A QUATRO MÃOS

 



Conto de Gustavo do Carmo

Ele criou Veridiana. Ela inventou Osmar. Veridiana expressava o lado feminino de Felix Mendes, jornalista e escritor de muito sucesso, com cinco livros entre os dez mais vendidos do país.

Osmar era o lado macho de Patrícia Fritzcovitz, formada em Letras e um fenômeno emergente que colocou o seu primeiro livro, Ex-Namorado, de publicação paga, no mesmo top 10 em que figurava o livro de Felix, Em Busca do Desencalhe.


Apesar de mulher, Veridiana era um alter-ego de Felix. Não que ele fosse gay, mas a protagonista do seu novo livro era uma jornalista bem-sucedida na profissão. Segura de si, viu a menopausa se aproximar e correu contra o tempo para arrumar um marido, que nunca tinha conseguido por excesso de trabalho e pelo seu maior defeito: a sinceridade. O pretendido não precisava ser o homem perfeito e nem podre de rico. Mas alguém que a fizesse feliz. No fim, conseguiu tudo o que queria.

Osmar, por sua vez, era a personificação de um ex-namorado de Patrícia: musculoso, galinha e rude no início do romance, quando ele a traía com diversas mulheres. No entanto, revelou-se uma pessoa honesta e frágil emocionalmente. A vilã da história acabou sendo a ex-namorada do protagonista, hipócrita e manipuladora, um perfil antagônico ao da própria autora. Judite, seu alter-ego, traiu Osmar primeiro e ele estava apenas buscando um novo amor. Sem sucesso.

Em Busca do Desencalhe foi o sexto livro e o primeiro de ficção de Felix. Os outros cinco foram uma biografia de um diretor famoso, outra de um ex-jogador de futebol e uma trilogia jornalística sobre a história do Brasil.

Ex-Namorado foi pago com a bolada em dinheiro que a sua mãe ganhou na loteria. Uns cem mil reais, que deu para imprimir mil exemplares, contratar uma boa assessora de imprensa para divulgar o livro e ainda figurar entre os dez mais vendidos do país. Evidente que a tiragem aumentou. De mil passou a dez milhões. Todos vendidos. Fora o e-book. 

Patrícia assinou contrato com outra editora maior e recebeu um adiantamento que permitiu a ela reembolsar a mãe. Dona Maria recusou, mas aceitou uma viagem à Europa com a irmã, tia de Patrícia, como presente de aniversário.

Para Patrícia vieram os convites para entrevistas em vários meios de comunicaçãp. Na televisão, participou de um programa de auditório matutino diário ao vivo cujo tema foi literatura e romances. Ao seu lado, quem estava no amplo sofá da apresentadora era Felix, já  acostumado com o assédio da mídia.
Felix tinha 45 anos, bonitão, de cabelos grisalhos e corpo atlético. Também era solteiro. Patrícia estava entrando nos trinta anos, tinha pele clara, cabelos compridos pretos, era magrinha e seios médios. Após romper com o tal homem que inspirou o seu romance, estava curtindo a sua solteirice, que começava a demorar para acabar.

Nos bastidores, Félix percebeu o nervosismo da tímida Patrícia, inexperiente com os holofotes. Contou piadas e brincou de criticar a roupa da apresentadora para descontraí-la. Nos intervalos do programa conversaram bastante. Ao fim, saíram juntos e a sós do estúdio da emissora para almoçarem em um restaurante na Lagoa. O casal recusou o convite de um almoço com a equipe de produção e a apresentadora no Jardim Botânico.

O almoço terminou em beijos. Esticaram para o motel. Uma semana depois anunciaram o namoro para a família: os pais e a irmã mais velha de Felix e a mãe e a tia de Patrícia. Mais quatorze dias e a mídia ficou sabendo do romance. Foram morar juntos no mês seguinte. Se casaram seis meses depois. Patrícia já estava grávida.

