Lista




Ainda não são nem 9 da manhã e eu estou num pub bebendo uma taça de vinho. Eu chamo isso de fracasso. Quando abro minha agenda, a lista que criei para esse dia começa com

não beber,


então risco com uma caneta vermelha esse item. Estou aqui porque resolvi não ir trabalhar. Foi uma decisão que tomei no metrô, tão rápida quanto um piscar de olhos. Pensei "foda-se, não vou trabalhar hoje" e desci na primeira estação que surgiu, procurei um pub e aqui estou. É segunda-feira e a lista que criei para hoje já era.

Essa agenda é cheia de listas. Eu faço lista para tudo. Você, se vir, vai se convencer de que sou louca. Mas eu literalmente faço lista para qualquer coisa. A primeira lista que escrevi foi de tipos de morte que eu queria que minha mãe tivesse. Eu explico: ela me abandonou numa lata de lixo quando eu tinha um mês de vida. Fui achada por um cara que acabara de perder a esposa e o filho num acidente de carro. Ele me adotou, mas felizmente não me deu o nome de Vitória. Então sim, eu nutro ódio pela minha mãe e desejo várias formas de ela morrer.

O primeiro item da lista é:
morte por afogamento no deserto. Vômito entrando em seus pulmões, a asfixiando.

A cada ideia que eu tenho de morte para ela, anoto. Já tenho 150 itens nessa lista.

Peço mais uma taça de vinho. Eu não deveria estar bebendo. Bebi a semana toda. Nesse mês só passei 4 dias sóbria de verdade e nesse período pensei em meu fígado se diluindo em sangue. Não sei o que vou fazer hoje. Só o que escrevi na nova lista foi
beber,

mas preciso acrescentar alguma coisa. Tem um senhor tomando café 4 mesas distante da minha e é a segunda vez que ele me lança um olhar de soslaio com reprovação. Quando ele olha novamente eu abaixo lentamente o meu decote e mando um beijo para ele, que balança a cabeça negativamente e se entrega ao seu jornal, um pouco ruborizado.

Decido ir até uma livraria que conheço num bairro próximo e saio do pub em direção à estação. Lá tem um café que eu adoro. Na livraria, não na estação. Passo num quiosque e compro duas latas de cerveja. Quando sento no metrô, sinto o suor se acumulando acima de meu lábio superior e o seco. Abro a primeira lata, sei que logo vai esquentar, o calor aumenta nessa sauna sobre trilhos. Existem alguns olhares de reprovação dos gatos pingados no trem, eu não me importo. O balanço trepidante em alguns momentos faz meu corpo relaxar, mas também faz a cerveja, quando bebo, cair no meu queixo. Fico imaginando se eu ficaria sexy num comercial de cerveja, corpo molhado e rosto de quem está passando maquiagem invisível. Não tenho um corpo de se jogar fora, mas sou aquela garota que some quando aparece uma garota bonita. Na nova lista de hoje eu acrescento

comprar livros.

Quando chego na livraria sou envolvida por aquele burburinho sagrado que esses lugares possuem.

Vou lhes contar uma coisa e não, não é o álcool falando, mas essas pessoas aqui na livraria, elas se acham superiores a todas as outras. A maioria das pessoas que lê se acha intelectualmente mais superior a qualquer um. Eu não entendo qual o problema das pessoas que não acham isso, falo sério. Quantos livros você leu desde que começou o ano? Vamos, me responda. Na minha agenda eu mantenho uma lista dos livros que li e desde janeiro já li mais de 20. E agora? Quem é inferior? Ora, vamos. Cada um tem um jeito de se sobrepor ao outro. Gostamos de ser paparicados, de ser vistos por algo que nos destaque. Claro, há regras também, como em tudo. Então se sua leitura atual é o livro de um youtuber, você está fora. Nem tente. Não, não tente mesmo.

Subo as escadas e peço um irish coffee. Passeio, enquanto espero, pela seção próxima, de autoajuda. Sempre achei engraçado ler os títulos. Mas quando pegar e pagar o café eu vou procurar alguma novidade na seção de ficção fantástica. Quero ver o que tem de interessante e bizarro atualmente. Na verdade eu sento numa mesa para apreciar meu café alcoólico e pesquiso na Internet do celular quais livros nessa categoria estão em alta. Essa é a maravilha da tecnologia. Ainda no celular eu posso acessar o app dessa livraria, buscar os títulos, escolher os que quero, colocar no meu "carrinho" e um funcionário irá buscar cada um para mim, bastando somente eu ir até o caixa, pagar e pegar meus preciosos livros. Tudo isso aqui, sentada cultuando meu sedentarismo e enchendo as veias de álcool e cafeína. Me pergunto como as pessoas faziam as coisas antes do advento da Internet. Imagino uma segunda Idade das Trevas depois, muito depois, da primeira Idade das Trevas, antes do Iluminismo do bit. Então termino tudo, pego meus livros e chamo um Uber.

