(esse
conto é baseado em histórias reais)
Os genes são uma coisa
assombrosamente interessante. Foi a informação genética que moldou o formato do
nariz e do rosto de minha avó, que minha mãe herdou e que depois eu herdei.
Algo no jeito como inclinamos um pouco a cabeça para um breve sorriso e como os
olhos quase se fecham por completo nesse ato também foram passados de geração.
Isso e mais um tsunami de informações que residem em longas estruturas
filamentosas dentro das células, fazendo dos genes manipuladores indiferentes,
sem empatia, que nos controlam como em um teatro de marionetes. Mas me pergunto
se outra característica similar e constante na vida dessas três mulheres é
também resultado de informação genética. Ou memética.
Ato 1 - Minha Avó
Quando fiz 27 anos
também era aniversário da cidade. Naquela noite eu e umas amigas fomos para a
festa de comemoração na praça principal e lá eu conheci um homem. O sorriso
dele fez meu coração acelerar e seu jeito educado e atencioso derreteram todo o
gelo, a muralha glacial, que me rodeava sempre. Estava mudando para a cidade e
resolveu passar por ali naquela festa e ver como eram os habitantes. Depois de
muito conversar e beber, ele me convidou a entrar em seu carro e lhe mostrar os
pontos principais da cidade que, a bem da verdade, não eram muitos. Fui
apontando uns locais, desertos e obscuros naquele dia, e em determinado momento
ele disse que meu sorriso era muito bonito, e isso no futuro se tornaria uma
daquelas lembranças tão tristes, quando a melancolia cai sobre você como uma
avalanche em segundos. Paramos perto da lagoa, sentamos no capô do carro e
fumamos em meio a conversas frívolas e flertes. Sob a luz prateada da lua, duas
silhuetas abraçadas, nós demos nosso primeiro beijo e, depois da meia noite, voltando
para dentro do carro, fizemos amor.
Naquela época eu
trabalhava numa loja de roupas e morava com meus pais. Quando estava saindo
para o horário de almoço vi um carro de mudanças dobrar a esquina e parar duas
ruas depois da escola. Curiosa e sem notícias dele por quase uma semana, fui
caminhando naquela direção, disfarçadamente, até que o vi descer do veículo.
Senti um sorriso abrir de olheira a olheira, resultado de noites insones, e um
frio revolver minha barriga. Meus pés se apressaram a ir ao encontro dele, mas
frearam bruscamente quando duas crianças surgiram e o rodearam, seguidas de uma
mulher aparentemente mais velha que eu. Acho que o que senti subir pela
garganta e repousar na língua foi bile. Caminhei com pressa e medo de ser vista
por ele, entrando na primeira rua que apareceu e demorando um pouco para me
localizar, tal era o meu estado mental, o choque, o baque, que meu corpo levou
fazendo chacoalhar até minha alma. Com essa tristeza travada na garganta e uma
lágrima trancada no olho, fui para casa almoçar. O caso é que não dá para
esconder nada da minha mãe, então ela perguntou a razão da minha tristeza, e
eu, com um muxoxo, pedi para ela esquecer.
Às 14 horas voltei para
a loja e o primeiro cliente que apareceu foi ele. Aquele sorriso veio até mim
com um dom de Alzheimer, fazendo toda a tristeza ir embora. Ele pegou minha mão
— a loja estava vazia — e falou que pensou em mim todos os dias; não teve como
me avisar, mas já estava se instalando numa casa ali próxima. Eu falei,
visivelmente decepcionada, que vira o caminhão, seus filhos e sua, aí um
amargor invadiu minha boca, sua esposa. Ele manteve o sorriso. Falou que eu não
deveria me preocupar com isso. Que havia se apaixonado por mim, que estava
enlouquecendo de vontade de me ver. Uma parte de mim, a parte que eu julgava
racional, pesava as consequências, tentava se manter como uma rocha inabalável,
mas a outra parte, a emocional, era constantes ondas que gritavam e quebravam
sobre a rocha, insistentemente. Quando ele apertou minha mão e disse que
passaria à noite para me levar a um lugar, bem, eu senti que ao quebrar de mais
uma onda, uma fissura se formara na rocha.
Às 18 horas, depois de
fechar a loja, ele me esperava no carro, estacionado na esquina. Durante a
viagem ele falou que seu casamento havia entrado no piloto automático. Após 15
anos eles continuavam juntos por costume, por causa das crianças. Não havia
mais amor, apenas estagnação, um acordo mútuo por causa dos filhos, embrulhado
em um silêncio que postergava qualquer pensamento sobre o futuro. Ele me falava
tudo isso com seriedade e convicção, alternando o olhar entre mim e a estrada,
mas quando terminava um longo parágrafo e me encarava com um sorriso, algo em
seus olhos dizia para mim "eu te amo". Talvez eu estivesse sendo precipitada,
ou apenas ele não estivesse realmente mentindo ao expressar isso. Talvez as
duas coisas.
