Merda.
Assim que coloco o primeiro pé na casa percebo um fluxo morno e me sinto
molhada entre as pernas. O local abandonado, sua cerâmica no chão com várias
rachaduras, paredes descascando e lâminas da luz solar atravessando as janelas
quebradas mostrando nuvens de poeira que flutuam por todo lado, nesse lugar sem
móveis, mas abarrotado de histórias, contaminado por uma tristeza que forma uma
camada densa e poluída, aqui foi o meu primeiro lar há mais de 30 anos. Desde
então eu nunca mais tive um lugar para chamar de meu. Nem mesmo de lar.
Subo as escadas e o corrimão possui uma crosta de poeira milenar. Teias
de aranha proliferam entre o teto e as paredes e os filetes de sol que batem
nelas dá um ar telúrico ao local com seus arco-íris artificiais. O silêncio
dessa casa é o último suspiro de uma pequena família. Quando entro no quarto,
que parece hermeticamente fechado, um ar morno e tóxico invade minhas narinas e
eu me apresso em abrir a janela, o que faço com certa dificuldade. Lá fora está
o quintal. O que antes era de um verde vivo e luminoso agora jaz entre o
amarelado dos tempos e o cinza da degradação. Aquela antes frondosa mangueira
agora só ergue fracamente galhos secos e o galho mais forte, o que ainda
sustenta o balanço, se curvou deixando metade da tábua do balanço e parte da
corda engolidas pela terra. Folhas secas e craquelentas se espalham por todo o
terreno, em cores sem vida, formando um tapete quebradiço. Hastes retorcidas do
que antes eram plantas frutíferas agora se levantam do chão com um cansaço que
é de morte e se curvam ante sua sorte. Mas ali, bem no meio do quintal, ainda
se ergue a armação feita por meu pai há tantos tempos. As longas estacas ainda
estão firmemente fincadas ao chão, mas o que as cobre e cobre as outras estacas
horizontais e amarradas a elas, são fibras secas, folhas mortas, tão poucas,
sobreviventes de algum holocausto, que você consegue contar nos dedos. A terra
seca é desbotada e rugosa como um papiro.
Quando me ligaram na manhã de ontem para dizer que meu pai havia falecido,
entrei naquele estado em que você acha que se escondeu em algum lugar, mas
esqueceu onde. Não que ele e eu ainda
tivéssemos contato constante. Na verdade faz um ano desde a última vez que nos
vimos. Desde que minha mãe morreu ele e eu meio que nos tornamos estranhos,
mais ainda do que já tínhamos nos tornado. De forma que nunca fizemos muita
questão de visitar o outro. Então ontem, na madrugada de ontem, quando ele foi
levado por um AVC, foi como uma memória antiga me lembrando que eu ainda tinha
um pai. Sendo filha única fui lá eu cuidar de todas as coisas: o funeral, o
sepultamento, as declarações de pêsames. Tudo com o dinheiro que ele deixou, já
que eu só recebo o suficiente para me manter. Depois disso tudo eu soube que
ele havia me deixado essa casa como herança. Casa que ele já nem morava, talvez
abandonado, penso eu, por manter as lembranças de um passado até feliz e da
mulher com quem ele viveu grande parte de sua vida. No caminho entre o
cemitério e a casa eu passo na farmácia e quando chego no antigo lugar onde
escrevi minha infância, algo dentro de mim se revolve, se revolta, como uma
comida que me fez mal e quer se expulsar. Então estou aqui hoje, não mais como
a criança que brincava naquele quintal e que sozinha se balançava sob aquela
árvore, mas a mulher com quarenta anos que ainda não sabe o que fazer com sua
vida. Esse era o meu quarto e a visão do quintal era a primeira imagem que eu
via todos os dias.
Vou até o banheiro e, óbvio, não tem papel higiênico. O líquido quente e
copioso que sai de mim parece me despertar para a realidade deste lugar em
decadência. Os fantasmas que assombram essa casa são de coisas inacabadas e de
coisas extremamente feitas. Retiro a calcinha sob o vestido e jogo aquilo
ensanguentado num canto qualquer, me limpo e me seco com lenços umedecidos o
melhor que consigo, colocando em seguida um absorvente interno que eu trouxe na
bolsa. Essa cena toda está sendo observada e só me dou conta minutos depois. Há
um espelho enorme ao lado da pia e eu, sentada no vaso sanitário, rio de mim
mesma.