Peço para o motorista, um cara simpático, bonito, queixo quadrado, charmosos cabelos prateados, mas um sotaque estranho que eu não consigo detectar de qual lugar do país, para me levar ao melhor pub da região. Enquanto ele dirige e tenta puxar conversa, o que diminui diante de meu estado monossilábico, eu abro o Grindr porque eu adoro ver os perfis de homens que estão interessados em outros homens. Fiz um perfil como se eu fosse um deles e até já recebi umas mensagens, mas não tenho interesse a não ser curiar. Por vezes eu rio ou me revolto com algumas descrições.

Paulo, ativo, procuro passivo, mas não gosto de gordos ou afeminados.
Michael, gosto de homens iguais a mim: nerds, não pedantes, inteligentes e engraçados, bem dotados, que curtam qualquer coisa na cama. Nada de gordos.

Uma vez eu me relacionei com um cara que tinha uma mania estranha e que às vezes me deixava um pouco envergonhada. Antes de transarmos ele ficava passando a mão pelo meu corpo nu, falando “lindo, lindo, lindo” e aquilo me parecia mais Narciso olhando para o lago. Meses depois que terminamos eu soube que ele tinha feito uma viagem para uma cirurgia de mudança de sexo.

Fico pensando se eu sairia com um homem gordo e percebo que não tenho uma opinião formada, mas que agora posso começar a formar. Não estou gorda, e deve ser pela bebida. As dobrinhas que estavam se formando na minha cintura diminuem a cada dia e minhas maçãs do rosto estão murchando. Não sei o quanto estou pesando e não tenho curiosidade. Minha única preocupação é de que meus peitos e minhas coxas comecem a diminuir. A imagem que se forma à minha frente é de um homem obeso, suado e ofegante por ter apenas subido um lance de escadas. A imagem seguinte é dele na cama tentando uma pose sexy quando no máximo o que eu vejo é o Jabba. Ora, acho mesmo que eu não sairia com um homem gordo e não me reprovo por isso porque sei que não preciso fazer caridade. O motorista estaciona o carro e me diz que eles tem a melhor e mais barata torre de chope de Corona da região e ao ouvir isso a vontade que eu tenho é de ir embora. Como ele ousa achar que eu bebo aquela água chamada Corona? Pago a ele e desço.

Procuro uma mesa próxima à janela, abro minha agenda e na lista de mortes da minha mãe acrescento
morte por afogamento em um barril de Corona.

Um atendente chega. Que rapaz bonito. Magro, mas com um porte charmoso. Cabelos negros como o esquecimento jogados para trás e acalmados por uma tiara. Seus olhos castanhos são profundos como o oceano. Ok, estou ficando muito melosa, preciso beber. Peço, para começar, um drink que leva gim e gosto que ele não demonstre em nenhuma parte de seu corpo alguma reprovação pelo meu pedido. Ele é rápido e antes que eu pudesse pensar já estava de volta com a bebida. E ainda foi solicito em dizer que era só chamar, se precisasse de algo. Começo a imaginar ele e eu casados, com 3 filhos numa casinha de cerca branca.

Thalis, 20 anos, 20cm, gosto de homens musculosos, inteligentes, engraçados, passivos e que curtem filmes cult. Não gosto de sardas ou de gordos. Isso está se tornando repetitivo.

Alguém do trabalho manda uma mensagem perguntando se eu vou me atrasar. Eu ignoro. Na TV está passando o novo clipe de uma cantora pop em ascensão, o clipe é repetido ad nauseam. Eu ignoro. No balcão do pub um cara me lança olhares estranhos, talvez esperando que eu o convide a sentar comigo. Eu ignoro. Hoje o dia é meu. Amanhã a ressaca será tanto física quanto moral, mas... Carpe Diem.

