Por Hemerson Miranda
Ele detestava o
sol. Para ele aquilo não tinha serventia alguma. Trazia apenas calor e
queimaduras a sua pele. Além do clarão que lhe dava dor nos olhos; uma dor
parecida com a que lhe causavam as cores das flores nos jardins onde ele
passava caminhando. Preferia a chuva. Menos quando ela batia na sua janela. E
também não gostava quando pingos caiam na sua cabeça, nem quando formava poças
de água que o faziam molhar os pés. Pensando bem, ele também não gostava da
chuva. Na verdade preferia o tempo
nublado. Sem sol, sem chuva. Apenas aquele tom cinza que preenchia de
melancolia todo o mundo. Ele gostava disso. Bem, pelo menos até agora.
Aquela era uma
manhã cinza, exatamente daquelas que o agradavam. Havia poucas pessoas na rua.
Ele não gostava muito de pessoas. Preferia ficar em casa longe delas, mas seu
médico o aconselhara a caminhar todos os dias. A idade já lhe alcançara. Sete
décadas é tempo suficiente para você enjoar e cansar de tudo. No principio
pensou em caminhar durante a madrugada, mas depois que o vizinho passou a
querer acompanhá-lo no mesmo horário ele desistiu e resolveu caminhar
exatamente na hora em que o vizinho estava no trabalho. Como não tinha escolha
a não ser caminhar onde pessoas também caminhavam, ele, ao ver alguns jovens
usando fones de ouvido enquanto iam para a escola, teve a mesma ideia e comprou
os seus junto com um mp4 usado para ouvir a música que ele mais amava: a
erudita. Na verdade ouvir música não era a única razão para ele usar os fones.
Eles também serviam para não dar atenção para as pessoas na rua falando de suas
vidas medíocres. Fazia sempre uma expressão de alienação para que as pessoas
não o parassem para pedir informações. Noventa por cento das vezes dava certo.
O vento também o
incomodava. Por isso se agasalhava bastante. Levava consigo sempre uma bolsa no
caso de suar e tirar a blusa. Desistira de usar o chapéu panamá, pois uma
ventania sempre o levava. Usava óculos escuros para impedir que poeira entrasse
nos olhos e para não ser olhado nos olhos pelas pessoas. Era costume sair de
casa todo agasalhado e voltar quase nu.
Tinha pavor quando
via um grupo de crianças ou adolescentes na sua direção. Seu corpo tremia todo.
O barulho infernal que faziam conseguia penetrar seus fones e martelar sua
cabeça. Tinha vontade de gritar com eles, mas de que adiantaria? Ele achava que
a geração atual não aprenderia nem com tapas nem com diálogo.
Olhou seus tênis,
organizou seus fones de ouvido e começou a caminhar. A música fazia com que ele
se sentisse nas nuvens. O mundo ao seu redor era completamente esquecido. Por
vezes quase esbarrou em algumas pessoas. A caminhada parecia até se tornar mais
prazerosa ao som da boa música. Um alívio para a dor das cores que, para ele,
eram bastante barulhentas.
Sempre passava em
frente a uma casa cujo portão de ferro era muito bem desenhado, da cor branca,
que lembrava portões de mansões antigas. Aquele ponto para ele era a metade de
sua caminhada. O que mudou naquele dia foi o fato de haver uma pequena bola de
borracha em frente ao portão e duas mãozinhas esticadas querendo pegá-la.
Conforme ele se aproximava do portão via o esforço que as curtas mãos faziam,
sem resultado nenhum, para tentar alcançar a bola. Era uma menininha, cabelos
lisos, longos e bastante negros, emoldurando o rosto de bochechas grandes e
rosadas, adornado por um belo par de olhos verdes. Geralmente numa situação
como essa ele aproveitava os óculos escuros e os fones de ouvido para ignorar a
situação e continuar caminhando, mas por alguma razão que ele não fazia a menor
ideia, ele abaixou-se, pegou a bola e jogou por cima do portão. A criança
pegou-a, sorriu e disse algo que ele não ouviu por causa da música em seus
ouvidos. Ele continuou seu caminho.
No dia seguinte, a
mesma hora, a bola de borracha estava no mesmo lugar e as mesmas pequenas mãos
se esticavam inutilmente. Ele sorriu pelo nariz, retirou um dos fones do
ouvido, pegou a bola e jogou para dentro. A menina pegou, sorriu e disse:
“Obrigada vovô.” Ele seguiu seu caminho. Aquilo poderia tê-lo ofendido, mas a
forma sorridente como foram proferidas aquelas palavras não o deixaram chateado.
Sua caminhada prosseguiu.
A bola longe dos
pequenos dedos estava no mesmo lugar no dia seguinte. O ritual se repetiu. O
sorriso dela naquele dia parecia estar mais vivo. Ele, pela primeira vez
retribuiu o agradecimento com um sorriso também. Ela então sorriu com os olhos
e deu um pequeno pulo. Ele prosseguiu em sua caminhada. Se perguntava se os pais daquela criança não brincavam com ela.
Apesar do sorriso ele imaginou que era uma menina solitária. O que importava?
Não era da sua conta mesmo.
Mas ele resolvera fazer algo
que costumava não fazer nem sob tortura: mudar um hábito. Ele decidiu ir
caminhar meia hora mais cedo. Quando aproximou-se do portão branco ele parou e
ficou observando. A menina estava junto dele tentando olhar para o lado pelo qual
ele viria. O vovô continuou observando. Ela então fez com que a bola passasse
por entre as barras do portão e esperou. Vendo o que ela havia feito ele
começou a se aproximar do portão fazendo barulho com os pés e ela, ciente de
que ele estava chegando, esticou os braços. Ele deu uma pequena risada e pegou
a bola, no que foi agradecido e retribuiu o agradecimento. Sua caminhada
continuou como de costume.
Depois daquele acontecimento
ele perguntava a si mesmo se os dias voltariam a ter suas cores habituais. Se
essas mesmas cores ainda causariam dor nele com seus barulhos ensurdecedores.
Se os dias cinzentos ainda lhe trariam alguma atração. Esses pensamentos, como
todos os outros que ele costumava ter, se desfaziam como castelos de areia
tocados pelas ondas do mar. Não se demorava muito remoendo certos tipos de
esperanças. Não queria se sentir frustrado então se adiantava a decepções.
No dia seguinte o portão
branco estava aberto. A bola não estava lá. Ele franziu a testa curioso e
retirou um dos fones de ouvido. Havia barulho dentro da casa e quando ele se
aproximou a bola rolou de dentro para a rua parando bem no meio. A menina saiu
em seguida, saltitando, em busca de seu brinquedo. Tudo aconteceu rápido e, em
seu ouvido, ao som da Marcha das Valquírias. O caminhão freou, mas era tarde. A
bola havia estourado e o chão foi salpicado por sangue. O motorista saiu
desesperado do veículo. Os pais da criança correram em prantos. Alguns
transeuntes se aproximavam e as cores daquilo tudo começaram a lhe causar
dores. Recolocou o fone no ouvido e prosseguiu sua caminhada, passando ao lado
das pessoas em volta do cadáver. A cor dos dias voltaria a ser preto e branco.
As cinzas se acumulavam. Ele tinha certeza apenas de uma coisa: na manhã seguinte
ele não precisaria se agachar para pegar a bola.
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