Gustavo do Carmo
Trinta minutos do segundo tempo.
Presente e Futuro decidem o Campeonato Nacional. Jogo empatado em 0 a 0.
Disputado. Violento, com muitas faltas. A torcida do Atlético Esportivo
Presente é maioria. É o time mais popular do país e está na disputa pelo
décimo-sexto título. Já o Futuro Futebol Clube é um time novo, recém-promovido
da segunda divisão, e em busca do seu primeiro campeonato.
Apesar da tradição, o Presente
chegou à final aos trancos e barrancos. Classificou-se para a fase de mata-mata
no número de gols marcados e graças a uma combinação de resultados na rodada
final da preliminar. Já o Futuro é o favorito para levar o título. Teve 100% de
aproveitamento na fase classificatória. Mais precisamente, vinte e cinco jogos,
25 vitórias.
Por causa da campanha irregular,
o técnico do Presente, Floriano de Jesus, foi várias vezes ameaçado de demissão
durante o campeonato. A cada três jogos que perdia, ganhava três, somando
pontos preciosos para se classificar. E chegou à final.
O primeiro jogo terminou empatado
em 2x2. E Floriano quase foi demitido após estar ganhando por 2 a 0. Só ficou a
pedido do time, que entraria em campo ainda mais desorientado. Agora, o Futuro
tem a vantagem do empate e vai levando o título.
Floriano está nervoso no banco de
reservas. Vocifera com os seus jogadores. Xinga o juiz. Chuta o banco de
reservas a cada lance perdido.
— O ADÍLSON!!! NÃO SEGURA A
BOLA!!!
— JAMIR! NÃO FAZ FALTA BOBA!!!!!
— APRENDE A CHUTAR VANDEIR!!!
PORRA! ISSO É NÃO GOL QUE SE PERCA!
— QUE MERDA DE JUIZ! FOI FALTA,
PORRA!
O árbitro Ernesto de Almeida
Pereira ameaça expulsá-lo se ele não sossegar. Floriano aproveita o ultimato e
chama Vandernílson, sentado no banco para substituir o seu irmão Vandeir, que
aparenta cansaço. Ele já havia mandado recado para o jogador titular de que ia
substituí-lo.
Floriano orienta enquanto
Vandernílson se aquece. O treinador procura o regra-três para comunicar a última
substituição. Enquanto o reserva assina a súmula, Vandeir recebe uma bola mal
passada do adversário na intermediária sai correndo e velocidade e toca
precisamente para o fundo do gol, abrindo o placar do jogo e dando o título,
por enquanto, ao Atlético Esportivo Presente.
Floriano pula como um jumento.
Corre desorientado com os braços levantados. Aponta as mãos para o céu. Abraça
Vandernílson, depois o auxiliar técnico e, por fim, recebe o abraço do autor do
gol. Vandeir, que havia corrido até ele.
Mesmo satisfeito, feliz e
aliviado, Floriano falou ao pé do ouvido do craque:
— Vou te substituir mesmo assim.
— Pô, professor! Deixa eu fazer o
segundo gol!
— Não dá! O Vandernílson já
assinou a súmula.
— Então tá! Você que sabe.
Resignou o autor do gol, como se estivesse lavando as mãos e dizendo que fez a
sua parte.
E finalmente, aos trinta e cinco
minutos, o árbitro Ernesto autoriza a substituição. O regra-três levanta a
placa eletrônica com o número 10 a sair para a entrada no número 23. Ao
aparecer a substituição no placar eletrônico, a torcida do Presente começa a
vaiar e a gritar em uníssono:
— BURRO! BURRO! BURRO! BURRO!
BURRO!
A partir de então, um misto de
revolta, sentimento de ingratidão, um pouco de culpa, orgulho e saudade toma
conta de Floriano. Ele começa a relembrar o seu passado de criador e tratador
de burros em Fortaleza, onde foi morar aos treze anos com os pais.
