Nem sempre a gente tem controle sobre as
coisas ao nosso redor. Isso por vezes nos dá a sensação de incapacidade, de
inferioridade diante da indiferença sádica da vida. Podemos escolher e permitir
o que entra na nossa boca ou em nossos orifícios inferiores, mas há uma invasão
quando se trata dos outros orifícios na cabeça. Um cheiro que invade nossas
narinas, às vezes causando até náusea; uma música odiosa ou palavras capazes de
causar dor entrando em nossos ouvidos; imagens repulsivas, tristes e aterradoras
que são capturadas sem nenhuma intenção por nossas retinas. Essa invasão, essa
quebra forçada de nossa privacidade e nossas escolhas, é como uma espécie de
estupro.
A memória está aqui para nos lembrar
disso. Sequer um fragmento de observação desaparece, basta resgatarmos e
lembraremos. A mente é como uma praia onde o mar vive lançando restos de
naufrágios.
Mas, na condição de presidiários em
nosso próprios corpos, desenvolvemos uma espécie de Síndrome de Estocolmo e nos
acostumamos ao que nos é jogado e enfiado diretamente nesses orifícios.
Breno é uma dessas pessoas com todos os
orifícios funcionando.
Ele está com seu amigo Rony no
quebra-mar. Ambos seguram garrafas de cerveja e estão usando apenas calções de
banho, o segundo fica com o celular na outra mão, na expectativa de alguma
notificação. Suas bicicletas estão jogadas ali próximas. Eles olham para as
ondas que quebram na praia, a pele de suas costas queimando sob o sol
escaldante. É dia de semana e só se veem raros caminhantes e banhistas. Há uma
ideia antiga pairando entre os dois, que supuram em hormônios e tentam o máximo
possível aproveitar tudo o que a vida lhes dá na casa dos 20 anos.
“O nome dela é Kátia.”
Breno dá um longo gole em sua cerveja e
olha para seu amigo que estreita os olhos para olhar um pequeno barco que passa
ao longe.
“Qual a idade dela?”
“Vai fazer 18 daqui a duas semanas.”
“Ela ainda é de menor, não?”
“Ah vá… Sério isso? Por causa de duas
semanas?”
“Eu só não quero criar problemas pra nós
depois. Se meu pai e o tio Henrique souberem e nos condenar você sabe o que
temos a perder.”
“Isso é uma coisa só nossa e além disso,
ela quer. É consentido. Eu conversei muito tempo com ela e ela falou que topa.”
“Você já a conhecia?”
“Ela era muito amiga da Darlene antes de
aquela doida ir embora. Reencontrei ela um dia desses numa livraria. Convidei
ela pra beber e começamos a conversar. Ela é de boa, não precisa ficar com
medo.”
Breno pensa em falar que está pasmo em
saber que o amigo estava em uma biblioteca, mas afasta esse comentário e
pergunta:
“Então ela topa transar com dois caras
ao mesmo tempo e ser filmada assim, de boa?”
“Sim, qual o problema? Em que bolha você
vive onde as mulheres ainda usam camadas e mais camadas de roupas e cintos de
castidade?”
Breno joga a lasca de uma pedra no ombro
de Rony e ambos sorriem.
“Não é isso. Só quero ter certeza de que
isso não vai nos dar problemas e que não estamos fazendo nada de errado.”
“Tô achando é que você tá com vergonha
de que eu vejo seu pinto pequeno.”
Dessa vez Breno dá um soco no ombro do
amigo, que revida com outro soco na sua coxa.
“Idiota!”
“Viadinho!”
Esses dois amigos já foram confundidos
com irmãos várias vezes. Se conhecem desde que tinham 10 anos, sempre estudando
na mesma escola, morando no mesmo bairro e quando possível trabalhando nos
mesmos lugares. Apesar dos cabelos de Rony serem cor de areia, os físicos de
ambos são muito semelhantes, bem como alguns trejeitos que nascem de amigos que
passam muito tempo juntos.
“Então quando vai ser?”
“Bem, o local a gente já combinou e
tudo. Agora o dia, pode ser no próximo domingo, pois nesse agora ela vai pro
interior, alguma coisa com uma tia dela, sei lá.”
“Ok, isso dá tempo pra eu organizar o
material de filmagem.”
“Vai por mim. Ela é muito gostosa. Você
não vai se arrepender.”
