Numa dessas viagens de trem que faço freqüentemente, sempre levo comigo um livro, papel e caneta. O livro tem sua utilidade óbvia e papel e caneta servem pra registrar muitas das idéias que tenho durante o percurso e que tento traduzir nos meus escritos. Diferente do que sempre faço, hoje transcrevo uma anotação registrada num dia em que não levava nada comigo, nenhum dos meus objetos. Apenas observei os acontecimentos ao meu redor. Será que conseguirei?
“Ele brigava incansavelmente, dedos suados, com as folhas sujas de um jornal que noticiava nada muito diferente do que a sua estrutura escrota. A escrita nesse caso nem fazia sentido. A pele oleosa refletia a carência de cuidados, carinho, sorte, enquanto o outro ao lado, descansava com os olhos abertos e a boca fechada.
Do lado oposto ao que dormia, um livro sagrado era folheado despretensiosamente por uma jovem com um decote que ia ate o pouso do livro, e que favorecia aos olhares alheios. Aparelhos MP3 MP4, MP10, celulares, óculos escuros e tatuagens conviviam tranquilamente com a demora da composição. Tênis sem meias, gente dormindo, pacotes e sacolas se esbarrando e se amontoando no momento do embarque/desembarque e um outro tentava descobrir em pensamentos, o que havia acontecido com a moça de bermuda jeans por ela estar tentando esconder atrás dos óculos, o roxo no olho esquerdo.
Antes de descer ele ainda teve que ouvir um artista de rua dar seu show. O cantador de coco tratou de tirar seu pandeiro da sacola de mercado, botou uns cds no chão ao lado de uma garrafa de água que dentro tinha um filhote de cobra morta que ele chamava de Teresa, e começou o repente falando da vida do rico e da vida do pobre.
Tenho certeza que aquele homem ao ver o cantador falando da vida do pobre pensou em todo sofrimento que já havia passado até ali. O olho suado revelava que a vida não tinha sido fácil. Vida de pobre que às vezes tem que vender a janta, e que nem sempre tinha dinheiro para pagar a passagem do trem.
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