Olá, meu nome é Alice e eu
tenho 16 anos.
Bem, a maioria de vocês deve ter
entortado a boca e pensado “nossa, uma adolescente, ela não deve
ter muito de útil a falar”. Mas ora, você deveria me dar algum
crédito. Não é porque sou uma millennial que eu não posso
apresentar nada de interessante. Claro que você pode largar isso
aqui e ler algo possa te deixar mais confortável, mas eu já vou
avisando que se sair perderá a história mais extraordinária que já
viu esse ano. Bem, talvez não a mais e sim uma das, enfim.
Mas eu quero começar direito,
pois essa história será contada enquanto for se desenrolando. É
isso mesmo, você pode dizer que é uma live, a maravilha da
tecnologia. A câmera vai mudando de quadro, de mim para as outras
pessoas, para os outros ambientes. Então vamos lá, vamos começar
do início. Essa é a minha aventura de Natal.
“um”
Eu devo dizer que realmente estou
excitada.
“dois”
Ajeita o cabelo, faz bico para a
câmera e depois sorri.
“três”
Olá, meu nome é Alice e eu
tenho 16 anos.
A ceia de Natal será na nossa
casa porque vovó mora com a gente. Ela já está com 89 anos, dá
para acreditar? Teve 13 filhos. 3 nasceram mortos. Dois morreram em
um desabamento enquanto trabalhavam e dois em um acidente de avião.
Ano passado sua filha mais velha morreu de um câncer nos ossos. A
história toda foi terrível e triste, mas isso fica para outra
oportunidade.
Minha mãe, a caçula dos 5
filhos que sobreviveram, decidiu ficar cuidando da minha avó. Meus
tios só aparecem aqui para uma visita justamente nesse período,
todo ano. Então todo ano nós temos essa confraternização. Você
não pode dizer que isso tudo é mera falsidade. Olhe para esses
sorrisos das pessoas que estão chegando. Será falsidade mesmo?
Miguel costuma dizer que o que
nos diferencia dos outros animais, mais que qualquer outra coisa, é
a capacidade de sermos hipócritas.
Miguel é cheio de reflexões e
informações úteis. Ele me lembra Tyler Durden.
“Oi, Lice!”
Essa é a Karla, minha prima.
“Oi, Karla!”
Lice é o apelido que meus
parentes me deram e só não é pior que Licinha, mas como sou apenas
uma adolescente bobona, não tenho autoridade de reivindicar meu
direito a ser chamado pelo nome que me deram e registraram no
cartório. O jeito é cair em resignação.
Sim, eu conheço a palavra
resignação.
Karla é a filha mais nova de
minha tia Judite. A mais velha não virá, pois está fazendo
intercâmbio em Portugal e decidiu ficar por lá mesmo, disseram,
para evitar os gastos. O caso é que essa família se tornou assunto
das conversas dos últimos meses por causa do que aconteceu. Ora,
esse assunto até mesmo nublou a decisão de me tornar vegetariana
duas semanas atrás. Pensei que seria um estardalhaço, mas o eco do
acontecimento anterior ainda colocava os holofotes sobre si mesmo.
O que aconteceu foi que minha tia
encontrou o marido, sim, aquele ali com um bigode ridículo e os
dentes tão para frente que deixam ele ainda mais cômico, ela o
encontrou em um motel com um casal. A revelação foi que o marido da
minha tia é bi. E a estava traindo com dois amigos. E por mais que a
família tivesse tentado abafar isso, não adiantou. Se tornou tema
constante das conversas de jantares. O que minha tia alegou foi que
era um casamento já longo para ruir assim de uma hora para outra. Ou
seja, ela escolheu a comodidade de um casamento que já durava 13
anos a abandonar tudo e tentar outra. Então agora todos, não apenas
eles, mas toda a família, mesmo que converse sobre isso várias
vezes, agem, um para o outro, como se nada tivesse acontecido.
Eu estou lendo Lovecraft e ele
tem razão quando diz que nosso maior medo é o medo do desconhecido.
Por isso minha tia prefere engolir a angústia pelo resto de sua vida
como em conta-gotas que partir para outra, para esse lugar
desconhecido que ela não está nem preparada nem disposta a
enfrentar.
Bem, a vovó sabe do acontecido,
mas ela espanta o assunto com uma mão, como se afastasse uma mosca,
jogando isso ao amontoado de problemas que o tempo lhe proporcionou,
ignorando.
Vejam quem está chegando agora.
A primeira coisa que você vê é a barriga. Todos o chamam de Seu
Barriga e dá para perceber a razão. Ele é sogro de meu tio
Henrique. Pai de filha única e viúvo, ele não tem para onde ir
hoje e nos últimos 6 anos, então sempre está aqui conosco. A
história dele é uma história engraçada.
Ou trágica.
Isso depende de quem escute ou de
quem conte, acho.
Ele era motorista de ônibus há
uns 5 anos. Seguindo sua rotina ele acordava cedo, ia para a
rodoviária e passaria as próximas 12 horas fazendo o mesmo
percurso, pegando as mesmas pessoas, ele e sua enorme barriga bem
junto do volante.
