Ok, a minha hora chegou. O grande dia está aqui.
Esse saco translúcido de seda, que não parece mas é forte, é a bolsa amniótica, que me contém, junto com o fluido que tem me protegido de todas as desgraças do mundo lá fora, o qual estou prestes a conhecer. Não posso dizer infelizmente, pois se eu passar mais tempo aqui vou acabar prejudicando minha mamãe. E não posso fazer isso com ela porque foi a primeira pessoa que eu conheci e, inevitavelmente amei. Vamos ser sinceros, como eu não poderia amar essa mulher?
Quando consigo romper a ranhura que meus dedos minúsculos e minhas unhas macias causaram no saco, eu ouço alguém lá fora dizer “A bolsa rompeu!”. Essa frase eu ouvi muitas vezes na voz do médico que consultava mamãe, nas conversas dela com minha tia e nos vídeos e podcasts que ela vivia ouvindo nos últimos 9 meses.
Quando abro caminho e aquela proteção aquosa vem atrás de mim e me abandona, percebo aqui que não tem mais volta. Agora é enfrentar. Evito pensar no conforto que vivi nas últimas semanas e em todo o esforço e sofrimento que terei a partir de agora para sobreviver a esse mundo terrível (Eu soube que ele é terrível por causa das notícias da TV. Parece que o mundo não tem um suspiro de alívio há mais de 14 bilhões de anos. Algo assim), e mantenho o foco no fato de que eu vou conhecer mamãe.
Quero ver seu rosto, sentir o cheiro de seus cabelos e a maciez de sua pele. Não quero mais ter que ouvir meu tio dizer o tempo todo que ela é cheirosa, eu quero sentir com minhas próprias narinas em crescimento.
Tudo bem, eu não vivi o suficiente ainda para ter opinião sobre tudo, mas me dê um pequeno crédito. Desde que meu sistema nervoso passou a se formar que eu vivo com o cérebro em efusão. Além disso, dá para aprender muito pelo Youtube ou por meio de podcasts. Basta saber procurar. Ou, no meu caso, ter uma mamãe que saiba.
Eu lembro que uma noite, enquanto mamãe via vídeos pelo Youtube, ela dormiu, mas eu continuei ouvindo e começou uma pequena discussão sobre um tal de paradoxo do navio de Teseu. Aquilo me fez pensar bastante e agora, me sinto como um pequeno barco indo para a sua primeira viagem, me aventurando pelos mares desconhecidos do mundo lá fora. E do jeito que as coisas aqui dentro estão, as paredes do corpo de mamãe me comprimindo e se dilatando, acho que estou passando por minha primeira tempestade em alto mar.
Estou me mexendo para me livrar da membrana embrionária e isso parece ser a vela de minha embarcação. Na verdade, a embarcação sou eu. Sou marinheiro de primeira viagem, portanto sou desajeitado e atrapalhado e 3 camadas ainda parecem ser muita coisa para mim. 3 dimensões já podem começar a me causar vertigem. Não sei bem o que está acontecendo, mas as paredes ao meu redor, a constituição da minha mãe, começam a tremer, se fecham sobre mim. O que eu ouço é minha mãe gritar. Tudo aqui dentro está se revolvendo e eu só imagino como estão as coisas lá fora.
O barco que eu sou, essa embarcação novinha em folha, mas que com o passar do tempo, começará a ser castigada pelo tempo, pelo vento, pelas intempéries da vida. Células serão substituídas, órgãos passarão por novos processos. Pele será descartada junto de cabelos e também ganharei novos. Tudo o que eu sou vai se transformar em descarte, deixando pedaços pelo caminho e escombros por toda parte. Ainda serei eu?
Me pergunto se um dia serei escritor. Pelo que pude notar do que conheci desse mundo por meio de mamãe, os escritores estão acostumados a criar sua arte em ambientes confinados, então eu já tenho essa experiência.
Parece que aí vem um maremoto. Minha cabeça é espremida. Sou sugado para baixo e para trás. Isso tudo acontece violentamente e meu corpo é comprimido no mar revolto que é o corpo de minha mãe.
Então ondas e mais ondas, de gritos, de contrações, gemidos e súplicas. Não sei se isso que estou sentindo agora é o que minha mamãe sempre chamou de enjoo, mas deve ser. Aparentemente eu estou prestes a ser ejetado. Meu amigo, o cordão umbilical, começa a se desenrolar atrás de mim.
Outra coisa que tenho em comum com os escritores é o ego. Preciso que toda a atenção seja dada a mim, ainda mais depois que eu nascer, ou então farei escândalos. Pelo que pude notar de meu primo de 2 anos, o Alex, ele faz birra, chora, esperneia, até que alguém lhe entrega total atenção e se fizer qualquer coisa, por mais idiota que seja, todos irão aplaudir. Que é a mesma coisa que acontece com os escritores, eu soube de uma conversa entre mamãe e o Max.
Não há nada de milagre aqui, como ouvi várias vezes de várias pessoas tanto presentes como por alguma mídia, isso é apenas resultado de um processo evolutivo. O que há aqui é uma força descomunal da natureza. E parece que ela está meio irritada comigo. Acho que ela quer me achatar, me expulsar do corpo de mamãe com violência. Talvez sinta algum prazer sádico em me apresentar ao seu mundo o mais rápido possível.
O que eu sou, na verdade? Serei o mesmo daqui a 30 anos? As pessoas de fato mudam, ou elas apenas se repetem? Meu corpo, sem dúvidas, mudará, mas e aquilo que eu sou? Porque eu não sou o meu corpo, eu sou um conjunto complexo de coisas, de processos químicos, de detalhes e peculiaridades, então dizer que meu corpo sou eu é me limitar demais. Eu, a embarcação de Teseu, após tantas mudanças, continuarei sendo eu? Com todos os destroços que eu deixar para trás, daria para construir outro de mim?
Enquanto avanço, percebo onde estou chegando. Esse orifício por onde sairei, é o mesmo que alguns homens já entraram e tentaram permanecer. O mesmo que outros desejaram ansiosamente entrar, mas não conseguiram. O que serviu de prazer para mamãe e alguns homens, agora é minha entrada para esse mundo novo, ao qual tenho que desbravar. Esse canal agora é minha passagem. Eu, navio, atravessando o meu Canal do Panamá.
Sou um navio de informações genéticas, avançando lentamente, imponente, transportando uma carga de informações milenares, que tem perpetuado minha espécie como a dominante desse planeta. Os homens se orgulharam de entrar por esse canal, mas nenhum chega aos pés dessa imponência, dessa apoteose que é o nascimento.
Eu-Navio, deslizo em sons ásperos e pegajosos.
Então, por um momento, tudo para.
E começa.
A primeira coisa que sinto ao nascer, é dor. Tudo dói. Cego, surdo, mudo, apenas o que eu sinto é o desespero e é por isso que eu choro.
Meu amigo, o cordão, é sacrificado e cumpre o seu papel. Fiel amigo.
É isso. estou respirando. Não é tão ruim. Há tantos cheiros que vou demorar a entender essa confusão. Tudo brilha e tudo faz som e as sensações são outras inúmeras ondas quebrando no mar que é minha vida. Procuro o som que me acompanhou durante tanto tempo e não o acho. Até que após um tempo o ouço, porque meu ouvido agora está bem próximo dele. O coração de mamãe.
Cheguei a esse mundo e agora Sou.
Mas o que eu quero saber é:
Vou continuar sendo?
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