Não se viam há anos. Uns
dez, mais ou menos. Eram colegas na faculdade de jornalismo. Se formaram
juntos. Vitorio se tornou bem mais sucedido. Afastou-se de Randolfo por causa
do pessimismo do colega, mas se desculpava com o argumento de que o trabalho em
um famoso jornal esportivo estava sugando o seu tempo. Na verdade, Vitorio
seguia recomendações de uma ex-namorada e quatro outros ex-colegas da turma
para se afastar de pessoas negativas como Randolfo.
Randolfo - que nunca exerceu a profissão, nem conseguiu qualquer
emprego - publicou um livro. Pago, porque era tão ruim e infantil que nenhuma
editora se interessou. Convidou o ex-colega por um ingênuo desencargo de
consciência por ter lhe usado como inspiração em um dos personagens da história
do romance. E Vitorio apareceu. Conversaram durante a metade do lançamento e trocaram
endereços de contato pela internet. O amigo jornalista esportivo prometeu
procurar, mas não cumpriu.
Mesmo assim, Randolfo chamava
para bater papo numa rede social. Vitorio até deu conversa, mas foi frio e
monossilábico. Randolfo não percebeu e não ficou chateado. Randolfo convidou
Vitorio para o lançamento do seu segundo livro, desta vez de contos. Desta vez
Vitorio não apareceu.
Randolfo finalmente
entendeu que Vitorio não queria mais conversa quando este mais uma vez foi seco
na internet. Jurou nunca mais procurar o agora ex-amigo. Mesmo assim, Vitorio
ainda lhe mandou um e-mail no aniversário e pediu para confirmar o telefone.
Randolfo confirmou, mas ironizou a frieza do ex-colega famoso dizendo que os
contatos dele poderiam ser mais frequentes. Vitorio nunca mais o procurou.
Juraram nunca mais se reencontrarem.
O juramento foi quebrado,
involuntariamente, em um banco na Zona Sul. Randolfo estava fazendo pagamentos
para o seu pai, que sempre o cobrava para tomar um rumo na vida, mas sempre
mandava o filho pagar contas no banco e pedia ajuda. Embora morasse na Zona
Norte, fazia questão de atravessar a região para espairecer a cabeça. Vitorio
tinha ido ao banco para contratar um seguro de vida.
Os ex-colegas de faculdade,
antes inseparáveis, ainda não tinham percebido a presença do outro. Randolfo
estava em pé, na fila do caixa, e Vitorio sentado, conversando com um gerente, tomando
um capuccino, no fundo da agência. A
rotina deles, dos outros clientes e bancários foi interrompida quando quatro
homens anunciaram que estavam assaltando a agência. Tinham passado facilmente
pela porta giratória.
Os bandidos mandaram todos
os presentes no banco a se deitarem no chão e ficarem quietos, sob ameaças de
morte, enquanto invadiram o cofre e roubaram o que tinham que roubar. Apesar das
ameaças, não fizeram nada com ninguém. Saíram pela porta da frente e o roubo se
deu na maior tranquilidade.
Livres, os clientes
ficaram traumatizados, apesar de não sofrerem nenhuma violência. Crianças e
mulheres choraram. Idosos e obesos passavam mal com pressão alta, entre eles
Randolfo, que não era obeso, mas estava bem fora de forma. Os mais fortes tranquilizavam
dizendo que tudo já passou. Vitorio fazia parte dos que ajudavam. Assim que viu
o ex-colega de faculdade passando mal, correu para acudi-lo.
— Randolfo? Você está bem,
rapaz?
Randolfo não respondeu.
Fechou a cara e abaixou a cabeça.
— Ainda está magoado comigo, né?
Novamente o amigo imaturo
da turma ficou em silêncio. Mas finalmente falou.
— Não. Não estou bem, não.
Estou passando mal. Suando, com dor de cabeça e puto da vida.
— Calma, amigo! Calma! Eu
sei o quanto é humilhante ser assaltado e não poder fazer nada. Vamos ao médico. Na volta, se estiver tudo
bem, a gente dá um passeio e conversa. Consegue se levantar?
Randolfo tomou impulso
para sair da cadeira de uma das mesas do gerente para onde foi levado depois do
assalto e se levantou.
— Meu braço está dormente.
— Então espera aí. Senta
de novo que eu vou chamar um médico.
Gritou no banco,
perguntando por um médico. Uma moça mulata se apresentou:
— Eu sou enfermeira,
serve?
— Claro. Tem aparelho de pressão?
– Tenho sim.
— Então mede a pressão do meu
amigo, por favor. Ele está se queixando de dor de cabeça e dormência no braço.
A enfermeira tirou um
aparelho manual de pressão, daquele de ponteiro e bombinha. Colocou a tira de
náilon e velcro no braço de Randolfo, acomodou o estetoscópio por baixo da
pulseira e a outra parte no ouvido. Apertou repetidamente a bomba de
borracha. Dez segundos depois, repetiu o
processo. Mais dez segundos, tirou o aparelho do ouvido e do braço do paciente
e confirmou:
— A pressão realmente está
muito alta. Tem que ir ao médico.
