OBRIGADO, MIGUEL! - AS JANELAS ABERTAS DE PAR EM PAR PERMITINDO O AREJAR INDISPENSÁVEL: É O NECROTÉRIO



de Miguel Angel (in memoriam)


Ao voltar a si, o corpo inerte da moça da cama ao lado tinha desaparecido e ele continuava amarrado, mas por alguma razão a atadura de uma das correias afrouxara-se. Sem muito esforço consegue retirar a outra, desamarrando o nó que a segura. Levanta da cama a corre até a porta. Esta trancada, vai gritar, se contém. Anda inquieto pelo acanhado espaço, afasta as moscas que o seguem, desvia das teias de aranha, até ouvir barulhos de alguém se aproximando; volta para o catre, deita-se e finge dormir.


Acompanhado da madre superiora, enfermeiro encarregado da alimentação dos pacientes, empurra carrinho com panelas e vasilhas. Enquanto ele serve num prato o alimento, a mulher observa, pela janelinha da porta, Garcia deitado no catre, parecendo dormir; ao destrancar a porta barulhenta, o homem se atrapalha e deixa o prato cair ao chão. 

– Seu desastrado! Estúpido! Limpe isso. Vamos logo! – admoesta a mulher com a voz agravada pela raiva. O homem pede desculpas e vai recolhendo o derrubado. De repente um sino toca alhures e a madre superiora fica atenta, parece preocupada. 
– Deve ser meu benfeitor que chegou. Termina isso logo, seu idiota. Quando terminar tranca essa porta! 

Ela se afasta e desaparece. O homem, ainda no corredor, depois de limpar o chão, absorto, prepara-se para servir cuidadosamente mais uma vez o prato, e não nota o doutor levantar da cama, chegar até a porta entre aberta e, ladeando as costas do serviçal, sair da cela; Garcia se volta e empurra o homem com violência, que vai cair no interior do aposento, seguido pelo carrinho de rodas. O doutor tranca a porta com o ferrolho. O sujeito, atarantado de surpresa e dolorido após a queda, permanece estatelado no chão, rodeado de restos de comida fumegante, panelas e pratos. 

O médico aposta no seu instinto e na sua experiência hospitalar. A distribuição das repartições segue um traçado padrão em todos os hospitais. As celas do corredor onde se encontra estão dedicadas aos loucos considerados perigosos ao convívio social. É o subsolo. A escada que se inicia ao fim do corredor é indicada para os andares superiores. Se dirigindo a ela, lança rápidos olhares nas celas por onde passa e dentro delas apenas vislumbra as criaturas que as ocupam, o que o estimula a correr até a escada e só nos primeiros degraus perceber que está descalço, mas continua a subir: no primeiro vão encontra uma porta, vê, através de o vidro, tratar-se de um laboratório. Após dois lances, uma segunda entrada mostra um grande salão: as numerosas macas, lado a lado, as janelas abertas de par em par permitindo o arejar indispensável: é o necrotério. O doutor abre a porta com facilidade e entra; sem notá-lo, num canto oposto, um homem de avental examina compenetrado um corpo nu deitado numa mesa de mármore. Andando curvado para não ser visto, Garcia se detém no primeiro leito à sua frente, nota que o corpo meio coberto por um lençol, é de um homem. De súbito, um alarme barulhento ressoa pelo prédio inteiro. O homem que examina o corpo à distancia, abandona a tarefa e, com expressão entre curiosa e preocupada, sai do local. Garcia é o único ser vivo entre os muitos corpos que o cercam. Afasta o lençol que cobre o cadáver: é de um jovem oficial ainda vestindo seu uniforme, que o doutor deduz tratar-se de mais uma vítima das doenças que assolam os combatentes da guerra em curso, enviada a tratamento na capital. O alarme ensurdecedor continua invadindo todos os cantos. Rapidamente, o doutor tira suas calças, arranca as do putrescível soldado, do mesmo modo sua jaqueta, e veste-as. Percebe que o morto está tão descalço quanto ele. Devidamente trajado de soldado, sai do salão. Na escada por onde assoma, várias pessoas entre enfermeiros, soldados doentes, freiras e serviçais sobem e descem desordenadamente, procurando, comentando. Ninguém lhe dá atenção. O doutor sabe que o rumo para a porta de saída, só pode ser aquele que toma, sem afobação, se desviando de quem parece andar a esmo; até chegar àlguns metros da grande porta de acesso para a liberdade. Prossegue sem muita pressa. Mas ao ver a madre superiora comandando a busca, furibunda, dando ordens aos gritos, a caixa craniana do médico lateja no compasso do rufo de seu coração, suor lhe molha o corpo inteiro, entretanto, continua. Está a poucos metros da freira comandante. E a vários da porta de saída. A liberdade iminente lhe dá as forças que perdera no cativeiro por um tempo que ainda não pode avaliar. Ao passar perto da freira, de relance percebe que esta o observa e que seus pés descalços chamam-lhe a atenção. Aparentemente impávido, continua a caminhar de cabeça ereta; sentindo o olhar escrutinador da madre superiora nele e em seus pés, chega à frente da porta e se detém; não sabe se estará trancada a chave, se é noite, se é dia. Ao seu redor a movimentação continua ativa e o olhar da freira sobre ele, também. 

Repentinamente o grito áspero e alto da mulher ecoa sobre todos os murmúrios. 

– É ele! Peguem! – o silencio estupefato dos circundantes é a resposta imediata. 

Garcia aproveita os segundos de impasse, levanta a mão, segura a grande maçaneta. 

– Seus idiotas! Na porta, é ele. Peguem-no! – ordena com ódio a religiosa carcereira. 

Garcia sente seu coração parar. 

Ao puxar a porta, fecha os olhos por dois segundos. 

Quando os abre, é para ver a noite feita de nuvem densa e preta igual à garganta aberta de uma fera a esperá-lo lá fora. 

O mecanismo sangrento do coração volta a funcionar e o empurra de um salto na obscuridade. Cai por terra, se levanta quando deixa de rolar, corre em qualquer direção. Na sua nuca retumba a ordem berrada: “Atrás dele!” 

Garcia desloca-se veloz na fuga sem saber em que direção está a segurança, mas a procura em algum lugar do breu que esconde as pedras da estrada ferindo-lhe os pés descalçados. O silencio ofegante dos perseguidores atrás dele o acompanha, apavorando-o ainda mais. De repente, a lua assoma atrás das nuvens de piche, e sua luz benzedeira ilumina a estrada pedregosa; e o igarapé perto dela; e a chalana na sua borda e a vara a bordo, que o doutor, sôfrego agarra, e com ela empurra a miúda embarcação para longe da beira, onde ficam perfilados os atrasados e arfantes perseguidores a observar o doutor viajar caroneiro da lenta correnteza que, dirigindo-se para a segurança da distância, perde-se na trilha da lua refletida na água da liberdade. 

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(Extraído do romance “Sobre Moscas e Aranhas de Guerra” de Dalton W. Reis)

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