Floriano nasceu na cidade cearense de Baixio.
Seu pai tinha um emprego humilde de tratador de burros que puxavam as carroças
da companhia de limpeza urbana. Morava numa pequena casa de apenas um quarto
com oito irmãos. Teve infância difícil. Seu pai ganhava muito pouco, mesmo
trabalhando para a prefeitura.
Aos 11 anos começou a trabalhar
com o pai. Dois anos depois, o velho deixou Baixio e foi criar burros e
jumentos na capital do estado, Fortaleza. Ganhou informalmente uma concorrência
e passou a fornecer seus animais para a prefeitura, também na companhia de
limpeza urbana. Ganhava um pouco mais,melhorando de vida, mas ainda manteve a
família na classe D.
Antes de completar 14 anos,
Floriano teve a primeira grande perda da sua vida: o pai, que não resistiu a um
acidente vascular cerebral e deixou a família aos 40 anos. O filho mais velho
da família de Jesus assumiu os burros do pai e passou a sustentar a família.
O dinheiro diminuiu porque Floriano
passou a ganhar menos que o pai, que não deixou pensão, por não ter contribuído
para a Previdência Social. O então criador de burros não só administrava a
criação como também lavava os dez animais que o pai deixou.
Aos 15, nas raras folgas do trabalho,
jogava pelada com os vizinhos. Num desses escassos jogos de fim de semana, teve
a sorte de se destacar fazendo quatro gols e ser assistido por um olheiro do
Fortaleza, que lhe chamou para fazer um teste no clube.
Foi aprovado e começou a carreira
nos juniores. Participou da campanha do título estadual na categoria. Disputou
também um torneio nacional de aspirantes. Sagrou-se campeão e foi o artilheiro.
Chegou ao profissional.
Deixou a criação de burros e
jegues para o primeiro irmão mais novo que ele. Com o primeiro salário mais o
bicho pelo título estadual que ganhou no Fortaleza regularizou a empresa para a
família. No segundo ano, comprou uma casa maior para a mãe e os outros oito
irmãos.
Com a empresa de criação de
burros formalizada, seu irmão recuperou a licença de fornecimento para a
prefeitura. Por pouco tempo. A coleta de lixo na capital passou a ser
motorizada por caminhões. Florêncio, o irmão, conseguiu contratos com cidades
turísticas, como passeio e puxador de charretes.
Assim como a empresa de burros, a
carreira profissional de jogador de Floriano também foi crescendo. Ele
transferiu-se para São Paulo para atuar pelo Passado Esporte Clube. Foi campeão
brasileiro. Transferiu-se para o exterior para defender o Esperanza, da Itália.
Brilhou por lá. Voltou com o título italiano.
Mesmo no exterior, continuou
administrando a empresa da família. Chegou à Seleção Brasileira e disputou uma
Copa do Mundo. Só que exatamente o maior torneio de futebol do mundo colaborou
para o início do fim da sua carreira.
Num jogo em que o Brasil foi
eliminado da Copa, levou uma entrada dura e violenta de um zagueiro italiano,
que fraturou a sua perna. Ficou nove meses afastado do futebol. Quando voltou
ao Esperanza, não era mais o mesmo. Foi vendido para um clube da segunda
divisão espanhola: o Decepción.
Girou o mundo e atuou na Turquia,
na Arábia Saudita, na Tunísia, no México e Chile até voltar ao Brasil,
exatamente no Fortaleza, seu primeiro clube. Reencontrou o seu futebol, mas
perdeu a sua mãe. Mais uma vez, caiu de rendimento. Pediu para sair do time.
Quis mudar de ares para superar a perda da mãe.
Transferiu-se para o Atlético
Esportivo Presente, do Rio de Janeiro. Foi morar em Copacabana. Mais uma vez
reencontrou o seu futebol. E conheceu sua esposa, com quem teve dois filhos.
Voltou a ser convocado para a Seleção.
