só o pavor que sentia era certo, como o corpo do doutor se retorcendo sobrenatural, iluminado pela fogueira e, de pronto, oscilou num voar vagaroso em torno dela.
- São Sebastião das flecha que estás no céu junto ao Pai-Filho e o Espírito Santo, acode este negro pecador. - rezava o aterrado faxineiro. Abraçando seu chapéu, sentou-se Tião debaixo da árvore desse lugar malfadado e quando o fogo se apagou e a noite cobriu tudo que podia se ver, abateu de vez sua valentia e soluçou igual moleque largado no meio de floresta inominável; porque escutou o pio do mocho na mata escura, lobrigou bestas aterrorizantes a espioná-lo, e assim, amedrontado quão criança, perto do desmaio, minguou até dormir.
A claridade do céu nublado e as aves revoando aos pios acordaram Tião tão angustiado como dormira.
- Onde o nhô doutor? - nas cinzas que circundam a fogueira procurou-o. - Quem garante não pegou fogo e virou cinza? Macumbas são poderosas! E aquilo não é coisa do demo? Teria o capeta levado pros infernos o coitado? - Sozinho nesta terra ignorada - Vai pr'onde, Tião? - O negro alforriado por servir a pátria, experimentava o peso do desamparo aumentando nas suas pernas. Deu um manotaço nas águas que assomaram nos seus olhos estrábicos, quando, num instante, vindo de cima, outra água escorregou em chuvisqueiro. - Que quer? O céu também chora com dó de Tião. - recolher os teréns e pôr-se a andar. - Pr'onde? Pra lá? Pra cá? Ih, negro cafifento! Não sabe lhufas! - E sedento inicia caminhada sem direção, mas em vinte passos, dá de frente num riacho. Desvencilha-se dos teréns e se queda imóvel observando atentamente o homem sentado na beirada... - É o bom doutor que esta lá! - e segura uma vara a espera de peixe? - Que vara essa sem anzol ou isca? Ih! pobrinho do nhô que perdeu juízo. - Tião, temendo que sua inesperada presença possa assustar o homem e venha cair na água, se acerca silencioso até a margem e enquanto enche o cantil, repara de viés no doutor bem perto dele.
- Pronto. Podemos ir. Amém. - Disse Tião, quase rezando, olhando para o céu e ao doutor alternadamente; lança a sacola com os pertences perto de seu dono; sem explicação, como se esperando por isso, o doutor se endireita, joga fora a vara, bota a casaca de civil encontrada na mochila e começa andar. Tião o segue, com receio de alegrar-se à toa.
- Graça, meu São Sebastião das flecha!
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Do romance "Sobre Moscas e Aranhas de Guerra" de Miguel A. Fernandez
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