Conto de Gustavo do Carmo
Numa praça de um bairro do subúrbio carioca, quatro crianças, de seis a nove anos, aprendiam a andar de bicicleta. Uma quinta, de dez anos, já sabia andar. Três delas estavam acompanhadas dos pais. Um deles da empregada da casa.
O outro, Joãozinho, o segundo mais velho, com nove anos, e único negro da turma, estava sozinho. Ele custou a aprender. Sem nenhuma proteção no corpo como capacete, joelheira e cotoveleira, caiu quatro vezes, machucando cada membro do corpo, mas se levantou. Na quinta, conseguiu dar cinco voltas inteiras em volta da praça. Sem cair. Completamente sozinho.
Charles, menino rico de oito anos, acompanhado da empregada, que não gostava de ser chamada de empregada, estava todo paramentado com os tais itens de segurança. Filho de jornalistas e militantes de esquerda (o pai diretor de jornalismo e a mãe repórter da maior emissora de televisão do país), deu duas voltas ao redor da praça. Sua bicicleta ainda tinha rodinhas de apoio. Sempre apoiado pela serviçal doméstica, que quase morreu de cansaço.
Fernandinha estava somente de capacete. Sua bicicleta não tinha rodinhas, a exemplo da de Joãozinho. Teve todo apoio do pai, que a segurou no início de quatro tentativas frustradas, pois ela caía sempre. Na primeira, ralou o joelho esquerdo após o pai soltá-la e foi aos prantos. O pai incentivou-a a continuar, olhando em seus olhos, dizendo que a queda na primeira tentativa machuca, mas é normal e ela consegue se reerguer. Após se acalmar do choro, tentou a segunda e voltou a se machucar, ralando o cotovelo desta vez. Chorou um pouco e voltou rápido para a terceira tentativa, na qual caiu novamente, torcendo o pé direito. Na quarta travou de medo e dor. Finalmente, na quinta, o pai nem a segurou. Deu uma volta sozinha, até cair novamente, por causa da dor, desta vez, sem se machucar. Queria andar de novo, mas o pai achou melhor levá-la ao hospital por causa da torção.
Pedrinho, o mais novo, com seis anos, estava na praça com o pai e a irmã, Patrícia, a mais velha, que já sabia andar de bicicleta. Mas seu pai estava lendo jornal. De vez em quando, dava uma olhada no filho, que não saía do lugar.
— Vamos, Pedro! Você insistiu tanto pra vir aqui e vai desistir?
— Eu não consigo, pai! Me ajuda!
— Não, meu filho! Você tem que aprender a fazer as coisas sozinho! Olha como é que a sua irmã se virou! — Gritou, não porque estava brigando com o filho, mas porque estava a três metros de distância. Só se reaproximou quando viu que Pedrinho estava com rodinhas na bicicleta e com os pés fora dos pedais, empurrando a bicicleta com o corpo. Aí que ele já foi brigando, com a chave de fenda na mão.
— EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ VAI FICAR ANDANDO DE RODINHAS NA BICICLETA E SEM OS PÉS NO PEDAL! VOU TIRAR ISSO AÍ! VOCÊ VAI TER QUE APRENDER A ANDAR SÓ COM AS DUAS RODAS.
— Ah, não! Pai! Deixa!
— Não! Bicicleta tem que ser andada só com duas rodas. Disse, enquanto desparafusava as rodinhas.
Patrícia aproximou-se, vinda de mais uma volta pela praça. O pai pediu.
— Filha, ajuda o seu irmão!
— Eu não! Eu aprendi sozinha, aquele menino ali (apontando para Joãozinho) aprendeu sozinho e ele vai ter que aprender sozinho!
— Está vendo, Pedrinho?
Sem as rodinhas na bicicleta e também sem proteção, pois o pai achava capacete, joelheira e cotoveleira muito caros para nunca serem usados, Pedrinho tentava, tentava e não saía do lugar. Caiu e se machucou. Numa delas, bateu com a cabeça e ralou o joelho. Chorou copiosamente. Mais pela humilhação de não ter apoio do pai do que pela dor, embora não soubesse o que era esse sentimento. De vez em quando, Paulo, o pai, o observava. E insistia, voltando os olhos para o jornal, sem sequer ter visto a queda do filho.
— Tenta mais uma vez!
Mais uma vez, Pedrinho tentou. E mais uma vez, caiu. Agora machucando a boca. Desistiu. Foi em direção ao banco da praça onde estava o pai e anunciou:
— Eu quero ir embora!
Bufando resignado, Paulo concordou.
— Está bem, meu filho! Se você não tem competência para aprender a andar sozinho de bicicleta o problema é seu! Espera a sua irmã voltar que a gente vai.
O menino pegou o jornal para ler os quadrinhos enquanto esperava pela irmã. Mas não conseguiu se concentrar porque teve que ouvir os sermões do pai:
“Você tem que aprender a se virar sozinho!”. “Eu aprendi assim. A sua irmã também aprendeu sozinha. Todo mundo aprende”. “Você tem que me ouvir!”. “Se você não acordar para a vida, seu corpo vai crescer e os outros vão pensar que você é retardado!”.
— Mas ele já é! Disse a irmã, que chegava do passeio.
— Eu não sou retardado! Defendeu-se Pedrinho!
— É, sim!
— Não sou!
E os dois irmãos começaram a trocar tapas. Para acalmar a situação, Paulo interveio.