Estacionamos num motel
na entrada da cidade. Nas minhas memórias tudo aquilo possuía um tecido
onírico, saído das telas de Hollywood. Como o efeito da cannabis, ele me
entorpecia, me fazia feliz, me dava a sensação de que necessitava de mim.
Entramos e fizemos amor loucamente até umas 22:30, entremeado por conversas
frívolas e provocantes, então eu imaginei que meus pais já estavam preocupados
e pedi para irmos embora. Ele me deixou numa esquina perto de casa, nos
abraçamos num beijo longo e nos despedimos.
Ficamos uns 10 meses
desse jeito. Como a esposa dele trabalhava em outra cidade, nos encontrávamos
na hora do almoço, quando seus filhos estavam na escola, ou íamos passear
durante a noite, terminando em um motel. Meus pais confiavam em mim e não me
enchiam de perguntas e sua esposa não desconfiava, já que ele sempre costumava
sair à noite e seu trabalho — ele era advogado e ostentava um anel na mão
direita — constantemente o levava a visitas noturnas. Nossas raras brigas logo
erguiam uma bandeira de paz, então o tempo que passávamos juntos era de
alegria, de esperanças. Eu contei a ele que queria que minha filha se chamasse
Adriana, ele falou que poderíamos morar perto da praia e dessa forma cada
encontro era de felicidade e planejamento, enquanto eu fazia o possível para
não pensar na família dele, afinal, o amor pela esposa chegara a um fim. Mas
todas essas coisas ficavam suspensas no mundo da imaginação. Um incômodo foi me
assomando durante os dias, quando eu meditava sobre o que estava acontecendo e
o quanto nublado parecia o futuro. No décimo primeiro mês uma tristeza me
assolava, pois eu não notava mudança e nada no horizonte se erguia como
esperança. Eu o via quase todos os dias, mas era outra mulher que todas as
noites compartilhava com ele da mesma cama. Eu invejava os momentos que o via
com seus filhos. Eu queria mais e isso no início me pareceu um pensamento
egoísta, até perceber que eu não estava errada.
Naquela noite nós
fizemos amor — talvez essa já não fosse a expressão mais adequada — mais uma
vez num motel. Nossos corpos durante o ato se tornaram uma máquina entediante,
atos mecânicos e programados. Meu corpo sobre a cama se movimentava num ritmo
enfadado, automático. Eu olhava para o teto enquanto ele apenas mantinha a
cadência maçante, desprovida de alguma emoção, jazendo sob o fardo dos dias,
dos meses, dos encontros. Quando estávamos nos vestindo ele perguntou se eu
estava bem, com seu sorriso habitual, mas que eu percebi, para minha surpresa,
já não causava tanta emoção. Respondi que sim, está tudo bem, e eu mesmo notei
a nota dissonante de falsidade nas minhas palavras e no meu sorriso. No carro
ele repetiu a mesma pergunta e eu, depois de um longo suspiro, repeti a
resposta. Quando estacionou na esquina perto da minha casa, intrigado, ele
voltou a perguntar e dessa vez a coragem apareceu. Falei o que eu estava
sentindo, perguntei como seriam as coisas dali para a frente, como seria o
nosso futuro. Disse que eu realmente o amava e que gostaria de viver com ele.
Falei que desejava uma decisão vinda dele, que eu ainda era jovem e poderia
estar perdendo uma oportunidade de constituir uma família e ser feliz.
Mesmo ele mantendo o
sorriso, diante daquelas minhas últimas palavras uma sombra caiu sobre seus
olhos. Ele perguntou se eu queria conhecer outros homens, se queria um tempo.
Obviamente ele me interpretou mal, mas eu não tive tempo de explicar melhor.
Após um longo suspiro que parecia expulsar todo o ar do corpo, ele virou para
mim com uma expressão séria, algo que até então eu não tinha visto, e sem que
eu tivesse tempo de perceber o que estava acontecendo, as costas de sua mão
direita me acertaram o rosto com tal violência que seu anel provocou um corte
profundo entre o olho e o canto da minha boca. Quando virei para o encarar,
surpresa e com uma dor profunda de onde jorrava o líquido viscoso, seu sorriso havia brotado novamente e ele
falava como se nada tivesse acontecido, num momento de pura insanidade. Falou
que depois nós conversaríamos melhor, me ofereceu um lenço para estancar o
sangue e se aproximou para me dar um beijo, mas eu apenas abri a porta e corri
para casa. Naquele momento jurei a mim mesma que aquilo nunca mais aconteceria
novamente.