Estava perto dos trinta anos
quando foi fazer exame médico para mais uma pré-temporada no início do ano.
Teve uma triste notícia: descobriu que tinha um aneurisma no cérebro. Foi
obrigado a encerrar a carreira de jogador. Só não mergulhou no vício do álcool
porque teve o apoio da mulher, dos filhos e dos irmãos, que já crescidos,
continuavam administrando a empresa de criação de burros, que era o seu porto
seguro e garantia o seu sustento toda a vez que ficava sem contrato.
Decidiu arriscar uma cirurgia. E
sobreviveu sem seqüelas. Iniciou a carreira de técnico no mesmo Atlético
Esportivo Presente que orienta nesta final tensa, em que acaba de ser chamado
de burro pela torcida.
Antes de reagir aos xingamentos,
lembrou, ainda, dos seus vinte anos de carreira, que não foram dedicados
integralmente ao Presente. Floriano treinou também o Atual e o Agora, também do
Rio de Janeiro, o Passado, o Antigamente e o Foi-Foi, de São Paulo, o É Mesmo
de Minas, o Gelecek, da Turquia, onde havia jogado, e também as seleções da Arábia Saudita,
Emirados Árabes, Bahrein e Catar. Quase treinou a Seleção Brasileira, mas o
médico lhe recomendou que evitasse o estresse de receber a opinião de 150
milhões de torcedores. Seu aneurisma poderia voltar. Só conquistou títulos como
técnico no Presente.
Começou o ano no seu Fortaleza.
Acabou demitido após perder o Campeonato Cearense e foi contratado pelo
Presente para disputar o Campeonato Nacional. Fez a campanha aos trancos e
barrancos até chegar à decisão em que o seu time está ganhando o jogo. Estava.
Antes de reagir aos xingamentos,
o Futuro Futebol Clube empatou o jogo em uma cobrança de pênalti nos acréscimos.
O lance que originou a falta gerou uma confusão em campo com o árbitro que
expulsou o goleiro pela regra do futebol – o último homem da área – e...
Vandernílson, que acabara de entrar, no lugar do próprio irmão, autor do gol do
Presente. O zagueiro Jamir não conseguiu evitar o empate que deu o título
imediatamente para o adversário.
A torcida chegou a dar uma
aliviada no coro de burro para Floriano para pegar no pé do juiz Ernesto de
Almeida Pereira, lhe xingando de filho da puta. Voltou a chamar o técnico do
próprio time com mais intensidade pelo mesmo apelido tradicionalmente aplicados
aos treinadores.
Depois de dar um pescoção em
Vandernílson pela expulsão infantil por ter ameaçado o árbitro, consolar o
goleiro, que tentou fazer a sua parte para evitar o gol e apoiar o zagueiro
Jamir, que tentou defender o pênalti, Floriano foi cercado por repórteres de
campo, de rádio, televisão e internet.
Um deles perguntou:
— Floriano, vimos que a torcida
chamou você de burro na hora da substituição e do gol do Futuro. Você reconhece
que não fez a estratégia certa, que deveria ter cancelado a substituição?
— Eu tirei o Vandeir porque ele estava
cansado, perdendo gol bobo. Não tenho culpa que ele conseguiu fazer o gol na
hora que ia sair. Não deu pra cancelar a substituição. A súmula já estava
assinada. Fiz o que deveria ter feito, mesmo.
— E o que você diria para a
torcida?
— Para quem torceu de verdade e
respeitou a minha estratégia de jogo eu peço desculpas por decepcioná-los. Vou
ficar devendo esse título. Mas para esse pessoal ingrato que me xingou em coro
eu quero dizer que tratador de burros eu sou com muito orgulho. Meu pai criava
burros e comecei a trabalhar com eles. Mas burro, mesmo, é a mãe deles!
Foi a última declaração de
Floriano como técnico do Atlético Esportivo Presente.
0 Comentários