Antes de sucumbir ao vício das drogas e morrer após uma overdose do lado da namorada que sobreviveu, meu irmão dizia para mim "não se preocupe, um dia você vai achar a pessoa certa para você" e só o que eu me pergunto é se eu sou a pessoa certa para alguém, com tanto erro, tanta coisa errada que é tudo o que realmente tece a minha existência.

Após o drink o rapaz bonito começa a me trazer cerveja, pois o calor parece aumentar. Penso em nós dois com 40 anos de idade, ele com rugas de preocupação e desespero em ranhuras no seu rosto por causa da mulher alcoólatra que o faz passar vergonha todos os dias. Peço uma porção de camarão empanado. Cerveja, diz uma amiga minha, para mim é como água. Essa minha amiga, ela está frequentando o AA. O cara que estava me olhando ainda está lá. Me olhando. Ele é gordo, acho que não falei. Não sei se é pela embriaguez, pelo embotamento da minha mente, mas começo a sentir vontade de chamar ele para sentar comigo. Só que eu penso no camarão. Eu adoro camarão e não quero compartilhar com ninguém. Então numa decisão impensada, que é o que começou esse dia, eu ergo a mão e chamo o cara com o indicador, numa encarnação de alguma atriz de filme noir com sedução fatal. Sou a femme fatale ligeiramente embriagada. Ele levanta prontamente e se aproxima. Prevejo que vou precisar de algo mais forte que cerveja. Ele vem se aproximando de maneira desengonçada, procurando não bater nas pessoas que estão nas mesas, não derrubar nada em seu caminho. Se passou pela sua cabeça a cena do Godzilla em meio aos prédios, estamos juntos nessa.

Já começo a me arrepender quando ele pede para ver minha sacola da livraria, pois sei que ele, como a maioria dos homens, quer ensinar alguma coisa a uma mulher. Qual o problema desse cara que fica olhando para os meus olhos e não para os meus peitos?

O seu nome, ele me diz, é Diego, e me estende a mão. Isso mesmo, com toda a formalidade do mundo ele quer que eu aperte a mão dele, o que faço e me arrependo imediata e amargamente. A mão de Diego está encharcada de suor. Sua respiração é barulhenta, uma demonstração do esforço hercúleo que todo o seu corpo precisa, sob a camada adiposa, para se suster. Ele usa uma camisa preta, mas se você prestar bem atenção há manchas enormes debaixo de suas axilas. Talvez seja o nervosismo que o deixe expelir o suor viscoso até minhas narinas e ele está mesclado com algum perfume que é até caro, mas perdeu totalmente o efeito para o qual foi fabricado. Para suportar tudo isso eu preciso beber o restante todo da cerveja e peço ao rapaz bonito que me traga uma dose dupla de whisky. O que Diego está bebendo é uma mistura de soda e menta e a vontade que eu tenho é de jogar fora o seu copo.

Diego não percebeu que eu estremeci depois que apertei sua mão, nem que meu rosto se contorceu de repulsa, nem que eu peguei um bolo de guardanapo e sequei os dedos. Ele não viu isso tudo porque, o que não me surpreendeu, ele pegou o livro e se entregou a um monólogo tedioso que esperava que eu escutasse.

Ele discorre sobre o livro, o autor e o gênero, mas não faz isso com a cativante paixão que possui certos homens, ele faz isso como se tivesse decorado um texto, como se estivesse lendo uma resenha monótona desses temas. Sua voz é ruidosa e entrecortada pela respiração ofegante. Ele desafina no final de algumas frases, mas tenta manter um ar sério de quem entende do que está falando.

Quando o rapaz bonito traz minha bebida eu já peço a ele que prepare mais um. Ele sai com um olhar de dúvida e eu me entrego ao gole quente da bebida âmbar. Penso em nós dois divorciados. Ele com uma moça de 20 e poucos anos, tudo o que eu fui um dia, e eu sozinha em casa com um gato envelhecendo e começando a sofrer os horrores da menopausa. Sinto até o formigamento na perna.

Talvez, e esse pode ser meu medo, a bebida fará eu ser um pouco grossa, sem tato, totalmente desprovida de empatia. Pego minha agenda e ergo até a altura de meus seios. Escrevo uma nova lista:

namorar
noivar
casar

Repouso ela na mesa, fechada. Bebo mais um pouco e Diego ainda está imerso em seu solilóquio insuportável.

