Era
outono e as folhas se arrastavam pelo asfalto. Tarde da noite, mas tudo ainda
estava com uma cor acinzentada. O casal e suas duas filhas saíram do carro
parado no meio da estrada e começaram a conversar.
- O que
vamos fazer William? O carro morreu mesmo?
- É o
que parece. Precisamos de um telefone. O celular não tem sinal – ele falou
olhando em volta.
- Ali
pai. – a filha mais velha, Kamila, apontou para uma tênue luz vinda de uma casa
a alguns metros dali.
- Vamos
lá. – disse o pai abrindo o porta-malas e retirando algumas coisas.
Eles se
aproximaram da casa que não tinha muros. A única casa naquele deserto. Uma casa
antiga, mas que se erguia imponente. A luz que provinha dos cômodos da casa
parecia dançar.
- Parece
que não tem luz, querido. – disse Alicia, a mulher. – E não está muito tarde
para incomodarmos?
- Deve
ter algum telefone pelo menos. E você não quer ficar dentro do carro a noite
toda né?
Elisa, a
filha mais nova coçava os olhos com sono.
Eles se
aproximaram da porta e William bateu três vezes. Passos foram ouvidos se
aproximando até que a porta abriu com um rangido. Uma senhora pequena e de
cabelos bastante brancos apareceu e ajeitou seus óculos para ver melhor os
visitantes.
- Boa
noite – ela disse com um sorriso.
- Boa
noite senhora...
- Edith.
-
...senhora Edith. Nosso carro quebrou e precisamos fazer uma ligação.
- Ah querido, eu não tenho telefone. – ela falou sorrindo e acariciando o queixo da pequena Elisa, que retribuiu o sorriso. – O único telefone mais próximo fica a dois quilômetros. Porque não passam a noite aqui e esperam amanhecer? O guarda Daniel passa aqui toda manhã para tomar café comigo. Ele pode lhe levar até o telefone.
- Ah querido, eu não tenho telefone. – ela falou sorrindo e acariciando o queixo da pequena Elisa, que retribuiu o sorriso. – O único telefone mais próximo fica a dois quilômetros. Porque não passam a noite aqui e esperam amanhecer? O guarda Daniel passa aqui toda manhã para tomar café comigo. Ele pode lhe levar até o telefone.
- Mas
nós não queremos incomodar...- começou Alicia.
- Não é
incômodo nenhum, querida. Incômodo seria deixar essas duas princesas caminhando
por aí a essa hora da noite para um telefonema. Venham, podem entrar.
Ela
abriu a porta e todos começaram a caminhar por um pequeno corredor. As
apresentações foram feitas. Todos já se sentiam mais a vontade. E quando chegaram
na sala todos sussurraram em uníssono um “Nossa!”
A sala
na verdade era um ateliê. Estantes se erguiam repletas de bonecas de todos os
tipos, cores e tamanhos. E não só nas prateleiras. Em cadeiras e sofás. A
senhora ainda tinha nas mãos agulha e linha. Todos olhavam maravilhados para
todas aquelas obras saídas dos dedos dedicados daquela pequena senhora.
- Oh
esse é meu ateliê. – disse Edith com olhos brilhantes. – Vocês gostam de
bonecas meninas?
A mais
velha balançou a cabeça num gesto de dúvida, mas Elisa abriu um sorriso de
orelha a orelha. Sua alegria aumentou ainda mais quando recebeu das mãos da
senhora uma boneca. Ela correu para os pais, sacudindo-a na frente deles.
- Olha
papai! Olha mamãe! Parece comigo! Parece oh!
Alicia
pegou a boneca e se surpreendeu com a semelhança dela com a filha. A maioria
das bonecas eram rústicas, com olhos de botões, sem dedos, sem boca. Mas essa
estava perfeita. O vestido era idêntico. Ela estremeceu quando olhou para os
olhos da boneca. Parecia até estar viva.
- É da
senhora Edith. Devolva a ela Elisa.
- Pode
deixar com ela. É um presente. – sorriu a senhora.
- A
senhora mora sozinha aqui? – perguntou William.
– Desde que meu marido faleceu.
- Oh eu
sinto muito. – disse Alicia.
- O
tempo passa para todo mundo não é mesmo querida?
A
senhora aproximou-se de uma boneca em tamanho real, praticamente do tamanho de
Alicia, dentro de uma estante com porta de vidro. Parecia estar viva.
- Essa
aqui – disse a velha com um suspiro. – é minha preferida.
Todos se
maravilharam com a visão. Os olhos brilharam. O vestido de noiva caia
perfeitamente bem na boneca, mas podia-se ver que fora feito para uma mulher de
verdade.
- Eu a
chamo de Aline.
- A
senhora as vende? – perguntou Alicia.
- Não,
não. São todas minhas. Eu não teria coragem de vendê-las, assim como você não
teria coragem de vender suas filhas, não é mesmo?