Volto para o quarto e na janela minhas memórias vão redesenhando esse
cenário, colorindo o passado. As imagens se formam como em um sonho. Toda manhã
eu acordo com o canto dos pássaros que se aninham na mangueira. Quando abro a
janela uma saraivada de pássaros alça voo dentre as folhas, como um enxame de
abelhas. Do lado esquerdo do quintal, o que parece um tapete verde, é uma
pequena plantação de batatas que geralmente vão para a mesa do jantar. No lado
direito, uma pequena horta com feijão, tomate e pimenta é regada constantemente
e dá os frutos que enchem nossos pratos no almoço. Bananeiras e um pequeno
milharal também se juntam a todo o verde. Eu sempre ouço das outras pessoas a
frase "ele tem boa mão pra plantar", se referindo ao meu pai. Apesar
de não entender muito bem aquelas palavras, eu sei o que em resumo elas
significam. Mas a atração principal do quintal é o que fica exatamente no
centro dele. O maracujá. Do tupi "mara kuya", significa alimento de
cuia, fruto produzido por plantas do gênero passiflora. Mas calma, não vá me
achando tão inteligente. Eu só decorei isso porque tive um apego muito grande a
essa planta. Lembro quando meu pai construiu a armação para que o maracujá, que
é uma planta trepadeira, pudesse se emaranhar. Cinco pares de estacas verticais
com outras horizontais amarradas acima das primeiras. Quando a planta invadiu
toda a armação, como um exército avançando e conquistando, aquilo parecia um
cobertor verde de onde brotavam flores ornamentais que eu acho muito bonitas e
frutas grandes e brilhantes. Da janela você vê que a armação tem a forma de um
M. Ou um W, dependendo de que lado você olhe. A planta faz daquilo um túnel
onde eu gosto de passar a maior parte do dia, iluminado pelo sol que entra pelas
frestas e perfumado pelo pólen das flores. Eu pego uma mangueira e molho toda a
extensão da armação, às vezes esfregando as folhas para tirar a poeira, e a
junção das gotas de água com os filetes do sol no emaranhado de galhos
retorcidos e folhas verdes formam uma espécie de névoa que me hipnotiza.
Quando não chove eu mesma cuido de ficar com a mangueira próxima para
molhar as folhas. Aquele túnel se tornou meu próprio mundo, reminiscências de
contos de fadas, contendo uma atmosfera celta circundante de brumas onde
abelhas e borboletas que voam entre as flores de maracujá são fadas vindas de
uma dimensão não tão distante. Ali, coberta pelo manto verde e segura pelo
túnel, eu construo minha própria realidade composta pelo tecido dos sonhos. O
pólen flutua no ar com um aroma que me causa certo torpor confortável. Demorei
muito a compartilhar aquele meu canto íntimo com outra pessoa, o que, se eu
soubesse antes, nunca teria feito. Com ninguém.
Tenho 12 anos e chamo um amigo da escola para experimentar o balanço na
minha casa. Ele se interessa pelo "túnel" e eu exito porque aquele,
para mim, é um lugar sagrado. Mas logo cedo, eu cedo e lá estamos nós debaixo
do manto verde. Gotículas ainda caem de algumas folhas e os raios solares
conduzem o clima etéreo de meu mundo de fantasia. Não sei se ele também vê
isso, mas é ali, entre o emaranhado de meus sonhos, que tenho o meu primeiro
beijo. Não sinto nada de sobrenatural, não explodem fogos de artifício nem vejo
estrelas. Apenas sinto a língua dele, uma língua áspera, de sabor amargo, tão
áspera quanto a língua do gatinho que vou adotar dois anos mais tarde. Os
vizinhos, nesse momento, ouvem Love Me Do, dos Beatles, e um pingo de água cai
bem na minha bochecha, me fazendo rir. Esse garoto, depois desse dia, eu nunca
mais o vi. Ele mudou de cidade no dia seguinte.
Tenho 14 anos e acabo de chegar da escola. Meus pais estão no trabalho.
Chamo um amigo para ir até minha casa e no quintal eu percebo que, diferente do
garoto de meu primeiro beijo, ele está interessado em outro "túnel".
Os genes que formaram a bela bunda da minha mãe me agraciaram também e, assim
como ela fazia sucesso entre os garotos na escola durante sua adolescência, eu
sigo seus passos. Está chovendo fracamente, então a névoa do maracujá invade todo
o túnel. Nós estamos nos molhando e nos beijando. Os vizinhos, no momento,
estão ouvindo I Want To Hold Your Hand, dos Beatles, e talvez por isso no
futuro eu não irei suportar ouvir essa banda. Enquanto nos beijamos, esse
garoto, ele aperta minha bunda, depois aperta meus seios, que estão ficando
grandes, então em algum momento ele abre o zíper de sua calça e tira lá de
dentro o que parece ser um dedo. Um dedo grosso, comprido e sem ossos, com
veias no seu comprimento e várias rugas na base, a qual se perde dentro de sua
calça e entre alguns pelos. Ele conduz minha mão e me faz pegar naquilo. Eu não
faço ideia do que fazer, então apenas aperto. Fico apertando, como ele faz com
minha bunda e meus peitos. Como ele não reclama, eu continuo. Essa é uma das
memórias que me farão sentir ridícula no futuro, invocando o passado e abrindo
um sorriso tolo e envergonhado. Mas quem é que não tem lembranças ridículas?
Ele então tira minha calcinha sob a saia, me ergue em seus braços, aí eu enlaço
seu pescoço com meus braços, enlaço sua cintura com minhas pernas e quando ele
coloca aquilo dentro de mim, dói, me machuca um pouco, e eu, novamente sem
saber o que fazer, só falo "aí", gemo "isso, isso",
sussurro "assim", porque acho que é isso que tem que ser feito quando
se perde a virgindade. Então depois do orgasmo, naquele momento imediato e
solitário, uma solidão sólida que apagava as lembranças e ultrapassava a morte,
algo em meu corpo gritava que eu não havia só perdido a virgindade. Eu havia
perdido algo muito maior.
