de Miguel Angel (in memoriam)
Todos os dias, semelhante a ritual, festejam a excitação de seus corpos expostos, acariciados sem palavras e muitos sorrisos; quando a tensão cresce e ele insiste pedindo o número de seu telefone, depois de breve hesitação, ela corre a esconder-se com medo do poder de concretizar desejos ameaçadores de remotas convicções.
Todos os dias, o jovem amante platônico insiste, pedindo com sinais para lhe passar o número, símbolo de sua aprovação. É quando ela foge, para voltar no dia seguinte depois de ter-se prometido, mais uma vez, terminar com aquilo, renunciar à provocação.
Desafio refletido em todos os espelhos da casa:
Na sala; nos cristais, o silêncio:
Eu tenho uma espécie de vulcão dentro de mim.
Eu posso entrar em erupção a qualquer instante, é bom você tomar cuidado.
No banheiro e nua, os seios entre as mãos; dialogando com o silêncio:
Se eu deixar de manter você engarrafada e entrasse em erupção total, o que aconteceria?
Marido de malas prontas, com a mesma pressa de sempre se despede; três dias longe; negócios inadiáveis. Parte, e sem o saber, deixa Anamaria com missão secreta e proibida.
Um verdadeiro cartaz, fragmento de alguma caixa de papelão; com o lápis de sobrancelhas, escreve em bom tamanho o número de seu telefone. Depois dança de rosto colado com ele; aninha-o entre seus seios; esfrega-o entre as pernas; murmura canções de ingênua pornografia para ele; enquanto aguarda a coragem.
A hora do rito chegando, o momento da provocação se aproxima. Anamaria anda pela casa arrastando o pedaço de cartolina e os grandes números parecem pular e dançar com ela; sete números: um para cada dia desde que tudo começou. Eu sei como usar a cartolina... É útil. Eu posso também ser útil. Eu não estou jogada e abandonada, eu posso facilitar as coisas. Eu quero ser útil para o bem de alguém. Ou para o meu bem. Brinca com os números, deita-os no colo, enquanto as imagens eróticas de sua imaginação vão sendo substituídas por as de um passado remoto, mas agora voltando com a arrogância de saberem ter calado fundo: é religião atormentando sonhos sensuais, decompostos em pecados hediondos; é casamento abalizado por resolução e fuga; é mãe admoestando-a por pecadilhos, transfigurados em passaporte para o inferno; é o tempo perdido marcando seu corpo como tatuagem. Anamaria cercada daqueles fantasmas, vai até a janela. Sem abri-la, tira toda a roupa e nua acaricia os números do telefone, um a um estampados no cartaz.
A janela do vizinho espera a pouco mais de dez metros. Anamaria sem lágrimas vai rasgando lentamente o cartaz, número a número no quarto vazio. Eu preciso ser cuidada, como todas as coisas, eu preciso que tomem conta de mim? Derramando-se no chão, se aconchega nos restos de números que se colam no corpo suado e febril.
Você vai enlouquecer? Pelo amor de Deus, pare de ser tão dramática. Não tem mais idade para alguém vir e levar você embora. Se é que você quer ir embora.
À maneira de epílogo:
Marido voltando de negócios inadiáveis dias depois‚ com a pressa cansada de sempre, não encontra Anamaria em nenhum aposento. Nem bilhete, nem pista. Horas depois de imaginá-la voltando com diversas justificativas e percebendo que a demora está fora da lógica de seus devaneios, atreve-se a imaginar o impensado. É nas gavetas do guarda-roupa que inicia a pesquisa; nada em particular que lhe chame a atenção. Na ansiedade crescente, não percebe a janela entreaberta, e sai do quarto sem ter visto Anamaria, da janela vizinha à sua, situada a não mais de dez metros de distância, expondo por inteiro um amplo sorriso e seu corpo nu.
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