Alicia
olhou para William com uma ruga na testa. Ele sorriu e, sem que a senhora
visse, fez um gesto dizendo que ela devia ser louca.
- Bem,
vocês devem estar cansados...
Ela se
aproximou da escada que dava para o andar de cima e falou para William:
- A
direita tem um quarto com uma cama de casal. Em frente a ele tem outro com uma
cama de solteiro que pode usar para as crianças. Se preferir colocar a cama de
solteiro no quarto em que vocês dois vão dormir fique à vontade. Assim as
crianças não se sentirão sós. Em ambos os quartos tem banheiro.
- Ah
muito obrigado, dona Edith. – disse William subindo as escadas com as malas. – Nem
sei como agradecer. Tenha uma boa noite.
- Podem
ficar tranquilos que eu os chamo quando Daniel aparecer pela manhã.
Todos
deram boa noite para a velha senhora e subiram as escadas. Ela sentou-se na
poltrona e continuou a costurar. Um sorriso ainda riscava seu rosto
envelhecido. Suspirou fundo e olhou para o lugar onde a boneca que dera para
Elisa estava. Do lado do lugar vazio estavam mais duas bonecas e um boneco
vestidos da mesma forma que seus convidados estavam. Seus olhos de tão
realistas pareciam olhar para a velha senhora com curiosidade.
William
e Alicia colocaram a cama de solteiro no quarto em que iam dormir. Kamila
queixou-se.
- Eu não
quero dormir com a Elisa. Ela fica me chutando, mãe.
- Durma
com seu pai então. Eu vou dormir com ela.
As camas
eram confortáveis. Tudo só parecia estar um pouco empoeirado. Ao sacudir os
lençóis, a cama pareceu mais apropriada para dormir. O silêncio fúnebre os
incomodava um pouco. Kamila colocou seus fones de ouvido e deitou-se do lado do
pai. Alicia abraçou sua pequena filha e ficou um tempo olhando a chama da vela
tremular. O sono foi chegando aos poucos.
Sonhos
estranhos perturbaram o sono de Alicia. Ouvia vozes e gritos. Parecia a voz de
suas filhas pedindo por socorro. Elas estavam encolhidas num canto, chorando e
gritando. William não estava por perto. A imagem das meninas desapareceu. Ela
continuava ouvindo os gritos e choros. Então tudo ficou em silêncio. Pouco a
pouco uma voz foi sendo ouvida; a voz de uma menina cantando uma música que ela
não conseguia entender. Era a voz de Elisa. A menina se arrastava no chão, como
não podendo andar, cantando a música e olhando para a mãe. Aproximava-se cada
vez mais e o som da música aumentava. Quando a menina já estava cara a cara com
a mãe, a música cessou. Um frio lhe passou pela espinha ao ver sua filha a
encarando em silêncio. Então sangue começou a escorrer dos olhos da criança e o
som de porcelana quebrada foi ouvido. O rosto da menina havia rachado.
Alicia
acordou ofegante. O coração acelerado. Pôs uma mão no busto e a outra procurou
Elisa na cama, mas não encontrou. Sentou-se e pensou que ela poderia ter ido ao
banheiro. Kamila também não estava na cama com o pai, que parecia dormir como
uma pedra. Levantou-se, pegou a vela e procurou as filhas. Não havia ninguém no
banheiro. Correu para chamar o marido, mas quanto mais ela o cutucava mais ele
parecia dormir. Puxou ele para perto de si, colocou a chama da vela diante de
seu rosto e abafou um grito com a mão. William tinha a garganta cortada, o
peito banhado em sangue e sobre as pálpebras estavam costurados dois botões.
Alicia
se afastou perturbada. A mão continuava a abafar os gritos em sua boca, mas as
lágrimas clamavam escorrendo por seu rosto. Descalça, ela procurou algo para se
proteger. Encontrou uma barra de ferro meio solta na cama em que estava
dormindo. Fez força até que a barra cedeu. Com vela e a barra em mãos, ela deu
uma última olhada em seu marido. A imagem era terrível. Tentou afastar da mente
o que poderia ter acontecido com as filhas. Soluçou bastante e enxugou as
lágrimas.
Abriu a
porta do quarto e iluminou o caminho. Então começou a ouvir uma música vinda do
ateliê. Qual não foi sua surpresa ao perceber que era a mesma música que ouvira
no sonho, só que agora ela a entendia perfeitamente. A senhora Edith é quem cantava.
“Volta e
meia vamos lá,
A boneca
quer brincar.
Costurando
e cortando,
Todo
mundo está brincando.”
A mulher
cantava pausadamente, uma voz arrastada e mórbida. Alicia desceu as escadas
lentamente e a melodia foi ficando cada vez mais alta. Outra vela tremia perto
da poltrona onde a dona da casa estava sentada, costurando alguma coisa. Ela
pareceu não ter percebido a presença de Alicia se aproximando. Parou no
primeiro degrau e gelou. Quase desmaiou com a visão a sua frente.