— Não, Patrícia! Ele ainda não é! Mas vai ser se não aprender a andar de bicicleta. Quer tentar mais uma vez?
— Já disse que não!
— Não quer aprender? Vá se foder, então! Vamos embora, que ainda tenho que ir trabalhar.
— Hoje é domingo, pai! Você vai trabalhar hoje?
— Eu fiquei de cobrir o dia do Valdir. Disse, gaguejando.
— Mas você foi trabalhar no domingo passado e só chegou em casa na segunda à tarde.
— Ah, Patrícia! Não vem com esse assunto, não, porra! Vamos embora!
E Paulo e os filhos foram embora da praça, com o pai, de mau humor, resmungando, soltando palavrões e dando sermão no mais novo.
***
Passaram-se uns trinta anos. Joãozinho cresceu, formou-se em Medicina. Tornou-se um cirurgião de sucesso. Passou a levar os filhos na área de lazer do condomínio na Barra, onde morava e os ensinou a andar de bicicleta. Com todo o apoio inicial do pai, os filhos aprenderam a andar sozinhos.
Mimado, Charles não terminou o ensino fundamental. Mesmo assim, ficou rico como influenciador de vídeos na internet. Cresceu arrogante, comunista e hipócrita como os pais. Pagava inúmeros assessores para fazer diversos serviços para ele, até escrever um livro. Era vizinho de João, mas, como na infância, mal se conheciam. Homossexual, adotou um menino com outro homem, que, de vez em quando, o levava para andar de bicicleta no condomínio. Na maioria das vezes, era a empregada, a mesma dos tempos em que Charles era menino, já idosa e resignada por ser chamada de empregada. Prestes a se aposentar, teve um enfarte e morreu, mesmo tendo sido socorrida por João, por causa do cansaço após andar pelo condomínio inteiro com o filho do agora patrão, que ela tinha ajudado a criar.
Fernanda virou jogadora de vôlei. É outra que ficou rica e famosa. Também teve todo incentivo do pai, da mãe e do técnico do time onde joga, que acreditou nela e a escalou, convocando-a também para a seleção brasileira. Isso porque ela tem Síndrome de Asperger, diagnosticada aos doze anos. Não teve filhos, mas leva o priminho mais novo para passear no mesmo condomínio da Barra.
Patrícia formou-se em engenharia química, trabalha em uma estatal de petróleo, tem alto salário e mora com o marido e o filho no mesmo condomínio da Barra da Tijuca, para onde foi a maioria das crianças crescidas da praça. Mandou a empregada ensinar o menino de cinco anos a andar de bicicleta porque não tem tempo livre. Mesmo assim, mima bastante o garoto.
Só não ostenta mais riqueza porque paga um serviço de cuidadoras de idosos para a mãe, que sofre de Alzheimer e já está fora da realidade. A senhora e o pai ainda moram no mesmo bairro de subúrbio daquela praça onde ela aprendeu a andar de bicicleta com o irmão, Pedrinho, que também vive com os pais e só foi diagnosticado com autismo aos 40 anos. Mesmo assim, é incompreendido pelo pai e a irmã, que negam a sua limitação intelectual, achando que ele inventa a deficiência para fugir das responsabilidades e levar vantagem. Para a família, Pedrinho só é autista na hora de ser debochado ou sentirem pena dele pelas suas costas.
Formado em jornalismo, nunca exerceu a sua profissão oficialmente. Sempre travava nas entrevistas de emprego. Em algumas, saía até humilhado. E, às vezes, humilhando também. Só ouviu sermão dos pais, tios, primos, avó e até da empregada. Paulo ainda tentou dar um empurrão grosseiro, o obrigando, com chantagens financeiras, a prestar concurso público, mas nunca foi classificado porque não tinha paciência para estudar, muito menos queria alimentar máfia de cursinhos preparatórios.
Só quer “brincar” de administrar um blog sobre veículos (que não dirige, porque foi reprovado duas vezes na direção e também desistiu) e contos com poucas visitas, ambos, praticamente, sem nenhum retorno financeiro de publicidade, área na qual Pedrinho também é formado. Tentou ser escritor, mas escreve muito mal.
Por falta de apoio. Nunca conseguiu uma namorada e não tem, sequer, amigos reais. Nos virtuais ele não confia mais desde que foi traído por um de Teresópolis, que o plagiou. Não visita o sobrinho na Barra porque não gosta de crianças (e o menino ainda é educado para não gostar dele) e também foi humilhado pela irmã e o cunhado quando esteve lá uma vez, quando sua mãe ainda era lúcida.
É sustentado pelo pai, que inclusive lhe pagou um plano de previdência e o contratou como funcionário de sua loja de auto-peças, onde nunca quis trabalhar porque não gostou do ambiente, da cidade e também não teve apoio.
Atualmente, sofre com a paranoia de economia de Paulo, que o tortura psicologicamente para cortar custos, mas paga tudo pra amante e preferiu comprar terrenos duvidosos na Baixada Fluminense a se mudar para a Barra, onde mora Patrícia.
Assim como desistiu de andar de bicicleta, dirigir e escrever por falta de apoio e compreensão do seu autismo, inclusive se tratar contra a limitação, Pedrinho também não tem motivação para trabalhar (em qualquer coisa) e se libertar financeiramente. Além de egoísta, se reconhece orgulhoso, preguiçoso e tem fama de desistir muito fácil dos seus objetivos.
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