— Muito obrigado, viu?
Agradeceu Vitorio.
Randolfo apenas murmurou
um agradecimento, de tão indisposto que estava. Vitorio ajudou o amigo a se
levantar. Randolfo o afastou com as mãos, recusando o apoio, antes de se
encaminhar para a saída do banco.
— Deixa que eu me levanto
sozinho! Já estou melhorando!
— Mas você tem que ir ao médico! Eu vou com
você.
— Não precisa! Estou bem!
— Não está não! Você está
cambaleando! Insistiu Vitorio.
De fato, Randolfo andava
com dificuldades e foi seguido por Vitorio. O colega complexado saiu do banco e
caminhou devagar, em direção a um hospital particular na Figueiredo de
Magalhães. Ligou para a sua mãe. Omitiu o assalto e o mal-estar pela pressão
alta. Mentiu dizendo que ia almoçar com um amigo que encontrou na rua.
Vitorio seguiu o amigo até
o hospital, sem ser visto por ele. Randolfo
teve força para dar entrada na emergência, entregar os documentos à
recepcionista fria e passar o cartão do plano de saúde. Havia muita gente na
espera. Ele passou mal de novo e quase desmaiou. Vitorio, que chegou ao
hospital a tempo, pediu para alguns enfermeiros o passarem na frente.
Randolfo ainda estava com
a pressão muito alta. Aumentou um pouco desde que foi medido no banco pela
enfermeira, que trabalhava exatamente neste hospital e o reencontrou na sala de
observação.
— Estou vendo que ele não
melhorou ainda. A pressão aumentou?
— Aumentou. Ele veio
direto do banco pra cá. Respondeu Vitorio.
— Por que não pegou um
táxi?
— Não. O banco era perto
daqui. Dava pra andar a pé. Respondeu Randolfo.
— Mas você estava passando
mal, meu querido. Acabou de enfrentar um assalto. Você precisa de repouso. Se
não fosse o seu amigo você teria tido um enfarte. Daqui a pouco já vem a
medicação. Eu sou do setor de internação. Preciso voltar ao trabalho. Qualquer
coisa, o meu nome é Neusa. Com licença.
— Tá ok. Obrigado.
Agradeceu Randolfo.
— Obrigado também.
Agradeceu Vitorio.
A enfermeira que estava
com eles no banco deixou a sala. Sozinhos, Vitorio puxou assunto com o
Randolfo, que estava com a cara amarrada.
— Randolfo, olha só. Eu
percebi que você ainda está magoado comigo.
— Agora que você percebeu?
Se a gente não tivesse sido assaltado lá no banco você não teria percebido, né?
Aliás, nem teria me procurado. Sequer se importado comigo, como nunca se
importou desde que saímos da faculdade!
— Eu fui ao lançamento do
seu livro. Conversamos bastante lá.
— Mas depois me tratou com
frieza pelo Messenger.
— Eu estava cansado. Cheio
de trabalho. Ainda tenho que sair com a minha esposa.
— Com a sua esposa e com
os nossos colegas, né?
— Quem te disse que eu
saio com os nossos colegas? Eu nem tenho mais contato com eles.
— Ah! Deixa de ser
mentiroso! Eu já vi vocês conversando várias vezes no Twitter com todos. Segue
todo mundo. Só eu que não me segue.
— Eu te adicionei no
Facebook. Mas você me excluiu.
— Te excluí, sim! Porque
você nunca conversava comigo. Nunca compartilhava as minhas bobagens. Mas
compartilhava a dos seus amigos. Cansei de ficar sobrando na conversa da
panelinha e te tirei fora.
Vitorio revirou os olhos e
questionou:
— E você me procura?
Foi o suficiente para
Randolfo se alterar, se levantar da cama e gritar:
— Ah! Você está de
sacanagem, né? Tu é muito hipócrita! Eu te procuro desde que saímos da
faculdade. E tudo o que você fez foi me ignorar. Me tratar com frieza. Depois
da faculdade, quando eu te ligava, você ficava sempre querendo me despachar.
Estava sempre ocupado. Pelo Messenger era tão frio que um outro amigo meu
percebeu quando eu contei pra ele. Eu me sentia um idiota inconveniente quando
te procurava.
A esta altura, uma idosa
com a sua filha também estavam na sala. A enfermeira que as atendeu chegou a
soltar um chiado para pedir silêncio. Randolfo e Vitorio se desculparam. A moça
que acompanhava a mãe pediu um pouco ríspida:
— Olha! Por favor! Vocês
podem discutir a relação homoafetiva de vocês em outro lugar? Isso aqui é um
hospital e a minha mãe está passando mal!
Vitorio se explicou com um
riso constrangido.
— Perdão pelo incômodo,
minha senhora!