Em casa meu pai dormia,
mas minha mãe me esperava. Seu olhar de espanto ao ver meu rosto me encheu de
tristeza e contei tudo a ela. Uma nuvem de mágoa contaminou aquela casa,
formando uma bruma densa e poluída, impregnando tudo, meus cabelos, a roupa de
minha mãe, caindo lentamente como flocos de neve após uma chuva radioativa.
Resolvemos não contar nada para meu pai. Logo cedo no dia seguinte ela ligou
para sua irmã, numa cidade próxima, e conseguiu com ela um emprego. No mesmo
dia eu me demiti, arrumei minhas malas, me despedi de meus pais e fui morar com
minha tia, longe daquele homem para sempre.
Naquela noite em que
entrei com o rosto sangrando com aquela ferida que se tornaria cicatriz pelo
resto da minha vida, minha mãe correu para seu quarto e trouxe uma mala que ela
chamava de farmacinha. Ali tinha todo tipo de remédio, além de saquinhos com
ervas. Se você sentisse algum mal estar, uma dor, o que fosse, minha mãe sempre
tinha o remédio certo. Bastava você falar o que estava sentindo, ela ia direto
naquela mala e trazia o que ia te curar. Nunca falhava, ela atualizava sempre
que podia. Mas naquela noite, enquanto ela limpava meu ferimento eu falei que
não doía tanto. Duas lições eu tinha aprendido nesse dia: sobre a fragilidade
dos relacionamentos e sobre a covardia extranatural dos homens. O que doía
mesmo era meu coração, mas para esse tipo de dor minha mãe não tinha remédio.
Ato II - Minha Mãe
Quando Adriana tinha 11
anos, meu marido morreu. Não tinha sido o casamento dos sonhos, mas também não
era de todo ruim. Na verdade foi um alívio para todos nós, inclusive para ele,
já que o câncer o tinha prostrado durante um ano. Quando recebi a ligação do
hospital eu estava deixando nossos filhos na escola. Ele se fora e me deixara
com duas crianças e nossa pequena casa caindo aos pedaços. Nosso desejo sempre
foi mudar para uma cidade melhor, sair daquele ovo onde todo mundo sabia da
vida dos outros. Mas mal conseguíamos pagar as contas, não podíamos reformar a
casa e ninguém a compraria naquele estado. E ainda tinha a escola das crianças.
Agora era eu sozinha. O luto, oportunidade única para pensar sobre a vida, é
uma coisa bem subjetiva e nos primeiros dias a falta que eu senti não era algo
tão doloroso. Após 10 anos de casamento o que eu sentia era como a síndrome do
membro fantasma. Eu havia me acostumado a ter ele sempre ao lado, nunca
imaginando como seria sem ele e até me esquecendo de como minha vida era antes
dele. Depois de um tempo a entropia fez seu papel e eu segui em frente.
Um mês depois eu já
estava saindo com outros caras, inclusive com apoio e insistência da minha mãe.
Seria como buscar renovação no poder alquímico de um pau jovem. Sábado à noite
eu estava livre. Deixava as crianças com meus pais e aproveitava os fins de
semana. Como eu trabalhava numa secretaria, conhecia bastante gente e não
faltavam flertes, convites etc, a maioria deles totalmente sem criatividade,
devo salientar.
Uma amiga em comum me
apresentou a um cara que trabalhava como assessor de algum político. Sentou na nossa
mesa depois de me dar três beijos de cumprimento, acendeu um cigarro e ficou
cofiando a barba espessa. Quando falou seu sotaque era do sul, uma das coisas
que me cativavam, como o nordestino, mas o primeiro ganhava. Logo me interessei
e mais tarde estávamos na minha casa. Minha amiga havia falado que ele era
casado, mas isso não o impediu. Nem a mim. Transamos por várias horas, ele com
sua boca faminta nas dobras de minha boceta, os dentes resvalando em meu
clitóris, se remexendo e eu me dilatando. Acordamos desnorteados e transamos
novamente, como que para oficializar alguma coisa.
Todos os fins de semana
agora eram preenchidos por ele. Eu era preenchida por ele. Não era como os
outros caras. Eu realmente sentia alguma coisa por ele e, apesar de saber que
aquilo estava se transformando em amor e temer um pouco isso, eu não tinha
muitas forças para me conter. Não com aqueles olhos negros me observando.
