Conto de
Gustavo do Carmo
Miguel pagou para publicar um romance
que só foi comprado por poucos amigos e razoáveis parentes no dia do
lançamento. O pai deu uma ajuda vendendo o livro fiado em sua loja de material
elétrico. O restante ficou guardado em casa, já que nem a editora quis mantê-lo
em seu depósito. Tentou vender alguns para os colegas de pós-graduação, mas o
máximo que conseguiu foram desculpas de que ainda não tinham recebido o salário
do mês.
Muito
tímido, Miguel também não teve coragem de oferecer o livro para os outros
estudantes e professores da faculdade. Muito menos fazer pregão na rua do tipo:
OLHA O ROMANCE! OLHA O ROMANCE! Voltou deprimido e carregando aquela bolsa
amarela e pesada, cheia de livros rejeitados.
Uma
amiga com quem conversava todos os dias pela internet sugeriu que ele
contratasse um assessor de imprensa. Mas o dinheiro da família era curto.
Miguel nunca trabalhou na vida. Ainda vive às custas dos pais. Mesmo tendo
quase trinta anos. O dinheiro que usou no pagamento dos livros acabou. Se
usasse mais apertaria o orçamento.
A
mesma amiga - que morava em Brasília e que Miguel nunca conheceu pessoalmente -
ainda fez uma segunda sugestão. Procurar um escritor famoso, apresentar-se,
dizer-se identificado com o seu estilo e, claro, anunciar que é seu fã, além de
mostrar alguns textos.
E
isso Miguel atendeu prontamente. Já escrevia alguns contos. Queria publicá-los,
mas depois das poucas vendas do romance, se desmotivou. Apesar de tudo, decidiu
procurar o escritor Rodolfo Oliva, cronista, contista e, claro, romancista.
Muito famoso e membro da Academia Brasileira de Letras. Seus contos são
críticos da sociedade com um toque de humor negro. Sua linguagem é coloquial e
dinâmica. É colunista de jornais do país inteiro. Rodolfo também é um ótimo
biógrafo de ícones da cultura nacional.
O
mais difícil foi achar o seu endereço de e-mail. Pesquisou em tudo quanto era
site na internet. Comprou todos os jornais e revistas para os quais Rodolfo
escrevia as suas colunas. Não encontrava em nenhum deles. Procurou pela editora
que publicava os seus livros. Resolveu mandar e-mail à editora e aos jornais e
revistas para onde ele escrevia. Ninguém respondeu. De imediato.
Miguel
já estava decidido a ir trabalhar com o pai na loja de material elétrico quando
uma editora lhe respondeu fornecendo o e-mail de Rodolfo Oliva. Imediatamente,
Miguel escreveu uma mensagem com palavras humildes, respeitosas e elogiosas ao
escritor e seus trabalhos. Escreveu assim, apesar de ter lido apenas alguns
textos de Rodolfo e nunca ter comprado um livro seu:
Caro
Rodolfo,
Sou
aspirante a escritor e desejo muito impulsionar as vendas do romance que eu
escrevi: FATOS DE UMA SOLIDÃO, publicado pela editora Folhagens Editoriais –
www.folhagenseditoriais.com.br/newsshow.asp?menu=JI&idnot=34688&romance/livro=876.
Além, é claro, de publicar um novo livro.
Sou fã
dos seus contos, da sua crônica e do seu romance, que ainda não tive o prazer
de ler completamente, porque não dá para ler tudo na livraria, mas ainda
comprarei. O senhor escreve muito bem e o considero o melhor escritor em língua
portuguesa do mundo.
Estou
enviando alguns contos para você avaliar sem compromisso. Se puder me dar uma
pequena força, encaminhando os meus contos e o meu livro à sua editora, ficarei
eternamente agradecido.
Vou te
enviar um exemplar do meu romance, mas para isso, preciso que o senhor me
forneça o um endereço para enviar.
Grande
abraço
Miguel Souza.
(21) 2270-0510 – res.
(21) 9137-8197 – cel.
A
amiga de Brasília ajudou a revisar o e-mail. Só que a resposta também não veio.
Perdeu as esperanças. Concluiu que estava sonhando demais com uma resposta de
Rodolfo. Tocou a sua vida para a frente. Terminou a pós-graduação. Participou
de uma oficina literária. Reforçou o seu portfólio de contos.
Fez
amizade com a professora e dois colegas do curso. O chamariz da oficina foi a
publicação de um livro com os textos dos alunos. A antologia demorou para sair.
A professora prometeu lançar no início do ano seguinte. A oficina terminou no
final do ano. Ainda relançou, em um evento literário, o romance que tinha
escrito. Não teve sucesso. Mandou alguns contos para várias editoras.
Depois
do Natal e do ano novo, uma delas respondeu e ofereceu um contrato. A impressão
seria paga pelo autor. Miguel não queria pagar cinco mil reais para passar
pelas mesmas dificuldades de venda que teve com o romance. Além disso, também
não tinha mais dinheiro. Contava com a antologia para ter uma atividade no ano
que estava por vir.
Já
estava quase em junho quando o pai começou a lhe cobrar uma ocupação. Ele tinha
medo de morrer e deixar o filho desempregado e sem rumo na vida. Miguel dizia
que não conseguia emprego. O pai disse que ele tinha que procurar pessoalmente.
Miguel respondeu que não tinha a experiência exigida pela sua profissão de
jornalista. O pai insistiu que ele tem que procurar qualquer coisa. Até
trabalhar como faxineiro. Miguel se sentiu humilhado e iniciou uma discussão.
