Miguel Angel (in memoriam)
Rodrigo abre o tambor de seu enferrujado Lafoucheux, e descobre ter usado a última bala. Enfastiado, joga longe a arma inútil.
Com as estrelas, a noite traz a lua que pinta de amarelo a quietude da paisagem; o soldado e seu cavalo se achegam a dormitar cada qual de seu jeito. O madrigal dos grilos que se inicia sugere um tributo a ambos e à paz de todos os mortos.
A luz da alvorada acorda os pássaros e seus trinos rebotam no cenário melancólico. Os abutres, em vôo planado pairam em baixa altitude, farejando o espaço. Sabem o que se passou ontem e a fome os incita.
Rodrigo faz menção de montar, mas resolve tornar ao casebre, onde encontra o ancião morto como o deixara, estendido no chão; o sangue, esvaído de seu mirrado peito, descolore numa poça de água. No tempo em que se pergunta se é um dever enterrá-lo, lá fora alguns urubus mais atrevidos, pousam perto e, encurvados de sofreguidão, contemplam o cenário da inesperada jazida. Rodrigo observa a lúgubre padiola a um canto e a história do velho ressurge na memória com a mesma violência usada por uma das aves que, repentinamente, invade o recinto. O negro pássaro pousa sobre o corpo morto, famélico, fareja-o e as três garras dianteiras e as duas traseiras se cravam nele; mira Rodrigo, desafiador, como a proferir: “ele é meu!” Num repente, sujeitos a um comando imensurável, uma a uma das aves transvoam o espaço rosnando e, tremulando as asas, entram no exíguo ambiente; em poucos segundos, o cadáver submerge no negrume das asas e Rodrigo é impelido a sair. O alazão parecia o aguardar impaciente e, ao vê-lo saindo expulso do casebre, bate com uma das patas no chão. Rodrigo concorda que já é a hora e monta no árdego animal que, dispensando comando, conduze-o troteador, de volta à estrada.
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Do romance "Sobre Moscas e Aranhas de Guerra"
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