Nenhuma luz escapa de um buraco negro e nada em mim escapava daqueles olhos. E
eles diziam que ele me amava. Fora isso crescia em mim um sentimento bom, de
que eu ganhava em relação à mulher dele. Eu tinha noção de que era a novidade,
mas como não me sentiria importante desse jeito? As paredes da represa de meu
amor próprio se racharam e meu interior foi preenchido por um tsunami de
autoestima. Nos subterrâneos submersos de meu recôndito eu sonhava com o dia em
que ele chegaria até mim, me absorveria com aqueles olhos negros, seguraria
minha mão e diria que deixaria sua mulher por mim.
Num daqueles fins de semana
ele apareceu com uma surpresa. Trazia numa das mãos uma garrafa cara de vinho
tinto, um merlot, e na outra uma filmadora, canon, ele fez questão de frisar.
Apesar de relutar no início eu acabei cedendo, talvez em parte por causa do
álcool embotando minha mente e em parte pela confiança criada pela intimidade
que se estabeleceu entre nós. Posicionando o criado mudo com a câmera acima
dele, focou minha imagem semi embriagada na cama, pronta para tirar a roupa.
Ele falou que daria um zoom para capturar melhor algumas cenas e eu sorri,
incorporando Tera Patrick. O vídeo começou comigo fazendo sexo oral e eu
coloquei todo o meu empenho nisso, como se existisse uma plateia faminta do
outro lado da lente. Depois partimos para cenas de penetração vaginal. Eu sorri
meio grogue para a câmera quando ele fez um perianal e em seguida fez meu corpo
ter vários espasmos com um anal violento — acho que a câmera capturou
expressões de surpresa minhas — puxando meus cabelos. Terminou como terminam
todos esses vídeos amadores, sem nada de novo, sem nenhum plot twist. A oclusão
é sempre a formalidade do orgasmo.
No dia seguinte ele me
mandou por email o arquivo do vídeo. Assisti com um olhar crítico, sem
acreditar no abismo que era a imagem que tinha de mim mesma e minha aparência
real. Fiz um ou dois comentários raivosos sobre meus peitos e bunda, a pele
branca e já flácida. Procurei rir de mim mesma, um sorriso meio triste, mas no
geral gostei do vídeo. O apaguei do computador antes que as crianças o
encontrassem no futuro. No próximo fim de semana ele trouxe um notebook e nós
reassistimos a gravação como forma de excitação. Transamos loucamente. O pior
estava por vir nas próximas semanas.
Um dia Tiago, meu mais
velho, chegou da escola como um foguete, passando pela porta e se trancando no
quarto. Ele não corria, apenas andava apressado e sem olhar para os lados.
Adriana, que vinha atrás dele, olhou para mim desconsolada e me explicou o que
aconteceu. Na escola, ela falou, um vídeo viralizou — essa foi a palavra que
usou — e vários garotos correram para mostrar ao Tiago. Diante da minha
expressão de incompreensão, ela falou que o vídeo era meu. Tudo o que me
reveste foi assaltado por um arrepio que parecia não ter fim. Perguntei se ela
tinha visto o vídeo e sua resposta foi afirmativa. As pessoas na escola estavam
rindo dos dois por causa disso, mas ela não havia sido tão impactada quanto o
irmão. Fui até o quintal com o celular na mão e liguei para ele. Estava
ocupado. Enviei uma mensagem e 10 minutos depois recebi sua ligação. Minha voz
saia trêmula, pausada. Eu tive que falar mais de uma vez para que ele
entendesse. Então me falou que à noite viria para conversar.
Corro em direção à rua
quando ele estaciona o carro. Furiosamente entro e vou descarregando e
perguntando o que caralhos ele estava pensando em deixar o vídeo vazar assim.
Falei que confiei nele. Falei que era apaixonada por ele. Em meio a lágrimas
falei que esperava um futuro em que nós viveríamos juntos. Então quando eu
parei para recuperar o fôlego, ele começou a falar. Disse que não tinha sido
culpa dele, que soube do acontecido porque "amigos" tinham lhe
mandado o vídeo. Eu me perguntava se ele percebia o quanto suas palavras soavam
mentirosas. Falou que não era nada demais, afinal, — nesse momento uma corrente
elétrica percorreu minha espinha e fez meus olhos soltarem faíscas — que
atualmente essas coisas eram rapidamente esquecidas. Eu contei o que tinha
acontecido na escola das crianças e ele sorriu. Ele sorriu. Falou que isso hoje
em dia era até natural. A mentira continuava se esgueirando nos cantos de sua
boca. O ódio dentro de mim só crescia, mas não o suficiente, pois seu lugar era
tomado por uma tristeza que se avizinhava com força. Então ele falou aquilo que
fez meu mundo cair de vez.