Falou verdades sobre a relação extra-conjugal do pai, que o agrediu exigindo
respeito, dizendo que era ele quem mandava em casa.
O
pai não levava muito a sério o sonho do filho se tornar escritor. O lançamento
do romance no ano anterior, para ele, fora apenas uma festinha de brincadeira.
Apenas a mãe lhe apoiava. Mas, de vez em quando, também o desestimulava,
jogando-lhe na cara que ele não quis dar o livro para a tia e as primas, que
ele não sabia divulgar e que era melhor que desistisse de ser escritor.
No
calor da discussão, o telefone tocou. Miguel não tinha nenhum clima para
conversar com ninguém. Mas aquele telefonema ele não podia rejeitar. Era
Rodolfo Oliva.
—
Miguel, gostei muito dos seus contos. Você escreve muito bem. Continue nesse
ritmo.
Soluçando
de tanto chorar, Miguel agradeceu como uma criança indefesa. Rodolfo notou.
—
Você parece triste. Aconteceu alguma coisa?
—
É que acabei de perder uma tia minha. Gostava muito dela. Disfarçou Miguel.
—
Que pena! Desejo os meus pêsames. Olha, eu vou falar com a minha editora e com
a Tribuna de São Paulo para, pelo menos, te chamar como colunista. Continue
escrevendo e muito.
—
Obrigado. Eu escrevi mais contos.
—
Que ótimo. Vamos fazer o seguinte? Quando passar a tristeza pela morte da sua
tia você dá um pulinho aqui em
casa. Vou te dar o meu endereço e aproveita para me dar um
exemplar do teu livro.
—
Obrigado.
Depois
que desligou o telefone, Miguel, invocado, disse que foi convidado pelo famoso
escritor Rodolfo Oliva para visitar a sua casa e avisou ao pai que ia crescer
sozinho com os livros que irá escrever. A mãe emocionou-se. O pai engoliu em
seco e desejou boa sorte.
Miguel
localizou facilmente o apartamento de Rodolfo em Niterói. Levou o
seu romance. Rodolfo o recebeu de camiseta, bermudão e chinelo. Era um senhor
bem barrigudo, barba por fazer e cabelos brancos. O acadêmico comprou o romance
do fã e ainda lhe deu autografados vários livros que escreveu. Apresentou a sua
mãe, uma velhinha de noventa anos, e a filha de vinte e dois anos, muito
bonita. Só não conversou com ela porque a moça estava atrasada para o trabalho.
Encomendou uma pizza. Disse que também tem uma história parecida com a dele.
Começou a trabalhar como jornalista apenas aos trinta e cinco anos e também
sofreu para encontrar o seu lugar ao sol no mercado editorial. Depois de ouvir
a história de Miguel, Rodolfo lhe deu um pequeno sermão, dizendo que o pai do
jovem está apenas preocupado com o futuro de filho e explicou que dificilmente
alguém vive exclusivamente da literatura.
Rodolfo
mostrou o fardão da ABL e Miguel pôde comprovar que o bordado era mesmo de
ouro. Deu dicas de escrita e inspiração. Ensinou a escrever crônicas.
Emprestou-lhe o computador. Miguel começou a escrever um conto. Mas não
terminou porque já estava escurecendo e ele precisava pegar a barca para o Rio
e não queria enfrentar a Praça XV no breu. Despediu-se do provável padrinho,
agradeceu o convite de estar em sua casa, as aulas de escrita e as dicas, entre
outras coisas pelas quais também se desculpou. Despediu-se carinhosamente da mãe
de Rodolfo. Este também agradeceu pela visita e pelo livro, que prometeu ler.
Na
barca, suspirou esperançoso de que Rodolfo Oliva pudesse apadrinhar a sua tão
sonhada carreira de escritor profissional. Chegou em casa. Não falou com os
pais. Colocou o disquete que ganhou de Rodolfo e terminou o conto que começou a
escrever na casa do ídolo. Enviou para ele.
Duas
semanas depois, chegou do banco onde foi fazer um depósito para o pai, ligou a
televisão e leu na barra rotativa de um canal por assinatura a notícia de que o
escritor Rodolfo Oliva, de sessenta e dois anos, foi encontrado morto em seu
apartamento em Niterói.
Miguel
esqueceu-se de anotar o telefone do ídolo durante a visita em sua casa. E o
número de Rodolfo daquela ligação de semanas atrás, fora substituído no
identificador de chamadas por outras mais recentes.
À
noite, assistiu à matéria completa de sua morte. Os legistas comprovaram que a
morte foi natural e provocada por um ataque cardíaco. Rodolfo já tinha duas
pontes de safena no coração por causa de outros infartos. O próximo seria
fatal, como acabou acontecendo.
Enquanto
a TV mostrava o depoimento de amigos, acadêmicos e outras celebridades, Miguel
se desesperou. Chutou a porta do armário e a cama. O ataque de fúria chamou a
atenção do pai, que o repreendeu pelo gesto. Miguel explicou que perdeu a
pessoa que poderia ajudá-lo em sua carreira de escritor.
O
pai o consolou, mas depois disse que ele precisava arrumar uma ocupação, um
outro caminho para fugir do obstáculo em seu sonho. Miguel não gostou do papo.
A fim de evitar uma nova discussão, decidiu dar uma volta na rua para esfriar a
cabeça, que estava tão quente que não o deixou perceber que um motorista bêbado
subia a calçada e o prensava contra o portão de aço de uma papelaria.
Além, é claro, de publicar um novo livro.
Miguel Souza.
(21) 2270-0510 – res.
(21) 9137-8197 – cel.
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