Conto de Gustavo do Carmo
Eram amigos inseparáveis quando
crianças e adolescentes. Mas tinham personalidades diferentes. Geraldo era
tímido, caseiro e dependente dos pais. Ezequiel era mais esperto e
independente.
Moravam no mesmo prédio no
subúrbio da cidade. Conheceram-se quando Geraldo tinha seis anos e Ezequiel
quatro. O pai de Geraldo, gerente regional de uma empresa de ônibus, era dono
do apartamento enquanto Ezequiel morava de aluguel com os pais e três tios,
irmãos mais novos de sua mãe.
Brincavam muito. Ficavam um dia
inteiro na casa do outro. Geraldo gostava de ver a moto Honda CG400 do pai de
Ezequiel, que era programador de informática. Foi na casa deste que Geraldo
mexeu num computador pela primeira vez. E brincavam nos jogos que demoravam
muito para carregar na fita. Caíam na gargalhada quando Ezequiel mudava, no
código-fonte, a configuração de um programa de atividades educativas para o
sistema só rodar besteiras. Já Ezequiel
gostava de viajar com a família de Geraldo. E era muito querido pelos primos do
amigo.
No entanto, ambos precisavam de
autorização dos pais e da irmã mais velha, no caso de Geraldo. Este, aliás, acompanhou
o nascimento do irmão mais novo de Ezequiel. Quando o menino Luciano cresceu,
passou a implicar com ele. Quando amadureceu, pensou muito em se desculpar,
querendo dizer que o problema era por ele ser um bebê, que Geraldo odiava. Mas
não teve a oportunidade de pedir perdão.
Os dois também brigavam muito.
Geraldo, se autoreconheceria depois, era muito ciumento e invejoso. Incomodava-se
quando Ezequiel dava mais atenção aos primos moradores da Barra da Tijuca e um
vizinho antipático que morava em um sobrado próximo ao prédio ou quando ganhava
um brinquedo ou material escolar melhor que o dele. E também não gostava de
emprestar suas coisas para ele. Mesmo quando Ezequiel foi internado após sofrer
um acidente. Mas faziam as pazes com
cartinhas jurando amizade eterna.
Geraldo também era muito sincero.
Dizia na cara de Ezequiel que não gostava dos primos dele. Chegou a acusar um
deles de ter roubado um bonequinho do Comandos em Ação. Injustamente. O
verdadeiro culpado era o tio de Ezequiel, apenas cinco anos mais velho do que o
sobrinho e que tinha má índole. Foi até expulso de casa pelo cunhado. E do pai
de Ezequiel, Geraldo confessava para o amigo que tinha medo, pois já
testemunhou algumas broncas violentas que o amigo levava e tinha medo de sobrar
para ele. Com o tempo, Geraldo entendeu que o pai de Ezequiel era apenas um
homem reservado e que queria educar o filho.
A amizade eterna ficou ameaçada.
Geraldo mal tinha entrado na adolescência quando Ezequiel, aos onze anos,
anunciou que iria se mudar com a família para Juiz de Fora. Seu pai tinha sido
transferido no trabalho (na verdade pediu transferência para fugir do Rio) e
iria morar em um condomínio com piscina e Geraldo se mordia de inveja.
A amizade eterna se transformou em aparições. Ezequiel
começou a visitar Geraldo, esporadicamente, no Rio. A primeira no ano seguinte
à mudança. Ele não deixava de contar as suas vantagens e realizações, motivo
pelo qual o amigo tímido ficava tão incomodado. Já adolescente e mais maduro,
guardava a sua inveja para si.
Ezequiel voltaria ao Rio uma vez
por ano. Em uma dessas passagens visitou Geraldo somente para anunciar que iria
a uma reunião só com amigos que conheceu na internet, ainda nascente na época.
Geraldo se sentiu excluído.
