Onde eu estava?
Ah sim, no quarto dela.
Janelas com cortinas.
Na cama, um lençol desenhado com
cogumelos.
Um pôster de Rick Martin.
Escova de cabelo rosa.
A cama dela era macia e sentamos na
ponta, um ao lado do outro.
Meu coração palpitava forte e minha camisa
recendia a desodorante. Podia sentir uma gota de suor deslizar na minha têmpora
esquerda.
Eu estava beijando Ellen.
Não, na verdade ela estava me beijando.
Mas isso foi ontem. Onde estou agora?
Ah sim, na fila do supermercado.
Música entediante saindo de caixas de
som ocultas.
Pirâmides de latas de extrato de tomate
e ervilha.
Espera, o que é isso preso ao bolso da
minha camisa?
Um button.
Um sorriso.
Um emoticon?
Isso me faz lembrar de várias coisas,
menos o que ele está fazendo ali e de onde veio. Comprei? Alguém me deu?
Ghost in the Shell.
Watchmen.
Afinal, o que estou mesmo fazendo aqui
nessa fila? Na minha mão tem uma garrafa de vodca e um pacotinho de salame
fatiado. Mas e o button?
Alguma coisa aconteceu antes de Ellen e
o quarto dela.
Ah sim, o enterro da minha tia.
A
cada hora morre uma pessoa neste maldito mundo e ninguém ainda se acostumou com
essa porra.
Minha
tia.
Minha
melhor amiga.
Um
dia antes estávamos, como sempre, conversando. Ela, mais velha que eu 20 anos,
era a única pessoa com quem eu realmente me sentia à vontade para conversar.
Então ali estávamos mais uma vez, batendo papo.
Coca-cola.
Pizza.
Batata
frita.
No
dia seguinte: ela morre.
Assim.
Apenas assim.
Ela
não me avisou. Não me mandou uma mensagem ou deu sinais de que ia embora para
sempre.
Tudo
no corpo dela desprendia vida. Uma vida sofrida e se esvaindo aos poucos como
uma ampulheta, claro, mas nenhum indício de que ia terminar sem uma introdução
dramática.
Apenas
foi. E eu tive ódio disso.
Após
o enterro, Ellen me consola. Não bebi nada, mas acho que por causa da situação,
estou, sim, bem embriagado.
Ela
me leva até seu quarto, para continuar me consolando.
Ellen,
amiga.
Ellen,
paixão antiga.
Ali,
sob o manto do luto, vulnerável, Ellen faz o que eu queria fazer com ela há
muito tempo.
Minha
tia morta.
Essa
é a simplicidade da morte, a indiferença do coração.
Ele
bate e então para de bater.
Cessa
a repetição.
Sem
ele bombeando, o sangue simplesmente busca as partes inferiores do corpo, para
se acumular ali como pequenos lagos vermelhos.
Livor
mortis.
É
hora das bactérias e dos vermes fazerem festa naquele belo corpo de minha amada
tia.
Canais
de Havers.
Glândulas
de Lieberkühn.
Ilhotas
de Langerhans.
Minha
tia estava aqui ontem. Não está mais aqui hoje. Acabaram as conversas e eu
perdi minha melhor amiga.
O
exército da morte avança pelas profundezas escuras e úmidas de seu corpo sem
vida.
Cápsula
de Bowman.
Coluna
de Clarke.
Nosso
corpo basicamente é uma divisão de territórios loteados com nomes de homens que
já morreram.
No
quarto de Ellen: ela está deitada na cama e levanta a blusa.
Está
sem sutiã.
Minha
língua lambendo.
Meus
lábios chupando.
Meus
dentes mordendo.
Até
então eu achava que o tesão residia no meu pau, mas então percebi que ele
habita no estômago, em explosões ácidas e por vezes sobe até a garganta, como a
bile.
A
minha mão resvalou abaixo de seu umbigo e ela retirou as calças.
Calcinha
branca.
Pelos
pubianos.
Meus
dedos deslizaram pelos seus pelos macios.
Dedos
úmidos.
De
repente eu não senti nada.
Uma
ereção que não veio.
Uma
oportunidade que se foi.
A
sensação pulou de meus dedos para a minha garganta.
Minha
tia monopolizava meus pensamentos.
Um
buraco negro abriu em meu peito e me engoliu.
Sai
dali correndo e pensando que talvez nos próximos dias eu seria considerado
homossexual.
Mas
e o button?
Lápides
ladeavam as ruas do cemitério.
Umas
imponentes, como se houvesse algum orgulho na morte.
Outras
apenas uma cruz de madeira fincada na terra seca com mato crescendo em alguns
pontos.
O
túmulo de tia era de mármore negro, mas de que isso importa?
Mulheres
chorando.
Homens
de cabeça baixa num silêncio reverente.
No
túmulo negro meu reflexo é apenas uma sombra.
Não
morria somente uma parente. Não era apenas a irmã de minha mãe, a filha de meus
avós, a cunhada de meu pai ou a tia de minha irmã.
Morria
eu e minhas alegrias.
Uma
dor sólida e pesada reside ou dentro ou do lado de meu peito e pulsa como se
fosse um outro coração.
Sai
da casa de Ellen e corri para o mercado.
Ah,
agora estou entendendo.
Então
não foi ontem. O ontem que falei ainda é hoje. Estou aqui depois de ter saído
correndo da casa de Ellen. E estava lá depois de sair do cemitério.
Agora
entendo a vodca e o salame.
Estou
bêbado antes mesmo de pagar essa vodca? Eu já havia bebido bastante antes?
Amnésia
alcoólica.
Tenho
certo temor de que meu cérebro não consiga mais produzir memória de curto prazo
e que a minha cabeça não seja capaz de criar sequer uma breve lembrança que eu
possa esquecer.