"E que história é
essa de vivermos juntos? Você tá louca? Acha que eu vou largar minha família
por isso? (fez um sinal de desprezo com as mãos) Tenho meu trabalho, não posso
colocar as coisas a perder, não posso deixar tudo desandar."
As lágrimas vieram com
um despertar. Uma lembrança que até então eu não havia percebido e me odiei por
ser tão burra, tão idiota. No vídeo todo, todos aqueles 45 minutos, em nenhum
momento o rosto dele aparece. Só o meu. Eu não teria como provar que tinha sido
ele. Talvez o e-mail, mas aí ele poderia lançar outros tipos de ameaça. Cidade
pequena, conhecedor de políticos e principalmente de policiais. Era a palavra
dela contra a minha. Eu, uma mulher. Eu, a amante. Saí do carro pedindo para
que ele não voltasse a me procurar. Ele apenas sorriu e foi embora. Há um
sorriso único, pertencente a aquelas pessoas que sabem que estão por cima das
outras.
O que resumiria os
próximos dias poderia ser encontrado nos comentários sobre o vídeo que
circulavam pela Internet. "Vadia" era meu novo nome. "Vagabunda".
Mulheres falando "bem-feito" e postando minha foto e o vídeo em
grupos no WhatsApp. Homens querendo me conhecer, mandando fotos e vídeos
pelados para o meu celular. Naquela cidade pequena todos já sabiam o que tinha
acontecido e todos os olhares, de todos os tipos, se voltavam para mim. Apenas
me julgando. Meus filhos num misto de preocupação e angústia. Aquela cidade que
eu sempre quis deixar, agora havia se tornado um inferno. Nos dias que se
seguiram eu vivi à deriva num vasto e negro oceano de solidão, sacudida por
ondas de desespero. O problema da felicidade é que quando ela desaparece é como
se nunca tivesse existido.
Ato III - Eu
Acordo no motel Eros. A
luz dourada da manhã se esgueira pelas frestas das venezianas. Na TV a previsão
do tempo diz que será um dia ensolarado.
Ele também acorda do
meu lado e me olha com um sorriso sonolento. Vejo em seus olhos que ele me ama.
Trepamos mais uma vez antes de sairmos para nossas casas. E ainda antes disso
eu tomo um banho e fico uns minutos em frente ao espelho. Minha avó dizia que
eu herdei toda a aparência da minha mãe, mas eu agradecia por não ter herdado a
fraqueza. Tenho que voltar à academia, tenho que voltar a correr. Quando se tem
17 anos, sem preocupação alguma, esse corpinho não custa nada. Agora vejo aqui
uma barriguinha, a bunda e os seios começando a ficar flácidos. Aos 40 anos,
esse corpinho se tornou um trabalho em tempo integral.
Para começar o dia bem:
xanax.
Quando volto para meu
apartamento depois do trabalho, o Paulo ainda não chegou da casa do pai. Quem
me recebe é Mimo, nosso gatinho. Não está com fome, é apenas saudade. A vizinha
me fez o grande favor de colocar a comida dele. Desabo no sofá e mesmo com fome
ainda vou demorar a sair daqui. Passa por minha mente a sensação de que seja
qual for o lugar que eu escolha ficar sempre é o lugar errado. Já Mimo não
aparenta ter nenhum projeto de vida e o único futuro para o qual ele caminha é
o sofá. Ele é obstinado em ser um gato, enquanto eu gostaria que ele fosse uma
companhia mais sociável. Perco quase uma hora em um joguinho de celular quando
a porta se abre e Paulo entra. "Mãe, o que tem pro jantar?" Não
existe um "Oi", nem "Tudo bem?", só o instinto mais
primitivo do animal de 16 anos que eu gerei. Resignada eu sorrio, levanto e vou
preparar o jantar.
Janto assistindo a
novela, Paulo janta assistindo algum anime da temporada, como sempre, com o som
da sua TV mais alto que o meu. No celular eu recebo uma mensagem dele, o cara
do motel. Diz que está com saudade, que precisamos nos encontrar amanhã
novamente e eu falo "Claro", e digo "Sim, é só vir me
pegar". Peço para ele mandar um nude e quando leio o que eu mesma escrevi
penso por qual idade mental estou passando. Ele aquiesce ao meu pedido e já me
dá vontade que chegue logo amanhã. Na TV o comercial de uma frigideira
antiaderente me chama a atenção, então me vejo presa nesse momento da minha
vida em que um utensílio para cozinha faz um cabo de guerra com a foto de um
pau jovem. Nos despedimos com mensagens obscenas e corações rosados.