Rony mostra a foto de uma garota no seu
celular, que faz um V com a mão direita e um bico de pato sob olhos verdes.
“Espero mesmo que não.”
Nossos amigos estão ansiosos, o que não
pode ser dito também com relação a Kátia, que agora termina de arrumar sua bolsa
e se dirige ao terminal de ônibus para o interior, ver como vai sua tia Míriam,
aparentemente novata na longa fila de pessoas diabéticas. Quanto ao projeto de
Rony e seu amigo, ela está apenas curiosa. Para Kátia, o sexo é algo
superestimado, mas ela curte todo o processo químico envolvido e que faz seu
corpo se sentir bem, mesmo que por pouco tempo.
Ignora os olhares e os comentários dos
babacas ao redor dos ônibus que a comem com os olhos e revira os seus quando o
motorista, um velho sem noção que recebe o dinheiro da mão dela e aproveita
para a alisar demoradamente enquanto pega as cédulas. Ela senta no fundo do
ônibus, coloca os fones de ouvidos e se recosta, fechando os olhos e pensando
em quão idiotas e engraçados são os homens.
São 4 horas de viagem e o passar
constante e repetitivo das plantações que ladeiam a estrada a fazem sentir
sono, então sem se dar conta ela acorda quando o ônibus entra na próxima
cidade. Foi nessa cidade que sua mãe também nasceu. Ali mesmo que ela
engravidou pela primeira vez e também abortou. Ali também que decidira dar uma
chance a Kátia de fazer parte do teatro tragicômico que é a vida. Nessa mesma
cidade ela bebeu até seu corpo não suportar mais. Kátia pensa se o alcoolismo
pode ser genético e sorri um esgar triste diante desse pensamento. Dali a
alguns dias ela dará um passo maior para o seu próprio corpo junto com dois
homens e mais dias à frente entrará no mundo dos adultos oficialmente ao
completar 18 anos.
O que vai acontecer daqui a uma semana
vai mudar a vida de nossos amigos para sempre.
E um deles vai morrer.
Breno: Audição
Desde que Rony descobriu o smartphone e
a internet ele se desligou do resto do mundo. Seja onde estiver, seu tronco
está curvado sobre o celular, deslizando a tela ou digitando freneticamente.
Demorei, mas me acostumei com essa nova situação. Relevei mesmo até os momentos
em que ele me mandava mensagem de texto estando a apenas 10 metros de
distância. Sempre tem um vídeo novo para me mostrar, um nude de alguma garota,
uma foto de alguma tragédia.
Como eu não posso contar com ele, já que
está debruçado no celular, eu carrego o tripé e a câmera. Kátia está olhando em
volta, mascando um chiclete. Ela usa uma blusa regata preta e um short azul
escuro. É magra, mas tem carne nos lugares importantes. Cabelos loiros quase
chegando na bunda, ombros com sardas marrom claras. As panturrilhas possuem
duas tatuagens, uma fênix em chamas na esquerda e uma máscara da morte mexicana
na direita. Uma de suas orelhas está fechada por um fone e eu não imagino essa
garota ouvindo algo como forró.
Eu mexo no meu novo brinquedo. Dei de
presente a mim mesmo, num dos raros momentos de amor próprio quando recebi um
extra no mês passado. É uma GoPro Fusion, 18MP. Essa belezinha filma em 5.2k a
30 fps. Sempre que posso me ufano dessas informações e em 80% das vezes sofro a
decepção de pessoas que ou não entendem ou não se importam.
“Rony, coloca a lona ali, por favor.”
Eu aponto para um lugar próximo a uma
parede, onde o mato não está alto e tem indícios de que é visitado por algumas
pessoas. Ele consegue me ouvir e digitar ao mesmo tempo, o que me deixa
surpreso. Então pega a lona e estica, tirando da mochila em seguida uma enorme
toalha felpuda.
“Eu não conhecia esse lugar.”
Kátia agora fala retocando a maquiagem
com um espelhinho redondo.
“Ele costuma ser frequentado por alguns
viciados durante a noite” eu falo para a garota
cujo rosto me parece mais bonito agora.
O sol conseguiu ultrapassar as nuvens e
lança seus raios em diagonal aonde nós estamos. Não há teto, mas as paredes
altas impedem que ele entre em sua totalidade. Kátia agora está mexendo em seu
celular.
“Ainda vai demorar um pouco aí, né?”