Posso imaginar esse cara em sua casa, diante de um computador empoeirado, as mãos engorduradas de sanduíches, a boca inundada de refrigerante, assistindo alguma série nerd ou um anime. Ele faz parte dessa geração que conta os anos que passam pelas temporadas de suas séries preferidas.

Posso imaginá-lo abrindo sua pasta intitulada XXX e procurar mulheres artificiais, peitudas e bundudas, depiladas, vaginas sem muitas dobras, e começar a bater uma, mas não finalizando, pois seu coração gorduroso acelera e ele não consegue manter o ritmo. Posso inclusive visualizar essa pasta dividida em outras pastas de forma organizada em Peitudas, Anal, Asiáticas, Milfs, Engolidoras etc.

O vejo postando em seu Instagram fotos com seu cachorro, a cara redonda bem junto aos pelos brilhosos do cão. Mais fotos de capas de games, café do starbucks, mangás e HQs da Marvel. Seus status no Facebook são de filmes e séries assistidos, confirmações de eventos de cosplay de animes, curtidas de páginas sobre jogos de mesa. O álbum de fotos de seu celular está repleto de prints de mulheres do Instagram.

Pego minha agenda novamente e acrescento à lista:
divorciar

Diego sequer está me dando atenção. Penso em derramar minha bebida na bebida sem graça dele. Penso em dar um tapa em sua cara e obrigá-lo a agir. Quero gritar com ele.

Vamos, Diego! Faça alguma coisa!
Diga o que você odeia! Diga que coisas sujas você tem vontade de fazer com uma mulher!
Olhe nos meus olhos, seu desgraçado, e pare de pensar em bater uma pra mim quando você poderia me comer!
Vamos, seu filho da puta, me diga alguma coisa, qualquer coisa, me irrite ou me ofenda,só não me deixe entediada!

Mas ele não faz nada. O álcool vai fazer algo que eu me arrependa depois. A minha ressaca depois de uma bebedeira não é só física, mas também moral. Isso quando eu lembro, pois tenho começado a ter amnésia alcoólica e por vezes tenho pesadelos de que matei alguém numa dessas amnésias. Provavelmente eu irei humilhar esse cara inocente. Um ódio ácido começa a se formar no meu estômago. Seu lábio superior treme. Nem ele sabe porque está aqui na mesa comigo. Quando o camarão chega, ele olha de soslaio, mas não olha para mim. Eu não vou oferecer. Eu preciso mandar ele embora daqui. O álcool ferve a 78.8° C e eu já o sinto borbulhar dentro de mim.

Suma da minha frente, Diego!

Encho minha boca de camarão. Estalo os dedos diante dele. Ele se assusta e para a matraca. Pergunto o que diabos ele está fazendo. Ele olha ao redor. Olha pra mim, porra! Ele começa a gaguejar. Eu ergo a mão para impedir que ele continue. Os olhos dele são um cristal líquido em inquietação. Pego minha agenda e abro numa página em branco. Arrasto até Diego e pouso a caneta em cima.

“Vamos, escreva aí uma lista do que você pretende fazer hoje. O que pretende fazer amanhã. O que pretende fazer na próxima semana. No próximo mês. No próximo ano.”

Ele me olha formando vincos oleosos entre as sobrancelhas. Nesse momento eu gostaria de rebobinar a fita, voltar para o momento em que ele apenas ficava olhando para mim de longe. Na verdade ‘rebobinar a fita’ é muito anos 80. que frase se usa hoje mesmo?

Parece até que eu coloquei uma arma entre os olhos dele. Ele treme e seus olhos procuram alguma coisa que obviamente não está aqui. Sinto que ele vai ter um ataque, imagino ele caindo aqui e eu tendo que chamar uma ambulância. Ele sequer sabe onde colocar as mãos, então fica na dúvida entre as deixar na mesa ou no colo. Bolhas de suor se formam e explodem em suas têmporas. Ou eu falo alguma coisa agora ou esse cara vai implodir. Será que todas as pessoas teriam esse momento de desespero diante do que eu pedi? Eu posso imaginar a lista dele:

concluir uma série
adquirir um action figure
terminar um programa em python
comprar um vídeo pornô de 10 minutos de uma cosplay
finalizar uma interface gráfica
aproveitar uma promoção no Burger King

E terminaria aí. Ele não conseguiria ver muito mais à frente. Poderia se esforçar e espremer os olhos míopes, mas seria incapaz de divisar por trás da cortina iridescente que cobre seu futuro. Porque na verdade ele não sabe bem o que fazer. Ele não faz ideia do que será no futuro. Ele vive apenas um dia de cada vez e segue isso como seu mantra, imaginando que pode morrer a qualquer momento e deve aproveitar o dia. Carpe Diem, baby. E mais: ele sequer começaria essa lista, pois está sob pressão e Diego não funciona sob pressão, ainda mais quando ela é feita por uma mulher.