No ano seguinte, Ezequiel ligou
para se hospedar em sua casa. Sem intenção de recusar a visita do amigo
viajante, Geraldo disse que todo em casa estava gripado. E estava mesmo. Obviamente,
Ezequiel se sentiu rejeitado e não procurou mais.
Cinco anos depois, já dependente
da internet, Geraldo conseguiu, não se lembra como, localizar o e-mail de
Ezequiel e lhe mandou uma mensagem esclarecedora, se culpando por não ser um bom
amigo. Fez um verdadeiro drama, na verdade. Ezequiel respondeu, perdoou os
erros do amigo, disse que se formou em informática, que trabalhou numa fábrica
de automóveis, mas... se afastaram de novo.
Mais três anos depois, Geraldo
voltou a localizar Ezequiel em uma rede social, já extinta. Se adicionaram num
aplicativo de bate-papo e passaram a conversar todas as noites. Ezequiel contou
que sua mãe sofreu um derrame e ficou semi-paralisada. E ainda reclamou do
irmão que já tinha se tornado adulto, mas não queria nada na vida.
Um dia, Ezequiel anunciou que
estava se mudando para São Paulo, a convite de um amigo, para abrir uma empresa
de telemarketing. Meses depois, Geraldo disse que viajaria a capital paulista para
assinar o contrato de publicação do seu primeiro livro por uma editora de lá.
Marcaram de se encontrar.
Acompanhado do seu primo, que o
levou de carro para São Paulo, Geraldo foi visitar o escritório da
empresa de
telemarketing do amigo de infância em um prédio comercial da cidade. Geraldo e
o primo acharam estranho verem a sala com poucos funcionários e sem telefones
tocando.
Os três foram de metrô (lotado),
do prédio, na Avenida Paulista, até a sede da editora, que ficava no bairro
República. Ezequiel até subiu, entrou na sala com Geraldo e participou da
reunião. Voltaram de metrô para a Paulista e se despediram na porta do edifício
onde ficava o escritório de Ezequiel.
Geraldo voltou ao Rio com o
primo. Ele e Ezequiel nunca mais se viram pessoalmente. Apenas se falavam pela
internet. Em maio do ano seguinte, Geraldo voltou a perder contato com o amigo.
A última notícia que teve de Ezequiel foi que ele tinha comprado uma moto e que
viajaria pelo país. Ele sequer apareceu no lançamento do seu livro.
Geraldo ficou chateado. Não procurou mais.
Estava mais preocupado com o seu livro e o sonho de iniciar carreira de
escritor. Mas um dia resolveu procurar Ezequiel em uma nova rede social da
moda.
Chegou a localizar um homem muito
parecido com a última aparência do seu amigo de infância. Mas era outra pessoa
com o mesmo nome. Ou era Ezequiel mesmo que fingiu não conhecê-lo para evitar
contato.
Nove anos depois do último
contato pela internet, Geraldo foi procurado por Ezequiel. Pessoalmente. Já
estava desiludido e aborrecido com tantas idas e vindas do amigo nômade. Também estava magoado com várias outras amizades
perdidas na internet e na faculdade. Já não tinha nenhum amigo para conversar.
Estava em Cabo Frio, indo buscar
a mãe na fisioterapia, quando foi abordado por Ezequiel. Gostaria de dizer tudo
o que aconteceu com a sua família. Dizer que perdeu quase todos os seus tios
paternos e uma materna. Dizer que sua avó morreu. Que publicou outro livro e
agora é blogueiro. Que viajou para a Europa. Que sua irmã se casou... tinha
muito assunto para colocar em dia. Geraldo acabou não dizendo nada. Apenas
esbravejou, meio de brincadeira, meio seriamente:
— Nem vem, Ezequiel! Você vive
sumindo e reaparecendo. Parece fantasma. Desta vez não vou dar confiança para
você.
— Não precisa. Respondeu
Ezequiel. Virei fantasma mesmo. Morri num acidente de moto na estrada há oito
anos.
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