Eu confirmo para ela com a cabeça. Aí
ela tira o fone do celular e uma música dance começa a sair dos alto-falantes,
fazendo ela dançar em meio aos cascalhos, jornais velhos, cacos de vidro e guimbas
de cigarro que cobrem o chão.
Rony tinha razão, ela é muito gostosa.
Sinto uma ereção se formar quando vejo seu corpo em movimentos sensuais
rodopiando, espalhando uma leve nuvem de poeira ao seu redor. Daqui a alguns
minutos os gemidos dela serão gravados pela câmera em um áudio de 360º. Eu
volto a me concentrar na câmera, mas antes dou uma olhada em Rony, que já
terminou de organizar a lona, já colocou as camisinhas e o lubrificante ali
junto e voltou ao teclado fervorosamente.
Um arroto nasce no meu estômago, sobe
pela minha garganta e escapa por minhas narinas. Sinto cheiro de cerveja e uma
leseira me acomete. Estou de costas para meus dois amigos, terminando de
preparar a câmera no tripé.
Eu ouço a música de Kátia, que começa a
baixar pois está chegando ao seu final.
Ouço o som das teclas de Rony, que teima
em deixar o som do teclado ativo e alto, o que é irritante na maioria das
vezes.
Ouço o farfalhar de ervas daninhas e do
mato alto que o vento toca em outros cômodos.
Ouço ao longe o canto de algum pássaro
que eu desconheço, a sirene de alguma ambulância, o efeito doppler de algum
avião acima de nós.
Ouço um isqueiro. Uma tosse. Um suspiro.
E ouço algo que a princípio eu não
consigo discernir.
Parecem batidas. Golpes secos que em
seguida se tornaram úmidos.
Eu viro e peço para Kátia desligar o
som. Ela não atende de imediato, mas faço uma cara de raiva e ela assente. Faço
um gesto para ela prestar atenção no som, mas ela fica confusa. Rony não está
ali conosco agora e isso me causa um frio na barriga.
As batidas agora são como de algo sendo
quebrado, esmiuçado, alternadas pela respiração ofegante de alguém, um baixo
gemido que fica preso na garganta.
Quando olho para Kátia ela está com a
boca aberta e parece tremer.
Kátia: Olfato
Ainda sinto a dor da cera quente na
minha xoxota e com o calor que está fazendo fico preocupada com o cheiro aqui
em baixo. Tem uns homens que não curtem muito um cheiro forte e eu não os culpo
nem os chamo de viados, porque gosto é uma coisa que realmente não se discute.
Quando eu olhei para o amigo de Rony
pensei que era irmão dele. Ia ser legal fazer isso com gêmeos, eu acho. O
importante é que ele é tão gostoso quanto Rony. Nunca fiz isso antes e estou
curiosa. Fiquei curiosa desde que descobri um dia uma foto de mamãe com três
caras trepando. Ela nunca soube disso, claro e sempre me perguntei se papai,
quando estava vivo, sabia e se ela estava sóbria.
Nas minhas leituras eu descobri que o
motivo de nós, mulheres, termos orgasmo com sexo anal é a esponja do períneo. Esse
tipo de informação não é muito compartilhado pelas mulheres, mas eu sou uma
garota que gosta de ler e saber o que acontece com meu corpo.
Esse lugar que escolheram é o que eu chamaria
de trash. Uma construção abandonada, que começou a ser construída e desistiram
na metade do caminho, agora invadida por mato, lixo e, segundo os garotos,
viciados tanto em drogas quanto em sexo. Gostei da escolha deles para o lugar,
é algo melhor para ser lembrado que a cama incipiente de um motel.
Não sei quem é mais nerd desses dois
caras. Um não para de olhar para o celular e o outro toca na sua câmera como se
fosse o próprio pau. Eu sempre achei os homens engraçados.
“Eu preciso de uma toalha dessas” falo
abraçando a enorme toalha fofinha que Rony me passa para esticar na lona.
Sinto o celular vibrar no meio dos
peitos. É uma mensagem de mamãe. Ela acabou de chegar na casa de tia Míriam.
Segundo ela a tia vai vir para o meu aniversário, semana que vem e eu fiquei
feliz, pois me deu pena de ver a tia sozinha naquela casa enorme e agora com
essa doença. Me causa um leve arrepio pensar nessas duas mulheres e ver que uma
delas pode muito bem ser o meu futuro.