Depois do banho eu vou
para o quarto com uma taça de vinho e me posto diante do espelho — é sério, eu
tenho que parar de fazer isso. O colágeno tem dado um jeito no meu rosto. Você
não diria que eu tenho mais de 40 anos. Me encaro como se nunca tivesse me visto
antes, mas a bem da verdade eu acho que nunca me enxerguei realmente.
Vamos, sorria. Se
conseguir.
Olá, músculo
zigomático. Contrai a carne de meu rosto, como duas cordas abrindo uma cortina
para mostrar o meu sorriso. Meu rosto parece um teatro mesmo. E eu não sou tão
boa atriz assim. É uma estranha diante de mim, que para as outras pessoas eu
digo que conheço bem. A quem estou querendo enganar? Por trás dessas três
camadas de pele estão as três mulheres da minha história. Minha avó, minha mãe
e eu. E agora à noite, essa imagem, essa construção capenga que eu tive que
manter durante o dia, se desfaz em cinzas, para que ao despontar de um novo dia
— eis aí mais uma ilusão — eu recomece a construir do zero. Essa minha
identidade tão frágil, que está agora diante do espelho contando a si mesma a
mentira que deve acreditar.
Depois de um dia
cansativo e para suportar a imagem diante de si e se preparar para o fim de
semana: uma taça de vinho e um xanax.
Acordo no motel
Afrodite. Ele está saindo do banho. Os seus olhos tem cor de nada, como se a
luz nunca tivesse penetrado ali.
Ele é 10 anos mais novo
que eu, mas já tem dois filhos e é casado com uma mulher 5 anos mais jovem. Nos
conhecemos pelo Facebook. Naquela época virávamos a madrugada conversando pelo
chat, flertando, nos provocando. A isso se seguiu o primeiro encontro, a
primeira trepada e então um mês virou três meses e depois seis meses. Mas toda
semana temos a mesma conversa, a mesma tecla que eu teimo em bater.
Ironicamente eu não gosto da ideia de compartilhar ele com outra mulher. Eu já
o coloquei contra a parede, ele tenta se esquivar, mas eu insisto. Eu poderia
pensar nos filhos dele, mas não acho que as coisas funcionam assim. Eles tem
entre 4 e 6 anos, não tem muito controle sobre si mesmos, mas por acaso eu
tenho? Eu não escolho por quem me apaixonar. Quem sabe das coisas são os genes
dentro de mim e por mais que eu reconheça as cordas de marionete com que eles
me manipulam, não sei qual a extensão delas. Quando perguntaram a William James
"Você acredita em livre arbítrio?" ele respondeu "Sim. Que
escolha eu tenho?". Sei que para você aí sentado é fácil me julgar, e nem
adianta vir com um sorriso torto de desprezo para cima de mim. Pode julgar o
quanto quiser, nada vai mudar. Foi fácil também julgarem minha mãe. Duas vezes.
Eu não busco empatia, até porque não a tenho. Então eu preciso de uma resposta.
Não tenho mais idade para relações românticas e infantis. Preciso de segurança,
de estabilidade. Preciso que ele tome uma decisão. Então depois de treparmos
gostoso como sempre acontece, eu lhe dei um ultimato e ele disse que
responderia na próxima semana. Eu sei bem o que quero. Ele tem que saber
também. Para começar esse dia: uma taça de vinho branco e duas aspirinas.
Quando estou de volta
no apartamento, Paulo ainda está na casa do pai. Mimo me olha com uma cara de
desaprovação. Na verdade ele sempre tem a cara de quem leu Kant e entendeu.
Talvez ele saiba mais que eu sobre escolha e desejo, no mundo dele onde
liberdade e decisão são apenas quimeras e somos fadados a cumprir nossa tarefa
biológica e morrer. Ele olha e num bocejo me mostra que esse mundo também é o
meu. Num momento reflexivo como esse ele, no auge de sua sapiência, se senta e
começa a lamber suas bolas. A porta abre e Paulo entra com o pai, que me traz
uma pequena coleção de pimentas mexicanas, o que agradeço cerimoniosamente. O
convido para jantar, mas ele declina. Os dois vieram apenas pegar umas roupas
de Paulo, pois vão se aventurar amanhã, numa lagoa. Odeio não ser informada das
coisas antecipadamente, então entendo qual é a da coleção de pimentas. Acabo
deixando tudo para lá.