Durante esse período Em busca do desencalhe e Ex-Namorado dividiram o Prêmio Jabuti. O casal também já tinha lançado, cada um, o seu novo livro. Felix mais uma biografia, desta vez de um ex-presidente do Brasil. Já Patrícia publicou um ensaio sobre maternidade. Ambos estouraram, mas só o de Felix ganhou o Jabuti no ano seguinte.

O casal Mendes-Fritzcovitz já estava com oito livros no Top10. Felix perdeu um porque a biografia do diretor caiu no ranking, esquecida. E Patrícia colocou os seus dois livros. O segundo, já pela nova editora do adiantamento que reembolsou o investimento de sua mãe.

Depois do nascimento de Veridiana, nome da protagonista do livro de Felix, aliás, através de um parto muito difícil que quase matou mãe e filha, Patrícia se recuperou muito bem e planejou escrever com o marido um romance juntos. E a história uniria os dois protagonistas do casal: Veridiana e Osmar.

Cada um escreveu as ações da sua personagem enquanto o outro se revezava para cuidar da Veridiana da vida real. Discutiam a montagem das cenas e revisavam juntos enquanto a menina estava dormindo. O livro de 300 páginas e o texto dividido em 20 capítulos ficou pronto em dois meses.

No romance, Veridiana ficava viúva do marido rico e belo que encontrou no primeiro livro de Felix. O amor perfeito morreu de câncer. Na volta do velório, quando chegava em casa, ela foi rendida por assaltantes, mas salva por Osmar, personagem de Patrícia, que passava acidentalmente no local e deu uma surra em três dos quatro ladrões. Ele acabou baleado no pulmão pelo quarto e ficou em estado grave.

Arrependida e culpada, Veridiana o socorreu e ficou o tempo todo ao seu lado, no CTI. Duas semanas depois, Osmar foi transferido para o quarto. E mais cinco dias teve alta. O marido falecido foi esquecido. Ela nem foi ao enterro. Mas ganhou uma boa herança, a qual gastou uma parte com as despesas médicas de Osmar, que era pobre.

Já recuperado, Veridiana e Osmar se apaixonaram. Só se casaram depois de enfrentarem a oposição da mãe do falecido marido dela - revoltada com a nora ter superado rapidamente a perda do seu filho - e de Judite, a ex manipuladora de Osmar (aquela inspirada na própria Patrícia), que voltou a procurar o antigo namorado quando o reconheceu no jornal por seu feito heroico. Rejeitada, ela jurou vingança e se uniu à ex-sogra de Veridiana. O final, claro, foi feliz para o casal de protagonistas do casal de verdade.

Amor Heroico foi publicado pela editora de Felix. Isto já começou desagradando Patrícia, que precisou rescindir o contrato com a sua, que previa três livros e ela só tinha lançado aquele sobre a maternidade. Acabou processada e obrigada a devolver o adiantamento pelo segundo livro.  A conta bancária de Patrícia ficou um pouco abalada.

O livro escrito a quatro mãos pelo casal foi um sucesso, como aqueles dois assinados individualmente por eles quando solteiros. Depois de dominar a lista com os dez livros (a biografia do diretor voltou para a lista) e ganhar mais um Jabuti com Amor Heroico, o casal vendeu os direitos dos três romances para uma produtora de cinema. E aí começou a briga.

Como os livros de solteiro eram independentes, Felix e Patrícia demoraram para chegar a um acordo sobre qual produzir primeiro. Um ficou com ciúme do outro. Não só como escritores, mas também pelo assédio romântico de outras pessoas.
Depois de muita discussão, o casal decidiu autorizar primeiro o livro de Felix, com a história de Veridiana. Depois seria o Osmar de Patrícia. O livro a dois não foi adaptado porque o casal se divorciou antes e precisou devolver o dinheiro à produtora. Mais um abalo financeiro para Patrícia. A conta bancária de Felix só sentiu um pequeno arranhão.

Patrícia flagrou Felix com outra mulher. E de vingança se envolveu com o ator que interpretou o marido falecido de Veridiana, de quem ele já estava desconfiado de um possível romance. Felix argumentou que foi traído primeiro.