O corpo
de Kamila estava ali no chão, próximo a escada, mas não era todo o corpo de
Kamila. Botões também foram costurados sobre suas pálpebras, mas seus membros...
Os braços e pernas haviam sido arrancados e estavam ali do lado, em poças de
sangue. No lugar deles foram costurados braços e pernas de boneca de pano, com
mãos e pés de porcelana. Era os membros da boneca Aline, que não estava mais
dentro da estante, mas jazia sentada e mutilada do lado da poltrona.
- O que...
Que a senhora fez com minha filha?!
- Ela
não ficou linda, Alicia?
A mãe
prostrou-se diante da filha sem vida, banhando-a com suas lágrimas. Gritos de
desespero ecoavam na casa antiga.
- Onde
está Elisa? O que você fez com ela?!
O
coração de Alicia quase saiu pela boca quando a velha levantou-se e mostrou o
corpo de Elisa em seus braços, os botões costurados sobre as pálpebras, a pele
pálida e já sem vida. A mãe correu enfurecida para cima da velha, que recuou
rapidamente deixando o corpo da criança cair no chão de madeira. Ela ficou
atrás da poltrona enquanto a mulher abraçava o corpo morto de sua filha entre
gritos e choro constantes.
- Não!
Não! Como pôde fazer isso?! Meu marido! Minhas filhas!
Toda a
bizarrice que ela presenciara a perturbava a ponto de querer rasgar aquela
senhora no meio. Levantou-se de um salto e foi para cima da mulher, mas ela já
não estava mais lá. Olhou para todos os lados. A mulher parecia ter evaporado.
Subiu as escadas e foi até o quarto dela, que ficava no fundo do corredor, mesmo
sabendo que a mulher não teria tido tempo suficiente para subir as escadas tão rápido.
A porta estava trancada. Ela forçou com o ombro várias vezes e a porta cedeu.
Um cheiro forte de poeira lhe entrou nas narinas. Iluminou o quarto com a vela
e metade das trevas foram expulsas. Aquilo parecia não ter sido aberto durante
séculos. Uma camada grossa de poeira cobria tudo. As janelas estavam fechadas
com um pano preto que ela arrancou para que ao menos a luz da lua entrasse.
Não
havia ninguém ali. Tudo estava uma bagunça completa. Ergueu a chama da vela
para ver o teto e recuou para trás assustada. Havia uma corda amarrada a uma
das vigas. Uma corda preparada para um suicídio. Quando foi recuando bateu numa
penteadeira. Virou-se e viu a si mesma no espelho. Parecia uma louca. Os
cabelos desgrenhados, o rosto oleoso, úmido pelas lágrimas. Acima da
penteadeira havia algumas fotos empoeiradas. Ela soprou e passou a mão para ver
direito. Numa das fotos a senhora Edith estava de pé com outras mulheres, cada
uma com uma boneca no colo. Todas sorriam. Mas a faixa acima delas foi o que
chamou a atenção de Alicia. Ela colocou a mão na boca. A faixa dizia: “Concurso
de bonecas de 1899”. Pôs a mão na cabeça, não acreditando. A mulher na foto
estava há pouco tempo falando com ela. Como isso era possível? Quem poderia ter
então...
A
revelação lhe caiu na cabeça como uma bigorna. Ela olhou para suas mãos e viu o
líquido vermelho e viscoso escorrer por entre seus dedos. Olhou para o espelho
e viu a boca manchada de sangue, o vestido de noiva que antes estava em Aline e
agora estava tingido de vermelho com o sangue de sua própria família. As cenas
passaram diante de seus olhos como em um filme. O momento em que colocou o
vestido de noiva e subiu para o quarto cortando o pescoço do marido ao som dos
gritos de suas filhas que pediam que parasse. A corrida atrás delas para que
mutilasse os membros de uma e costurasse no lugar os membros de pano da boneca.
O olhar da pequena antes de ter botões costurados em seus olhos. A visão das
bonecas vestidas igualmente a eles na estante. A música. A música que saia de
seus lábios como uma cantiga de ninar. A agulha ainda estava em sua mão. Ela
não queria mais brincar.
***
Uma
semana depois os corpos foram encontrados nos mesmos lugares que haviam ficado.
O odor de carne podre já impregnara todos os cômodos da casa. No quarto da senhora
Edith o corpo de Alicia foi encontrado pendurado por uma corda, vestida de
noiva, mas a pele de seu rosto fora arrancado de forma precisa. Os peritos
confirmaram suicídio. A boneca em tamanho real chamada Aline estava de volta na
estante com porta de vidro. Os membros de Kamila estavam costurados na boneca e
o rosto de Alicia fora colocado na cabeça dela. Os corpos foram levados e a
casa fechada.
Algumas
pessoas que passam em frente àquela casa a noite dizem ouvir três vozes de
mulheres cantando uma melodia.
“Volta e
meia vamos lá,
A boneca
quer brincar.
Costurando
e cortando,
Todo
mundo está brincando.”
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