Quando o pai de Paulo e
eu nos separamos o fizemos porque tínhamos excedido a data de validade de nossa
relação, que sempre estava ali presente diante de nossos olhos, como uma
contagem regressiva. E por isso mesmo a separação foi mais fácil, mais
tranquila.
Depois que eles saem eu
ligo para ele e o convido para sair. Vamos jantar, depois ao cinema, depois ao
bar e terminamos a noite num motel. Antes que eu saia do apartamento, para isso
tudo, para elevar os níveis de serotonina: uma taça de vinho e um prozac.
A casa tem uma banheira
de hidromassagem, um banheiro com duas pias e uma parede de espelhos. O quarto
principal e a sala de estar tem claraboias, esta última com uma cristaleira
embutida com portas de vidro temperado. O piso é de linóleo. O aluguel é caro,
mas ele fala que se dividirmos o valor fica mais suave. Sim, ele tomou sua
decisão. Estamos aqui escolhendo a casa em que vamos morar. Ele vai deixar mulher
e filhos por mim e nem preciso dizer o quanto eu estou feliz. Decido usar o olx
para vender meus móveis e comprarmos novos. Paulo vai ficar com o pai até eu me
organizar. Nós estamos aqui numa manhã de domingo diante daquele que será nosso
lar. Ele me envolve com seu braço e, por mais que eu não seja de demonstrar
muitos sentimentos, meu sorriso de satisfação estampa meu rosto. Ele diz que já
conversou com a esposa e me poupa da choradeira que se seguiu. Depois passamos
a tarde na praia, finalizando a noite num motel. Ele se serve de mim, agarrando
minha bunda, vorazmente me comendo como se minha existência tivesse apenas esse
propósito exclusivo. Eu o deixo louco na cama, ele está prestes a me deixar
louca de outras formas.
Acordo no motel Baco e
penso que nos últimos meses eu tenho acordado no Monte Olimpo.
Explico para meu marido
a situação. Ele parece ficar feliz por mim, mas a impressão que tenho é de que
ele está sorrindo por ficar mais tempo com o filho. Em dois dias eu consegui
vender tudo da casa, menos as coisas de Paulo, claro. Os dias pareciam seguir
como no tempo dos sonhos. Já era a semana de nós mudarmos e, para me preparar
para o grande dia: uma taça de vinho frisante e ritalina.
É o dia. Estou com a
chave da casa em minhas mãos, já entreguei o meu apartamento e vamos passar
numa loja para comprarmos os móveis seguindo para o novo lar. Ele me disse que
tudo bem se eu o esperasse próximo a casa dele. De onde estou vejo a porta. Ela
se abre e ele sai. Atrás dele está a esposa com os dois filhos à sua frente.
Mas tem algo estranho. Ele caminha em minha direção de mãos vazias. Era para
ter uma mala, como as que eu estou segurando. A expressão no rosto dele, eu não
consigo ler. Então as coisas começam a ficar nubladas e até suas palavras são brumosas.
Escuto algo como
"não posso fazer isso". Parece ser um sorriso nos lábios da esposa
dele. Ouço "não posso deixar as crianças". Ele tenta segurar minhas
mãos, mas eu me afasto. Os olhos dele ainda não tem cor de nada, como o
esquecimento, e meu coração está na minha garganta. Ele diz
"desculpe" e tenta me abraçar. Eu recuo com um olhar de
incompreensão. Digo que ele não pode fazer isso. Digo que eu não tenho para
onde ir. Mas isso tudo eu falo num sussurro, numa voz pastosa. Não gosto de demonstrar
sentimentos e muito menos de armar um barraco. Não sei se aquilo é um sorriso
no rosto da sua mulher, mas não quero dar a ela o triunfo por meio de um ataque
histérico vindo de mim. Eu vou me afastando dele até dar as costas e andar em
direção à praça principal. Meu celular está vibrando e eu sei que é ele.
Estou sentada na praça
deserta com tudo o que eu possuo cabendo em duas malas, a chave de uma casa que
eu não posso pagar, sem um lugar para ir e com o coração três vezes quebrado.
Sozinha, eu vejo que minha vida se resume a isso: testemunhar os instantes que
morrem.
Três semanas depois eu
estou no banheiro do trabalho com o teste de gravidez na mão esperando a
gonadotrofina coriônica em minha urina fazer efeito. Lembro que entre os anos
1950 e 1960 os testes de gravidez eram feitos da seguinte forma: rãs africanas
da espécie xenopus laevis recebiam uma injeção de urina da mulher e se essa
mulher estivesse grávida, em poucas horas a rã poria ovos. Essa sou eu tentando
me distrair. Para me preparar para a resposta do teste e em homenagem às rãs
africanas: xanax.
