A Cor Amorfa


Só percebo que meu óculos escuro sumiu quando passo a mão pelos cabelos e não o encontro. Logo agora que o sol está só a metade na linha do horizonte e estou indo na direção dele, com sua luz avermelhada incidindo no meu rosto.
A estrada de terra em que meu carro vai levantando poeira é ladeada apenas por extensões de mato alto, seco e quebradiço. Felizmente só mais um quilômetro e estarei novamente na civilização. Ou era esse o meu plano.
Não vejo nada à minha frente a não ser o pontinho que é o afunilamento dessa pista e a imagem começa a distorcer em espelhismo, uma ondulação no tecido invisível do espaço. Então a luz solar, vermelha e imponente, se intensifica de forma bizarra e minha retina começa a se incomodar. Como um holofote rubro, a luz aumenta e se expande por toda a extensão da linha do horizonte, colorindo de chamas toda a estrada e o matagal seco, me atingindo e ao carro como se possuísse alguma solidez e, temendo que eu fique cega, piso bruscamente no freio e fecho os olhos. Um som ensurdecedor invade meus ouvidos e em seguida some atrás de mim com o resquício do efeito doppler.
Abro os olhos. Não há mais a luz vermelha, mas uma cortina de poeira ao meu redor. Saio do carro e, enquanto a poeira vai baixando, consigo ver o que me cerca e percebo que a estrada sumiu.
A poeira ainda está aqui, flutuando, mas a estrada de terra não está sob meus pés e muito menos próxima porque tudo o que existe, seja para que lado eu olhe, é apenas uma grama baixa e muito verde. Como se eu tivesse sido transportada para outro lugar, o matagal seco e quebradiço sumiu, a estrada de barro vermelho desapareceu e quando entro novamente no carro para sair dali, ele simplesmente morreu. Não importa quantas voltas eu tente dar na chave, é como gritar aos frios ouvidos de um cadáver.
Saio do carro e olho novamente toda a extensão do que me rodeia, a grama extremamente verde e bem cortada. O cheiro que recende dela é o de grama que acabou de ser aparada, é de terra que acabou de ser molhada pela chuva. O nome desse aroma é petrichor e a maioria das pessoas o ama, mas não é o meu caso. O prefixo grego “ichor” significa “líquido que corre na veia dos deuses”, mas na boa, me parece mais com linfa quente e podre.
Só então noto que há uma sombra que cobre a parte onde eu estou e olho para cima. Tenho um susto, levo uma mão à boca e fico em seguida mais confusa que com medo. Um hexágono perfeito está planando sobre mim. Suas dimensões perfeitas parecem ter sido projetadas por um arquiteto, mas a sua cor… Ele é de uma cor iridescente, mas as cores são muito estranhas, porque não parecem com nada que eu já tenha visto. Falo com propriedade porque trabalhei por um tempo em salões de beleza e sei definir bem os vários tons de vermelho, as variações de azul etc. É uma espécie de gradiente que pulsa em um ritmo vindo dele mesmo.
Eu me afasto para ver melhor o seu tamanho, mas ele me segue. Não faz barulho algum enquanto se movimenta, mas vai me seguindo enquanto caminho. Acredito ter 10 metros de comprimento. Eu corro, mas ele me segue, sem pressa. Faço círculos correndo e ele vai me acompanhando e mudando sua iridescência e quase chego achar que ele está rindo de mim.
Paro mais uma vez para olhar ao meu redor, fazendo sombra em meus olhos com uma mão. Só há grama. Grama verde que se segue a mais grama que dá lugar para mais grama, até onde meus olhos conseguem alcançar. Resolvo caminhar para ver se acho algo diferente. E o hexágono colorido vai me acompanhando.
Creio que ando por uns 15 minutos e nada muda. Não há ruído de vento ou sinal de ao menos algum animal pequeno, insetos, pássaros no céu. Meu amigo no céu continua me perseguindo, como uma sombra. Então, cansada, sento na grama verde e macia. O hexágono fica acima de mim e de repente vejo que ele começa a ficar de uma cor só, mas eu não sei bem explicar que cor é essa. Se eu for comparar, seria algo entre o verde musgo e o cobre. Assim que ele atinge essa cor uniforme, eu posso sentir algo na minha língua. Toda a minha boca é preenchida pelo sabor de creme de chocolate. Fico chocada com isso, e apesar de não poder mastigar ou engolir, minhas papilas gustativas são ativadas e eu salivo litros, sentindo o gosto tão forte em minha boca que meu coração chega a acelerar. O hexágono volta a ser iridescente, e o gosto desaparece na minha boca da mesma maneira que surgiu, em um piscar de olhos. Olho para ele e sorrio. Penso em lhe falar alguma coisa, mas aí já acho que seria demais, mesmo que todo esse silêncio seja enervante.
