de Miguel Angel (in memoriam)
A garoa intermitente enlameou todos os caminhos por onde Ezequiel conduz o bando de índios e negros, cobertos de noite: "bom pro caçador, ruim pra caça" pensa ele, porque sabe.
A escassos passos da dupla de sentinelas que encontram nas imediações do acampamento paraguaio, Ezequiel, no momento preciso, faz um gesto e um dos índios, já de prontidão, tesa o arco e, sibilando, a flecha atravessa o espaço acertando mira escolhida: a garganta de um dos soldados que tomba com o impacto e a surpresa; seu companheiro observa aparvalhado custando entender, o que lhe é fatal: um segundo índio está correndo em sua direção e, na mão erguida, um machado em riste desce sobre sua cabeça, abrindo-a até os ombros; o soldado despenca ao lado do moribundo camarada ainda tentando arrancar a flecha que lhe atravessa o pescoço; a mesma machadinha vai em sua ajuda, decepando-o com dois golpes; o sangue jorra espesso misturando-se à água do chuvisco que tudo encharcara; a turma de Ezequiel retoma a marcha; correm na escuridão pelos caminhos conhecidos dos indígenas; preferem driblar outras sentinelas; o alvoroço e as luzes dos lampiões indicam estarem bem perto do arraial dos inimigos; cautela e sigilo nos passos que o mato molhado amortece; avançam na calada dirigindo-se à barraca que Ezequiel julga alvo certo: os aposentos do tal Coronel Barrios. A garoa engrossa e vira aguaceiro, as gotas sobre o mato provocam o barulho protetor necessário para chegarem ainda mais perto; as risadas e as cantorias indicam que a tropa sente-se segura debaixo dos toldos, excitando a audácia do pequeno grupo. Ezequiel se adianta, a luz do lampião projeta na lona as sombras das pessoas no interior da barraca-alvo; uma das figuras o escravo reconhece: é o perfil de sinhá Beatriz. (Conhece-a desde adolescente, quando ela se divertia com os negrotes da senzala, brincando de fugir pelos esconsos da floresta e, quando alcançada, jogar-se ao chão para eles deitarem sobre seu corpo e fazer o que a ela parecia mais lhe agradar: ceder aos desejos que provocava nos molecotes.)
Lembra as palavras ditas em jura de resgatar sinhá e devolvê-la à família que espera na Casa Grande. E sabe da expectativa dos companheiros atrás dele, aguardando inquietos uma ordem sua. Ezequiel pouco ouve do palavrório no interior da barraca; o baque da chuvarada no toldo, se antes protegia, agora atrapalha; quase encostando a cara na lona, vai tratando de decifrar o que mal ouve. E antes de compreender, a figura projetada do coronel ergue-se, se desloca e apaga-se, para aparecer em corpo saindo do interior; oscilando, vestindo só um calção, abre um guarda chuva e aproxima-se de Ezequiel, preto como as trevas da noite alta que o encobrem: "bom pro caçador, ruim pra caça"; o punhal vibra na mão do alforriado, pronto para uso; o sujeito se detém perto dele, abre a braguilha e um jorro se confunde com a lama circundante; Ezequiel está a pouca distância do inimigo e seus músculos retesam aprontando o pulo; mas a voz do oficial o empaca: "Amanhã voltamos pra Corumbá e depois te levo pra Assunção, branquinha! - e rindo a boca despregada, tossindo arrotos, acrescentou: - Quem não vai gostar muito vai ser minha mulher se ela descobrir!" Em seguida, fechou a braguilha, o guarda chuva e voltou à tenda, cambaleante, dizendo: "Vamos abrir outra garrafa, minha prenda!" O trovão e a chuvada súbita embaralharam estouro de rolha com risada.
----------------
Fragmento do romance em fase de acabamento: Sobre Moscas e Aranhas de Guerra
0 Comentários