Estou grávida.
A vida é isso. Longos
períodos de tédio interrompidos pelo pânico casual. Até vir a morte, o triste
fim do tédio.
Último Ato
Corta para mim, andando
entre becos e ruelas, com o Google maps aberto no celular, procurando um
endereço. Uma amiga dos tempos da escola me indicou esse lugar. A destruição do
mundo está em curso, tanto o mundo ao meu redor quanto o meu. E nessa situação
eu não tenho condições de criar mais um filho. Meus pais não estão aqui para me
obrigar. Ou me impedir. Quando chego no lugar, consulto mais uma vez meu saldo
em conta. Comprar Cytotec num camelô seria mais barato, mas é melhor fazer da
maneira certa — ok, essa não é exatamente a frase que eu queria usar. A estrelinha
marca uma travessa no Google maps, então entro num prédio que parece ter saído
de algum rasgo no tempo, proveniente da idade média. Faço o exame de sangue e
vou numa livraria para matar o tempo. Duas horas depois volto e sou informada
que o aborto custará 3.500 reais e que o horário disponível será daqui a uma
hora. Aproveito para comprar uma roupa ali perto.
Corta para minha mãe em
seus dias de depressão. Abandonando seu emprego e nos deixando aos cuidados de
minha avó. Naquela época ela não conseguia sair de casa. Não só na Internet,
mas nas ruas, uma avalanche de comentários depreciativos caia sobre ela
constantemente naquela cidade pequena. Meu próprio avô tecia alguns comentários
maldosos, sempre cortados por minha avó. Seu próprio filho não queria falar com
ela. Para minha mãe a sensação constante que ela tinha é de que tudo o que
tocasse perdia a vida. As pessoas perguntavam o que estava acontecendo com ela,
ela perguntava o que estava acontecendo com as pessoas.
Corta para minha avó
cuidando de mim quando eu entrava na adolescência. A cicatriz em seu rosto, se
misturando a várias linhas de expressão e rugas, se destacando como uma eterna
lágrima. A expressão sempre cansada, sempre triste, como de alguém que só vive
pela inércia.
Agora corta para meu
irmão com 25 anos se acabando na bebida com um misto de tristeza e culpa,
vivendo num quarto alugado só com um colchão imundo e cercado por baratas. Um
dia ele vem pedir minha ajuda e mente. O dinheiro era para bebida, não para o
aluguel.
Corta para mim diante
do médico que parece o Dedé Santana, com um sotaque que eu não consigo definir.
Sou sedada por Dormonid enquanto ele me pede para fazer uma contagem regressiva
e eu sorrio dessa ironia. Apago e só o que posso fazer é imaginar o que
aconteceu. A cânula introduzida no meu colo do útero sugando a vácuo o
"objeto". Esse pensamento me faz estremecer. Quando acordo sinto a
cólica, me dão remédios para dor e vou embora. Durante muito tempo só o que
senti foi raiva em pó, que eu dissolvia no vinho.
Corta para a minha avó
recebendo a notícia de que o cara que provocou aquela cicatriz no seu rosto foi
encontrado morto com dois tiros na cabeça por ter reagido a um assalto. Foca no
rosto dela e seu sorriso trêmulo.
Corta para o corpo de
meu irmão inerte sob uma overdose de cocaína, com as baratas fazendo companhia
a ele como numa procissão. Latas e garrafas de bebidas espalhadas por todos os
cantos. Na parede descascada do quarto a frase riscada era "Me perdoa
mãe".
Corta para mim fazendo
uma denúncia de perseguição ao cara que me largou sozinha com minhas malas
naquele dia após eu bloquear seu número e gritar implorando para que não me
procurasse mais. Dias depois ele foi preso por ter machucado meu braço quando
quis me obrigar a conversar com ele.
Corta para minha mãe
encontrada na banheira, submersa em sangue.
Corta os pulsos.
Volta para o cotidiano,
tedioso, vazio, afogado em tristeza. As informações genéticas dessa família que
parece caminhar nas alamedas do inferno. A mesma forma de inclinar um pouco a
cabeça ao sorrir, as três histórias tristes, as três camadas de pele. Olho no
espelho e vejo a cicatriz, vejo olhos negros, vejo uma mesma dor pulando de
corpo em corpo como um parasita. O que é besteira para uma pessoa é a vida do
outro. "Vivendo e aprendendo", dizem, mas eu só consigo captar a
primeira parte dessa lição.
Corta para o dia em que
comecei a seguir um cara casado no Twitter. E me apaixonei por ele.
Corta.
Hemerson Miranda
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