— E nós não somos
homossexuais! Afirmou Randolfo, de cara amarrada.
— Desculpa. Mas, por
favor, façam silêncio ou teremos que chamar a enfermeira.
Os dois amigos ficaram em
um silêncio constrangedor enquanto esperavam a médica liberá-los. Mas a pressão
de Randolfo ainda não abaixou por causa da discussão. Ficou mais um tempo em
observação. Vitorio pediu licença, saiu da sala e foi esperar a alta do amigo na recepção. Ligou para a esposa e avisou que ia demorar. Não tinha pressa. Estava de férias no trabalho.
Duas horas depois,
Randolfo foi liberado. Do hall do hospital, Vitorio o viu sair e o abordou.
— E aí? Está melhor?
— Um pouco. Respondeu com
frieza.
— Vamos comer alguma coisa
lá na cantina.
— Eu preciso voltar pra
casa. Minha mãe vai ficar preocupada.
— Você não já ligou pra
ela?
— Liguei. Mas já estou
demorando mais do que eu esperava.
— Então preciso te falar
uma coisa antes de você ir. Exige Vitorio, praticamente puxando Randolfo pelo
braço para a cantina.
— Ah. Não me venha com
essa. Teve anos pra me procurar e dizer o que precisava conversar. Só está
preocupado assim porque me encontrou por acaso num assalto e me viu passando
mal. Ficou até ofendido com uma ironia que eu fiz com a sua má vontade de me
procurar.
— Não fiquei ofendido.
Fiquei sem graça. Envergonhado comigo mesmo. Engoli em seco e fiquei sem
resposta. Por isso que eu não te procurei mais. Respondeu Vitorio, já
impaciente com a má vontade do amigo. — Mas deixa eu te falar! Desculpa se eu
não te procurei esse tempo todo. Não vou mais dizer o motivo porque eu sei que
não vai acreditar mais. Mas o que você quer para a gente voltar a ser amigo?
— Eu quero que me procure.
E sempre. Não gosto de procurar ninguém. Estou sempre atrapalhando. Eu não tomo
a iniciativa de ligar nem para a minha irmã. Se você me procurar com frequência
eu até te ligo de vez em quando. Mas eu preciso me sentir conveniente e
confiante.
— Tudo bem. Eu procuro.
— E outra coisa?
— Fala.
— Quero que convença
alguma editora a reeditar o meu segundo livro de contos. Sei que você também já
publicou um livro. Pode muito bem fazer lobby lá. E bem que poderia indicar os
meus contos para algum produtor de cinema, TV e teatro. Conhece muita gente do
meio. Inclusive a Mercedes, que virou atriz e se casou com o filho daquele cantor... o Raul de
Mello.
— Vou ver o que posso
fazer. Mas você não quer mais trabalhar?
— Não. Desisti. Já tenho
preguiça de enfrentar rotina de trabalho, colegas falsos e patrão chato. Me
acostumei com a liberdade de fazer o que quiser. Mas se pintar alguma coisa...
— E as editoras que
publicaram os seus livros?
— A primeira publicação
foi paga. Não quero mais gastar dinheiro com editora. Muito menos ser
obrigado a me virar para divulgar o meu livro. O Sofrendo Calado é uma
porcaria. E a segunda editora boicotou o Enfurecidos ao não divulgá-lo e
distribuí-lo.
— Vou tentar, Randolfo.
Vou tentar. Mas saiba que eu gostei muito do Sofrendo Calado.
— Gostou nada. Aquele
livro é muito ruim. Mal revisado. Quando penso nele, morro de vergonha. Se
fosse possível eu até escreveria de novo. Desde que uma editora me encomende e
que eu tenha uma consultoria para jornalismo e legislações trabalhistas. Só
escrevi besteira ali.
O coração de Randolfo
amoleceu quando começou a falar dos seus livros. Os dois amigos da faculdade pareciam
ter feito as pazes. Terminaram de conversar na praia de Copacabana, já ao fim
da tarde. Vitorio contou sobre como estava a sua família. Randolfo fez o mesmo
e ainda tirou algumas dúvidas que tinha sobre esporte. Riram quando Vitorio
debochou das já conhecidas comparações de aparência malfeitas do amigo. Discutiram
os bastidores do jornalismo, como nos bons tempos da faculdade.
Randolfo se despediu
agradecendo Vitorio por ter cuidado dele depois do assalto e tê-lo acompanhado
no hospital. Voltou aliviado e rindo à toa, achando que resgatou uma amizade,
após ter perdido a de um amigo virtual de Teresópolis. Entrou na internet, já
de madrugada. Vitorio estava offline, como em todas as vezes que ele ligava o
notebook.
Vitorio não cumpriu a sua promessa. Nunca mais procurou o ex-colega
por recomendação de amigos, que achavam Randolfo uma influência negativa com o
seu pessimismo e agressividade. Os dois antes inseparáveis colegas de faculdade
nunca mais se falaram.
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