Suas cores se mesclam umas às outras novamente e o que seria algo entre o magenta e o amarelo gema de ovo, toma por completo o objeto, me fazendo sentir um forte cheiro de frango assado. O aroma é tão presente que eu pareço estar ouvindo a pele do frango estalando, a gordura derretendo. Minhas narinas são invadidas como se eu estivesse colocando o rosto em uma churrasqueira. Acontece o mesmo: ele volta a ser uma mixórdia de cores e o aroma some.
Até onde me lembro, isso se chama sinestesia. Cores específicas formadas por esse hexágono evocam aromas e sabores, enganando o meu cérebro e martirizando meu estômago.
Levanto, bato na minha bunda para retirar os resquícios de terra e estico meus braços, suspirando profundamente e dando mais uma olhada ao redor. Até que eu vejo. Longe, muito longe, tão longe que o que consigo enxergar é um pequeno ponto escuro em movimento, aumentando enquanto se aproxima. Minha visão é até boa, mas a distância é enorme, então não consigo definir o que seja.
Sinto como se algo cítrico fosse jogado com força na minha cara, então meus olhos lacrimejam, minha boca saliva e meu nariz é afogado, começando uma sequência de três espirros. Olho para o meu amigo flutuante e ele está com uma cor que pode lembrar terra rachada com salmão. Não sei se ele está querendo brincar comigo, mas não achei nada engraçado. Quando olho novamente para o local de onde vinha o ponto, posso começar a divisar a forma. É branco e corre. Corre velozmente. Mas agora não na minha direção, e sim projetando um arco, até passar de meu lado esquerdo para o direito. E é aí que eu vejo.
Branco como algodão e imponente como um leão, um tigre albino, cuja constituição dá duas de mim, vem se aproximando, como fazem os felinos precavidos. Branco como neve, seu corpo emana uma beleza admirável e assustadora. Olha para mim com seus olhos quase vermelho sangue e meu corpo está totalmente paralisado.
É quando olho para seu focinho. Sua enorme mandíbula está fechada, mas todos os pelos estão tingidos, manchados de um vermelho quase escuro e viscoso. É sangue. Sem dúvidas é sangue. Posso sentir o odor ferroso vindo dele.
O que eu sinto agora é que meu coração é um detento batendo e gritando por liberdade nas minhas costelas. Ele quer sair dessa prisão, pegar o elevador na minha traqueia e escapar por minha boca. Mas o meu medo não é da visão do tigre albino em si e sim da lembrança que ele me traz. As engrenagens quânticas de meu cérebro trabalham freneticamente para me lembrar em qual ponto da minha história, nesses 22 anos de vida, eu o vi pela primeira vez.
Foi aos 6 anos de idade. Esse mesmo tigre apareceu no quintal da minha casa, quando eu estava tentando fazer uma ponte de areia para passar um rio que eu faria com a mangueira. Ele já era enorme e tão branco que naquela época eu pensei que fosse um fantasma. Aquilo na boca dele, a princípio, me pareceu suco de groselha, mas era sangue. Não sei como, eu sabia que era sangue. Ele apareceu para mim justo naquele dia, quando dentro de casa chamas começavam a lamber todos os cômodos. Eu corri, sem dar mais atenção ao tigre, para ver o que estava acontecendo, e era minha mãe, rodeada pelas chamas, jogando gasolina no próprio corpo, chorando e olhando para mim.
O tigre está parado agora, me encarando. Tusso no punho fechado, porque um aroma terrível estrangula minha garganta. Olho para o tigre e ele agora está encarando o hexágono. Volto meus olhos para meu amigo colorido, que agora tem uma cor única. É uma sombra, mas uma sombra que brilha. Não sei como uma sombra pode brilhar, mas é o que está acontecendo. E essa cor amorfa faz com que o que eu sinta seja o cheiro podre de vísceras quentes, o metálico do sangue. Cheiro de carne esfolada, de fezes mornas.
Quando viro novamente para o tigre, não é mais o tigre. É meu corpo. Sou eu ali estirada no chão que antes era grama, mas agora é barro vermelho, rodeado por grama alta, seca e quebradiça, que silva ao toque do vento. Meu ventre está aberto e meus olhos sem vida olham para o céu. Sangue cobre 70% de meu corpo e o terrível cheiro de morte que sinto é o meu mesmo.

Hemerson Miranda

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