Eu não respondo a mamãe agora. Abro o
spotify e começo a ouvir uma playlist que a Pâmela me enviou mais cedo.
Acho impressionante que esses dois caras
estão aqui para me comer juntos e no momento estão simplesmente me ignorando,
concentrados em seus aparelhos eletrônicos. Aparentemente se no meu lugar
estivesse uma robô do sexo não faria diferença. Como eu percebo que aquela
coisa ali com a câmera no tripé vai demorar eu tiro o fone do celular e começo
a dançar.
Sempre senti uma liberdade em dançar. A
maioria das noites, antes de dormir, minha irmã e eu dançamos no quarto até
cansar, até suarmos e ficarmos exaustas a ponto de apenas cair na cama e
apagar. Pode ser que agora eu esteja dançando em comemoração aos meus próximos
18 anos, quando muita coisa vai mudar na minha vida, ou ao menos é isso que me
dizem desde que completei 11 anos. Também estou dançando para me desapegar do
meu corpo, pois vou precisar disso enquanto dois caras estiverem me pegando e
uma lente capturando tudo isso para a posteridade.
Nas minhas leituras, ser penetrada por
dois caras massageia a fina camada entre minhas duas cavidades, e aquilo é
cheio de terminações nervosas, ou seja: orgasmo como nunca. Isso me excita.
Só espero que eles não demorem muito
mais, pois eu me canso fácil e sair daqui desistindo de tudo é só uma questão
de segundos para mim. Abro um pequeno bolso da mochila de Rony, que nem liga, e
pego o cigarro e o isqueiro que guardei ali. Quando acendo e aspiro a fumaça
uma nova onda de disposição nasce dentro de mim.
O cheiro do cigarro me envolve, mas
também percebo que estou suando muito, então ergo os braços para verificar o
desodorante. Felizmente é um 48 horas.
Sinto o cheiro cítrico de algum dos
perfumes dos meninos.
Cheiro de folhas secas, cigarro velho e
cerveja choca.
Cheiro de reboco aquecido pelo sol.
Uma brisa vem de algum dos outros
cômodos em ruínas e traz outros cheiros estranhos.
O amigo de Rony me pede alguma coisa que
eu não entendi e depois me olha com fúria para eu desligar a música. Eu ainda
estou tentando sentir o cheiro que vem agora, então jogo o cigarro no chão e
piso nele. Tem algo de errado acontecendo. Olho atrás de mim e Rony não está
conosco.
Sinto cheiro de suor azedo.
Sinto um cheiro metálico que se torna
cada vez mais forte.
O amigo de Rony olha para mim e pede que
eu preste atenção em algum som, mas estou ficando enjoada com o cheiro que
entrou no meu nariz.
Quando era pequena e o marido da tia
Míriam tinha uma fazenda eu passava muitos fins de semana com eles. Via os
animais correndo, comendo, cagando. Via as vacas terem seus filhotes, via minha
tia matando galinhas para o almoço e via o marido dela matando vacas para
vender.
Um dia cheguei no lugar que eles
chamavam de matadouro e quase vomitei quando aquele fedor enorme bateu no meu
rosto. Nunca mais esqueci esse cheiro.
É parecido com o cheiro que sinto agora.
É o cheiro de morte.
Rony: Visão
Cara, meus últimos tweets não tem menos
de mil curtidas e retweets, meus posts no Facebook estão bombando e as últimas
fotos na piscina que coloquei no Instagram tem muitas curtidas e vários
comentários. Eu estou começando a achar que deveria abrir um canal no Youtube.
Ainda não sei exatamente o que faria nesse canal, mas vou estudar isso mais
profundamente.
Mas o sucesso mesmo é no grupo do
Whatsapp. Tem só os caras do meu antigo trabalho, tudo um bando de tarado e
bêbado. Só tem vídeo e fotos das mulheres que todo mundo comeu e quem está no
top atualmente sou eu mesmo com a ideia de gravar um vídeo com um amigo meu
comendo uma garota de 17 anos.
Eu abro a câmera do celular e tiro uma
foto de Kátia, que está de costas para mim. Envio para o grupo e todo mundo
começa a falar da bunda dela.
Isso aqui vai me colocar entre os 10
mais desse grupo, graças ao Breno e sua mágica com o vídeo e a edição e dessa
garota que eu nem lembrava mais que existia. Os caras no grupo estão me
enchendo de perguntas enquanto eu tento responder todas.