Produzir
lembranças, que coisa esquisita.
Tem
um ar quente atrás de mim e é uma senhora gorda fungando em meu cangote.
Isso
me enoja.
Me
aborrece.
Ela
e sua gordura que a faz ter movimentos lentos e tediosos.
Bato
o pé no chão com impaciência e a fila finalmente começa a andar.
Passo
a língua nos lábios e ainda está aqui o gosto de Ellen.
Sal.
Ácido.
Creme
hidratante de maçã.
Na
minha mão direita ainda posso sentir a carne macia de seu seio, na ponta dos
dedos o néctar seco de sua fenda.
A
moça do caixa olha para mim com a expressão de quem está vendo um mendigo que
não come há semanas. Ela masca um chiclete e todas as suas linhas de expressão
parecem se mover em câmera lenta.
Cabelos
desgrenhados.
Roupa
amarrotada.
Estou
falando de mim, não da moça.
Ela
sequer olha nos meus olhos, como se eu fosse apenas mais uma coisa que passa na
vida dela e a vontade que eu tenho é de lhe dar um tapa na cara.
Apenas
quero sair dali. Embalo minhas coisas, passo o cartão e vou embora.
Meu
quarto não tem janelas com cortinas nem minha cama tem um lençol com cogumelos.
Pôster
de System of a Down.
Guitarra.
Estante
com livros de Stephen King.
Uma
edição capa dura da revista número 1 de Sandman.
Antes
de abrir o salame e a garrafa de vodca, sentado na cama, olho para minhas mãos
e aproximo os dedos do nariz.
Cheiro
de boceta.
Ellen.
Ah,
agora você aparece, ereção?
Meu
corpo é tão desobediente que me entristece.
Meu
pau duro.
O
corpo de minha tia duro.
Ambos
temos rigor mortis.
A
caneca de Tron na escrivaninha.
Um
gole de vodca.
Uma
fatia de salame.
Um
gole de vodca.
Uma
fatia de salame.
Ah,
o button.
Passo
a mão no rosto e sinto a barba rala, o óleo na pele, mas minha mão trava em
alguns pontos que provavelmente foram sulcos criados por lágrimas.
Uma
moça de cabelos cor de areia e sardas escorrendo de sua testa, ela me diz
“Jesus te ama!” e me dá o button.
Onde
eu a vi mesmo?
Moça
das sardas, passei a contar os dias achando assim que se o fizesse não estaria
perdendo tempo.
Onde
ela está agora?
Ah,
lembrei, eu a vi no velório.
Seus
lábios não se abriam num sorriso, mas um sorriso podia ser visto em seus olhos
cinzentos. Por trás deles ela guardava uma esperança vítrea que eu jamais irei
possuir.
Onde
estou agora?
Ah
sim, estou no velório.
Espera
aí. Eu não estava bebendo?
Um
caixão de madeira com cor de vinho e no meio dele, envolvida por ridículas
flores brancas, está minha tia.
Olhos
fechados.
Lábios
vermelhos, mas um vermelho desbotado, sem vida.
Claro
que é sem vida!
Tudo
ali agora é morte, não apenas os cabelos, pelos e unhas, cada centímetro de seu
corpo agora é a imagem da morte, como uma pedra, um pedaço de madeira, um maço
de cigarro.
Parece
estar dormindo.
Gostaria
de dormir com você.
“Jesus
te ama!” Eu conheço a passagem dos minutos, só preciso preenchê-los com alguma
coisa.
Ellen
e seus seios firmes.
A
vodca e seu cheiro de álcool.
O
salame, seu cheiro me lembra o aroma acre das partes íntimas de Ellen?
Sou
homem, por isso gosto de ter razão.
Um
arroto pelo nariz me faz sentir o cheiro apimentado da vodca.
Mas
espera aí. Estou no meu quarto bebendo ou no cemitério?
Ou
no velório?
Certamente
não no quarto de Ellen.
Será
que eu devo beber e voltar para Ellen? Ainda posso sentir a reverberação
residual do tesão.
Seus
seios, poderiam me consolar. Passo a achar que não estou atrás de sexo e sim de
um consolo materno. Ellen e seus seios macios e firmes, me consolando, como um
bebê diante da indiferença macabra da vida.
Pseudosinceridade.
Jesus
me ama, mas parece que o tempo está sendo arrancado de mim a mordidas.
Lembro
dos olhos de Ellen quando levantei da cama e sai correndo.
O
desejo deixou os olhos dela como uma alma deixa o corpo.
Um
gole de vodca.
Uma
fatia de salame.
Pego
o maço de cigarro e o barulho do fósforo explodindo para acender o cigarro me
acorda de um sonho que eu tenho sem dormir.
Tenho
apenas 16 anos, mas tanto os vincos no meu rosto quanto os fios prateados na
minha cabeça teimam em dizer que eu tenho mais.
Faz
frio aqui dentro e me envolvo com um manto quente de tristeza.
Minha
tia e seu cigarro formando espirais de fumaça.
Ela
e sua pele branca com veias visíveis que lembravam rios azuis indo desaguar em
algum mar misteriosos sob suas roupas.
As
flores brancas cobrem seu busto, mas lembro deles e do meu desejo de enterrar
ali meu rosto e esquecer o mundo. Isso me faz lembrar de um poema de
Baudelaire, Os Faróis.
“Goya,
lúgubre sonho de obscuras vertigens,
De
fetos cuja carne cresta nos sabás,
De
velhas ao espelho e seminuas virgens,
Que
a meia ajustam e seduzem Satanás”
Onde
ela está agora?
Onde
eu estou agora?
Ah
sim, eu estou aqui.
Hemerson Miranda
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