Antes que Diego entre em colapso eu solto um longo e profundo suspiro, uma névoa destilada que atinge a cara dele, mas que não pode contorcê-la mais do que já está.

“Ok, você não consegue. Tudo bem. Sem problemas.”

Oh Deus, ele vai chorar?

“Vamos fazer o seguinte, Diego. Você volta para onde estava. Finge que nunca sentou aqui, finge que nunca nos falamos e cada um segue sua vida.”

Minha voz está pastosa. Mais alguns copos e as palavras irão se formar em minha mente perfeitas, mas vão sair distorcidas pela minha boca. Enquanto eu consigo me controlar, enquanto tenho forças para poupar esse cara de uma humilhação pública da qual a vida não o preparou para se defender, eu levanto da mesa, colocando na boca os últimos camarões, formando uma camada oleosa em meus lábios, e bebo o que restou do whisky.

Essa é a hora. O que você vai fazer? Vai se levantar também e segurar meu braço exigindo que eu sente? Vai pedir uma bebida de homem e começar a encher a cara comigo? Vai se fiar no privilégio de ter nascido homem e se impor diante dessa fêmea vulnerável ainda mais agora que está ligeiramente embriagada?

Silas, 23 anos. 1,80, 21cm. Gosto de homens com pegada, autoconfiantes, inteligentes e que curtem esportes.

A cadeira de Diego range em protesto quando ele se levanta. Seus olhos não ousam me olhar. Ele dá as costas e vai embora. Entra no banheiro e eu não sei o que será dele daqui para a frente.

No metrô eu começo outra lista:
empatia
compaixão
compreensão

Olho para as pessoas no trem, seus olhares perdidos na viscosidade do tédio. Bebo mais um gole da latinha de gim tônica e reviro os olhos. Risco o que escrevi nessa lista e escrevo abaixo:

mais álcool

Dois anos depois eu volto aquele pub onde conheci Diego. O rapaz bonito não está mais lá. Quem me atende é uma garota com aparelho nos dentes e rosto de modelo de comercial de shampoo. Ela me traz um litrão de cerveja. Tenho que economizar, pois meu saldo está no fim. Sim, eu perdi meu segundo emprego por causa de bebida. Terei que voltar a morar com meu pai, pois não vou conseguir pagar o aluguel do apartamento mês que vem. Talvez eu volte a costurar com minha tia.

Hoje não tem camarão. Não tenho o suficiente para um drink decente. Desisti do Grindr e ano passado até usei o Tinder, mas nada. Desempregada, solteira (encalhada seria a palavra certa), sem o suficiente para encher a cara de forma digna. Se existe uma cota de fracassos, acho que cheguei no meu limite. Minha nova lista parece mais uma sequência de esperanças frustradas.
emprego
casa
dinheiro
ser feliz

Olho para a porta de entrada e estreito os olhos, pensando se realmente estou vendo o que estou vendo. Sim, estou. Aquele é Diego. Não mudou nada. Já eu definhei e luto por uma vaga de modelo de campo de concentração. A mão suada de Diego está entrelaçada por outra mão.

É uma mulher.

Jesus, a mulher parece a irmã dele. Rosto redondo semelhante, mesma gordura corporal, posso até ouvir sua respiração ofegante. Sei que não é sua irmã porque ele a beija na boca apaixonadamente e senta a seu lado numa mesa como um casal de namorados conhecendo pela primeira vez a felicidade de amar. Então a minha boca cai.

Uma criança roliça se engalfinha no colo da mãe. Diego agora é pai e, a julgar pelo seu sorriso no rosto oleoso, ele está feliz. Ele, a minha própria criação mental, se rebelou. Subitamente percebo que não sei o que escrever numa nova lista. Não sei sequer o que pensar sobre uma lista futura, como se agora o véu iridescente cobrisse o meu próprio destino.

Sem pensar duas vezes eu chamo a moça modelo de shampoo. Não quero mais saber de nada. Meu cartão vai zerar provavelmente agora e eu peço uma dose dupla de whisky.


Hemerson Miranda

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