OBRIGADO, MIGUEL! - LAMBEDEIRA, FACÃO E MORTE

de Miguel Angel (in memoriam)

(...) E pensar demais na vida cansa. Voltar para cama era melhor. Sua “família” o esperava.
Apagou o sorriso que despontava ao ouvir o barulho característico da porta da rua se fechando. Sacudiu de novo o saliente e, ao virar-se para sair, bateu no nariz o odor catinguento de desconhecido por perto.
Retesou os músculos das pernas e braços, pronto para o bote ou para a fuga, como bicho instintivo. Perfilou na porta entreaberta, espiando.
Viu dois broncos já entrando no quarto, olhando tudo sem querer fazer barulho. Um preto buchudo e um branco bufento, cochichando entre eles, caçando com atenção. De orelha e olhos acesos, ferrou os dentes e lembrou num estalo da faca enterçada escondida debaixo do colchão. Amiga sempre disposta para um “chega-pra-lá” nos inimigos também dispostos.
Ladrões? Ou da lei? Macacos não tinham a catinga destes.
Nem a fuça. Escondeu a sua detrás da porta, aguardando
oportunidade. Assim, em pêlo, sentia o abafamento do desamparo,
boca amargosa aumentava insegurança, mas estava disposto
a vender caro lá o que fosse os dois estavam querendo
comprar. E, à guisa de pagamento, a lambedeira de palmo e
meio de um e o facão do outro garantiam disposição de compra.
- A vaca tá dormindo, cadê o preto sujo?
Assinalou na direção do banheiro, o preto. Cuidadoso, vindo
na sua direção, o branco. O outro se apartando, desapareceu
da visão. O bafo chegou perto entrando pela fresta da porta
semicerrada. Apertou-se detrás dela, segurando respiração,
entreabriu os dedos dos pés preparando pulo de gato selvagem,
fechou os punhos até afundar as unhas nas palmas,
alargou as ventas. A mão do outro segurou a borda da porta,
viu as unhas sujas tão perto da cara que arreganhou os dentes
disposto a arrancar pedaço. O desconhecido terminou de
abrir a porta encostando de leve no corpo, teve de se apertar
ainda mais contra a parede.
- Aqui num tá - garantiu ao outro, encostando-se no batente
da porta escancarada.
- Se tivesse cê já taria morto, sua besta! Deve ter saído para
comprar alguns teréns. Vai voltá logo. Deixar sozinha uma cadela
gostosa como esta é que num vai. Nuinha e eu na pindura.
- Que tá aprontando aí, Moitão?
- Quem anda com preto só pode ser puta. A madame aqui
gosta de preto. E eu sou um, uai!
- Deixa disso, nego, óia, o crioulo vai aparece pra já.
- Ué, cê faz o serviço assim que assoma o nariz pela porta.
Tição de merda precisa de dois, não. O pato preto, assim que
vê a gente, vai se cagar todo. E eu tô ocupado agora. Tá com
medo do preto, Corintiano?
- Medo, eu? Já meti faca nas costas... nos peitos de muito
preto safado...
Magda acordou murmurando: - Que está fazendo’.’ É amigo
dele? Aonde ele foi? ...
- Nem amigo do chifrudo! Eu como quieto as putas deles,
então fecha o bico e abre as coxa, vai vê só o que tô querendo
fazê. Vem cá, branquela. Assim, abre bem que minha rola tá
queimando. Coisada mais boa... te mexe bem. Tá gostando
que é uma lindura, não é puta?... Corintiano, seu merda, tá
olhando o quê? Vai fica de tocaia na porta da rua, infeliz. Pode
ir esquentando, depois vai sê tua vez... assim, mulher! Aperta
mais. Te mexe, sacode essa bunda!
O chamado Corintiano foi se afastando do banheiro em direção
à porta do quarto. Sem deixar de olhar para a cama, arrumou
o saco entre as pernas. Tão compenetrado com o espetáculo,
nem percebeu alguém saindo de trás, acocorado junto
com a sombra, e deslizando nos calcanhares com silêncio de
gato e prontidão de pulo, sem contudo deixar de vigiar o outro
homem. De relance, enxergou-o em cima de Sinhá, com as calças
enroladas prendendo os tornozelos e bunda de fora, saracoteando
desvairado. Ela em silêncio, garra cravada nas costas
dele, parecia estar gostando: “Que tipa, essa mulher!”
Antes do Corintiano chegar à porta, ainda sem tê-lo visto
abaixado atrás dele, grudado no chão, desembestou numa
corrida relâmpago e em dois pulos chegou até a cama, certeiro
meteu a mão debaixo do colchão e retirou-a como raio já empunhando
a faca. O chamado Moitão ficou apalermado, sem atinar
nada, deu uma olhada no seu membro no instante de alcançar
a culminância. Parecia saber ser o último: gozou entre
as pernas dela ao mesmo tempo da garganta ser furada de lado
a lado. Com movimento brusco fez a faca sair pela frente, rasgando
a cartilagem da tiróide. Pendurado por fio de veia, o
pomo-de-adão converteu-se em torneira por onde o sangue,
saindo em golfadas, espalhava-se sobre a cama, lambuzando
o corpo de Sinhá. Horrorizada, sufocando grito, apertou a boca
com as mãos; a cabeça do caipora pendeu para um lado, depois
para o outro, num sinal inútil de negativa. Procurando
com o olhar o autor daquilo, esbugalhou os olhos tentando
fixar a figura inquieta e anuviada ao lado; esta desembainhou
a faca da garganta e, veloz, voltou a enterrá-la, agora num dos
olhos aboticados que o miravam. Tudo tão rápido que o tal
Corintiano, apoiado lá na porta, mal pôde limpar o fio de baba
pendurado na boca aberta ao ver aquele demônio preto, nu e
enfurecido furar o outro olho do companheiro, sempre o vigiando
de esguelha. Concordou com sua covardia: aquilo era
muita fúria para seu saco nessa hora murcho, e só pensou em
sair dali. Para já. E o fez aos trancos, cozinha, portas e barranco
abaixo.
O “demônio” viu pelo canto do olho apenas o rasto difuso da
fuga desembestada, enquanto arrancava a faca do último olho
do inimigo. E Sinhá, imóvel debaixo do corpo ainda convulso
do negro já morto, parecia estar dormindo na poça de sangue
se espalhando como lençol de seda vermelha, cobrindo o semblante,
grudando as grandes pestanas. Ensangüentando o verde de seus olhos.
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(do romance A Cena Muda, de Miguel Angel Fernandez)

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