Ela ainda processou o ex-marido por danos morais decorrentes da decisão dele de obrigá-la a rescindir com a sua editora. Patrícia ganhou a causa e Felix foi obrigado a indenizá-la pelo adiantamento perdido. Ele exigiu uma pensão alimentícia para criar Veridiana, que ficou com o pai porque Patrícia não queria lembrar do nome da personagem de Felix. O mau-caráter de Judite acabou se tornando real em Patrícia.

Patrícia escreveu um novo romance depois da separação. Felix também. No dela, Osmar (que passou a ser inspirado no ex-marido) traiu Veridiana (agora chamada de A Outra) e ainda a espancava. Foi preso e, quando solto em condicional, procurou Judite (inspirada na própria Patrícia), que virou a mocinha. Rejeitado, passou a ameaçá-la. Foi morto pelo policial que caçava o maníaco Osmar. Judite casou-se com o agente da lei e viveram felizes para sempre. Patrícia casou-se com o ator que interpretou o falecido marido de Veridiana do romance de Felix. Tiveram um filho, que ela chamou de Henrique Júnior.

No novo livro de Felix, Vida pra Frente, Veridiana ficou insatisfeita com o casamento e a traição de Osmar, também com o nome não mencionado. Reiniciou a busca por um novo marido, que seria o terceiro. Veridiana tocou a sua vida para frente e, diferentemente do primeiro livro, terminou a história sozinha. Concluiu que o casamento não valia a pena.

Felix fez o mesmo. Partiu pra outra. Cuidou da verdadeira Veridiana sozinho. Abriu mão até da obrigação de Patrícia ter que lhe pagar pensão alimentícia, até porque ela estava falida.

Ex-Marido, o novo livro dela - publicado de graça, por piedade, pela editora com a qual rompeu para escrever Amor Heroico com Felix - foi um fracasso de vendas. Ex-Namorado e Virei mãe, gente! saíram de circulação. O filme baseado em Ex-Namorado também teve baixa bilheteria e só rendia um salário mínimo. Só o livro a quatro mãos vendeu bem. Mas a parte que ela recebia mal dava para pagar as dívidas acumuladas por causa da sua compulsão por compras e gastos desnecessários. Também foi abandonada pelo seu novo marido, que não suportava mais o seu descontrole emocional. Ficou com a guarda de Henrique e Patrícia nem se importou. Abandonou o seu segundo filho.

Félix rodou o mundo de veleiro com a filha Veridiana. E ainda fez disso um reality-show. Dinheiro não era problema. Seus oito livros anteriores continuaram na lista de best-sellers, incluindo Amor Heroico. A bilheteria do filme e da peça Em Busca do Desencalhe também rendeu um bom dinheiro. Só Vida pra Frente, que ele escreveu depois da separação, foi um fiasco.  

Felix continuou famoso e rico. Seus livros, incluindo os romances ligados a Patrícia, foram traduzidos e vendidos em 100 países. Voltou a se dedicar aos livros de não-ficção, incluindo o relato da volta ao mundo que fez com Veridiana.

Patrícia foi internada numa clínica psiquiátrica com depressão e também para se tratar da sua compulsão consumista. Recuperada, fez concurso público para assistente administrativa e ficou enfurnada numa repartição sem janelas, levando uma vida simples e cuidando da mãe e da tia até elas morrerem. Nunca mais escreveu um livro. Sumiu da mídia.

Crescida, Veridiana formou-se em turismo e se tornou muito bem-sucedida como escritora e fotógrafa. Seu primeiro e único romance, que narrava a história de um amor incestuoso com o meio-irmão com quem não teve contato até se envolverem, ficou um ano na lista dos mais vendidos e ganhou um Jabuti, além de um Booker Prize. Patrícia, sua mãe que a abandonou, foi retratada como a vilã da história.

O livro foi baseado em fatos reais. Henrique era o tal meio-irmão, de quem chegou a engravidar, mas perdeu o neném. Casou-se com um empresário paulista logo depois, mas se separou dele em menos de um ano.

Como o pai, Felix, concluiu que o casamento não vale a pena. E escrever romances de ficção também não. Dedicou-se aos guias de viagem. 

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