A garota está dançando, não sei que
diabos deu nela, enquanto Breno ainda mexe na câmera. Ele realmente é focado
nisso e eu não me importo de ele demorar porque sei que ele faz tudo certinho e
o trabalho dele é bom.
Fui eu que escolhi esse lugar. Em 2001
um cara aqui da cidade ganhou na loteria e recebeu a dica de um amigo para
construir uma galeria, onde poderia alugar lojas por preços exorbitantes e
assim fazer render o dinheiro que foi investido. Ele topou. Só que meteu os pés
pelas mãos. Não entendia muito de investimento, sem falar que começou a
esbanjar dinheiro comprado coisas caras, impressionando umas vadias e bebendo
para cacete. Isso fez com que o dinheiro dele fosse rapidamente para o ralo,
deixando a construção pela metade, em seguida em ruínas, completamente
abandonada. Sequer conseguiu vender o terreno. Hoje está internado numa
clínica. Azar dele. Sorte nossa.
Ménage.
Desde que aprendi essa palavra não paro
mais de falar nela.
Ménage á trois significa
literalmente “família de três”, segundo a Wikipédia. Parece mesmo uma coisa
usada nessa época aí por franceses. Mesmo que também possua um significado de
afetividade hoje em dia quando se ouve ou lê essa palavra só se pensa em sexo,
como não poderia deixar de ser.
As paredes em erosão, o lixo espalhado
pelo chão, os caras gostam disso, então vai dar para vender esse vídeo para o
grupo facinho. A garota é gostosa, o que ajuda mais ainda, e ela topa tudo, segundo
me disse, então está tudo perfeito e perfeitamente no seu lugar aqui.
Saindo tudo do jeito que eu espero,
posso até entrar em sociedade com Breno para vendermos esse tipo de conteúdo,
pois gente interessada em comprar eu conheço demais.
Eu só não sabia que o dia de hoje seria
tão quente. Eu me livro da camisa que começa a se encharcar debaixo do braço e
a jogo na lona, junto das camisinhas. Kátia continua dançando e eu aproveito
para fazer um vídeo curto e colocar no grupo. Ela é muito sensual. Mesmo descobrindo
que ela fuma, hábito que eu acho nojento, ainda assim ela poderia ser modelo,
uma atriz pornô, sei lá.
O sol bate nas paredes de rebocos
erodidos e minha visão periférica nota uma sombra se movimentando em outro
cômodo. Digito freneticamente sobre os comentários dos caras e a garota acende
um cigarro. Passo a mão na testa e ela volta brilhosa de suor.
Em um outro cômodo está acontecendo
alguma coisa. Tem um buraco do tamanho de um punho na parede e eu posso ver uma
movimentação. Imagino se é algum casal trepando, pois existe muito disso por
aqui, mas geralmente durante a semana. Abro a câmera do celular, pronto para
capturar os dois de surpresa e vou caminhando bem devagar até o outro cômodo.
Percebo que a música do celular de Kátia
acabou.
O barulho de algo sendo esmagado e o
cheiro ferroso vem até mim antes da imagem ser capturada pela minha retina.
A imagem filtrada pela câmera do celular
parece uma mentira e minha mão treme. Eu não desligo a câmera, mas ela agora
captura o chão e meus pés, pois a verdade invade meus olhos com uma sensação
aterradora.
Sobre a grama seca e o lixo espalhado, a
primeira coisa que eu vejo é uma coxa branca que possui a tatuagem de uma
borboleta azul. Ela pertence a uma mulher que está deitada e inerte. Um homem
com macacão de mecânico está em pé sobre ela, sua respiração ofegante e úmida,
ele dá golpes violentos na cabeça da mulher com um martelo. Acerta sua cabeça
quebrando o crânio acima da têmpora. Dá marteladas como se quisesse apagar
qualquer memória que ainda restasse na massa cinzenta da mulher, afundando a
carne, os ossos, o cérebro. Então o martelo fica preso no crânio e o homem
sente dificuldade de retirar.
O que quebra a tensão desse
acontecimento é o grito de Kátia, que surge logo atrás de mim com Breno ao
lado.
O que era o rosto da mulher agora não
passa de um bolo de carne disforme, a viscosidade do sangue misturada com
fragmentos de osso e cérebro, o cabo de madeira do martelo para cima, como uma
estaca.