No ano seguinte chega o meu aniversário de 15 anos, mas se eu pudesse
apagar esse dia não só da minha memória como da realidade, eu o faria. Nesse
dia, nesse exato dia, a rotação em torno do eixo demorou mais de um ano. O sol
se põe e o céu está em chamas. Minha mãe foi pegar o bolo e mais tarde chegarão
parentes e amigos para uma pequena comemoração. Meu pai, que é fã de Beatles,
colocou para tocar Twist and Shout. Ele me diz para esperar sentada na cozinha.
Estou lá, tamborilando os dedos na mesa embrulhada em meu novo vestido cor
marfim e ele surge com uma garrafa de vinho, duas taças e um sorriso malicioso
nos lábios. Diz que já é hora de eu experimentar e uma excitação invade meu
corpo. Meu pai e eu sempre fomos muito chegados, até mais do que minha mãe. Eu
vivia nos braços e no colo dele, sempre sendo acariciada, mimada. Quando
percebi que havia algo de errado naquele excesso de carinho que até então eu
julgava normal, já era tarde demais. Ele enche as duas taças. Como eu nunca
havia bebido, apenas o imito e ele bebe como se fosse água. Na língua o líquido
é doce, mas na garganta uma pequena queimação faz cócegas e me leva a tossir,
arrancando uma gargalhada dele e um sorriso meu. Quando ele enche a segunda
taça, eu já estou um pouco tonta. Rio e falo descontroladamente e ele apenas me
observa. Beberica o vinho pacientemente e sorrindo. Na minha empolgação eu o
puxo pelo braço até o quintal, mas antes tomo um gole enorme. As palavras na
minha cabeça se unem perfeitamente, mas na minha boca elas são deformadas, então
ele não deve estar entendendo nada do que eu falo quando entramos no túnel. O
cobertor verde gira ao meu redor e os poucos sons são ecos distantes. Eu quero
contar a ele daquele lugar e da magia que o envolve. Quero falar do clima de
conto de fadas que ele evoca. Mas nada sai como eu planejo. Meu pai me encosta
junto de uma das estacas e me coloca de costas para ele. Eu tento falar alguma
coisa, mas nada audível sai. Sua mão, grande e forte, agarra meus pulsos acima
da minha cabeça, com a outra mão ele abaixa minha calcinha e levanta o vestido.
As coisas estão acontecendo com a mesma forma que tem o tecido dos sonhos, se
transformando em pesadelo, tudo rápido e embaçado. Eu ouço o barulho do zíper
sendo aberto e sinto um odor azedo e fétido erguer-se no ar. Meu corpo não me
obedece, ele vibra em espasmos aleatórios e quando eu tento algo como um grito
a mão dele tapa minha boca, cobrindo quase completamente o meu rosto. Quando
ele coloca aquela coisa monstruosa dentro de mim a dor é grande e se intensifica
porque ele dá estocadas violentas sob meus protestos abafados. Lágrimas caem em
profusão na mão que me impede de gritar e meus pulsos, eu acho que não os
sinto. Meu corpo sua, minhas pernas tremem e uma queimação dolorosa ataca minha
vagina e mais para dentro.
O que acontece depois sou eu chorando e tonta, minha mãe me perguntando
o que aconteceu, minha vagina sangrando e dolorida. Quando consigo contar o que
aconteceu minha mãe apenas coloca a mão em meu ombro e diz para eu não me
preocupar, pois nunca mais irá acontecer. Só isso. Ele não é denunciado, não
temos uma conversa séria e longa sobre isso, apenas querem que eu esqueça.
Realmente nunca mais aconteceu e eu nunca soube o que minha mãe fez para
garantir isso. Então o resto da noite sou eu forçando um sorriso triste para os
convidados e sentindo dores internas. Sou eu me afastando o máximo que posso de
qualquer contato com meu pai e com as mãos tremendo. Meus olhos contém um
horizonte infinito de tristeza. Dias depois recebo a notícia que nunca poderei
ter filhos. De que sofri lesões. E minha mãe diz que eu não posso falar a
ninguém sobre isso. Os dias seguem como se eu ainda estivesse bêbada. Meu pai
nem me olha mais. Minha mãe age como se nada tivesse acontecido. Eu nunca mais
fui ao túnel. Aquilo agora é um cemitério de fadas, um deserto de tristeza
assombrado por fantasmas que, por alguma razão, ouvem muito os Beatles. Todas
as folhas e flores ornamentais vão morrendo aos poucos e os frutos se tornam
púrpura-escuro, apodrecendo como meu próprio corpo. Minha vida depois daí vai
se definhando do mesmo jeito que o maracujá.
No cemitério, depois que todos foram embora, eu fiquei diante da lápide,
relembrando os quarenta anos que conheci esse homem. Cuspi na terra sob a qual
seu caixão agora repousa. Infelizmente só ele morreu. A lembrança dele está
condenada a ficar comigo até minha própria morte.
Hemerson Miranda
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