O homem nos olha com olhos injetados de
fúria e insanidade, a pele de seu rosto salpicada de sangue, o mesmo escorrendo
da sua barba cheia de falhas. Ele tem um aspecto sujo, dentes quebrados e
apodrecidos, olhos com salientes veias vermelhas, seu cabelo castanho fica em
volta de uma mancha vermelha, que é resquício de uma queimadura. Poderia muito
bem ter saído do filme Rejeitados pelo Demônio.
Um deslocamento de ar ao meu lado me faz
virar o rosto e ver um vulto. É Breno, que instintivamente corre para atacar o
homem. Como se fosse um gatilho, eu faço o mesmo e pulamos no cara, que deve
ter o dobro da nossa idade e a constituição física só um pouco melhor que a
nossa, mas somos dois, eu penso.
Só que esquecemos que aquilo não é mais
um homem, é um animal. Com uma facilidade que surpreende ele nos joga para o
chão, dando um chute na virilha de Breno e um nas minhas costelas. Eu vejo
fogos de artifício estourando diante de meus olhos. Breno está em posição
fetal, gemendo.
Quando a imagem volta a se focar diante
de mim o homem está se aproximando da histérica Kátia, que apesar de encontrar
forças para rasgar a garganta com seus gritos, não as encontra para mover os
pés. O homem a pega pelo pescoço e a ergue acima de seus ombros, empurrando ela
duas vezes contra a parede, fazendo com que a parte de trás de seu crânio
quebre, deixando uma mancha de sangue no reboco, o corpo mole de nossa amiga
caindo no chão sujo.
O homem apenas cospe uma gosma negra no
chão e vai embora.
Eu ainda não encontro forças sequer para
respirar direito.
Os olhos de Kátia, aqueles olhos verdes
e brilhantes, agora me olham, mas sem vida. Duas chamas de fogo fátuo se
apagando.
No interior foi a vez de Raquel visitar
Míriam. Ela veio justamente deixar uma ajuda em dinheiro para alguns remédios
para sua recente diabetes e confirmar com ela sua viagem no próximo domingo
para a festa.
Durante a viagem de ônibus ela abriu a
bolsa e enquanto pensava nos medicamentos da irmã vasculhava na própria bolsa
os seus. Vitamina K1, Propranolol e Espironolactona. Foram-se os tempos em que
as duas eram jovens e transbordavam saúde. Agora uma não podia dar-se ao prazer
de uma sobremesa gostosa e a outra precisava de um fígado novo.
“Então você vai fazer um festão?”
“Ela merece, né? Não é todo dia que se
faz 18 anos.”
A frase é um clichê gasto, mas ainda
assim faz as duas lembrarem de seu passado, das aventuras, das desventuras e
principalmente de suas decepções. Uma tristeza teima em se aproximar das duas,
mas Míriam tenta afastá-la perguntando:
“E o bolo, quem vai fazer?”
“Ah, eu conheci uma moça que faz. Você
tem que ver o trabalho dela, tudo muito bem feito. Um pouco mais caro que os
outros, mas o resultado é ótimo. Kátia vai adorar. Seria até bom ela conhecer a
moça. Ela também gosta de tatuagem. Tem uma borboleta azul na coxa direita.”
“Ela vai ficar feliz com uma festa
surpresa. Parecia tão animada quando veio aqui domingo passado. Sinto falta
dessa alegria da juventude. Principalmente quando eu não precisava me preocupar
com a quantidade de açúcar que poderia comer...”
As irmãs sorriem.
“E o que aconteceu mesmo na casa de
Raul? Kátia quando veio me falou que a mulher tinha largado ele.”
“Ah, ela soube que ele tava tendo um
caso com uma mocinha. Jogou todas as coisas dele na rua. Foi um cabaré danado.
Todo mundo na rua saiu pra ver a briga dos dois.”
“Kátia me falou que ele tá
desaparecido.”
“Sim. Quando ele viu todas as suas
coisas na rua, roupas e tudo, ele gritou com ela e quase quebrou a porta
tentando abrir. Quando ela saiu ele avançou em cima dela. Todo mundo viu, mas
ninguém teve tempo de fazer nada. Ele colocou as mãos nos pescoço dela e
quebrou, assim” e ela estalou os dedos.
Míriam coloca uma mão na boca e passa as
mãos nos seus braços, tentando amenizar um arrepio.
“Que medo desse tipo de morte que dá pra
descrever com um estalar de dedos.”
Hemerson Miranda
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