Só que naquele dia em especial,
ele gosta de frisar isso porque foi justamente no dia em que o mundo
parou por causa de um tsunami que atingiu algum daqueles países
pequenos que a gente só sabe que ficam perto da ìndia. Naquele dia
ele terminou sua xícara de café fraco na cozinha da rodoviária,
pegou sua pochete e subiu no ônibus. Aí quando ele sentou sentiu
uma espécie de sucção, como se algo tivesse chupado sua bunda. Diz
ele que assim que sentiu isso e tentou levantar, não saiu.
Seu Barriga ficou entalado entre
a cadeira e o volante. Estou falando sério. A viagem do ônibus foi
cancelada, os passageiros tiveram que esperar outro veículo, a
equipe de manutenção foi chamada e tiveram que literalmente
arrancar a cadeira para resgatar o Seu Barriga daquela situação
ridícula.
Depois disso ele se aposentou,
graças à ajuda do dono da empresa, seu amigo.
Meu tio Henrique, sua esposa e
meus dois primos surgem logo atrás do corpanzil do Seu Barriga.
Bárbara, a esposa de meu tio, é
linda. Quando eu ficar mais velha gostaria muito de ser tão bonita
quanto ela. Não sei se ela percebe esse meu desejo, pois toda vez
que me vê fala que eu estou bonita, o que eu não concordo.
“Lice, tudo bem?”
Tio Henrique se aproxima de mim e
assanha meus cabelos. Só falta dizer “boa garota”. Bárbara me
sorri e faz o elogio de sempre. Ambos vão até a cozinha deixar o
que trouxeram enquanto meus primos ficam alheios de tudo ao seu
redor, imersos nos tablets que carregam nas mãos. Eu nem tento algum
contato.
Com as cabeças curvadas e
iluminadas pela luz azul e ao redor do enorme corpo que se arrasta
que é Seu Barriga, eles parecem duas luas orbitando um planeta.
Ali, com 3 controles remotos na
mão saindo da cozinha é Papai. Ele recebe um forte tapa nas costas
de tio Henrique e falam alguma coisa que eu não consigo ouvir. Papai
vem na minha direção, suas sobrancelhas se unindo.
“Alice, seu cabelo tá
assanhado.” e segue para a sala, para conectar todo o home de que
ele tem tanto orgulho.
Quando a porta se abre novamente
uma miniatura do Flash começa a correr pela casa. Não estou
brincando, é mesmo o Flash tamanho bolso. Tiago, meu primo, é fã
do herói e faz birra eterna se não deixarem ele usar a roupa sempre
que quer. Seus pais, tio Allison e sua esposa, Mônica, surgem em
seguida, com expressões de desculpas no rosto que eu sempre acho
engraçado, pois parecem sempre estar apontando para o filho e
dizendo “desculpem, é nosso”. Na verdade, a Mônica, eu sempre
achei, ela tem o sorriso de quem está sendo ameaçado por uma arma e
acha que é brincadeira. No colo ela traz Alliny, o mais novo membro
da família, que logo é cercada por todos ao redor.
Está vendo essa criaturinha? E
pensar que eu já fui assim, tão frágil, tão inocente, assim
mesmo, com essa cabeça careca enorme e essa pele toda enrugada que
todos acham linda e perfeita. Dizem que os bebês tem cheiro de
leite, mas toda vez que eu pego Alliny eu só sinto cheiro de cocô.
Ai meu Deus, a Belinha bateu o
focinho na perna de Seu Barriga.
O que eu me pergunto todos os
anos é: Por que ninguém teve a ideia de fantasiar o Seu Barriga de
Papai Noel?
Belinha é nossa lhasa apso cega.
Ela já é velha. Pertenceu a Mamãe há algum tempo e até onde eu
saiba está conosco desde sempre. Ela anda bem devagar, mas como já
não enxerga mais nada, sempre está batendo o focinho em algum móvel
ou nas nossas pernas.
Me abaixo para fazer carinho
nela. Ela funga, faz um muxoxo e em seguida caminha lentamente para
sabe lá onde.
Belinha não possui nenhum
projeto de vida.
Ainda acocorada eu sinto alguma
coisa estranha, na minha bunda. Então percebo que é o mini Flash. O
pirralho está passando a mão na minha bunda. Eu me levanto pronta
para dar um carão, mas ele corre e desaparece, como todo bom
velocista deve fazer.
O burburinho das vozes é
quebrado porque Papai finalmente ligou o som, mas acima da música
todos falam alto uma uníssona reclamação, pois o que toca é a
música Então é Natal, da Simone. Após risadas e mais risadas,
Papai explica que era uma pegadinha e passa a tocar alguma música
clássica de algum compositor morto que sofreria em ver que sua
criação agora está remixada digitalmente.
Uníssona, que palavra legal.
Bem, vamos para a sala de jantar.
Lá que é onde tudo acontece.
O Miguel fala que a mesa da ceia
de Natal é como um altar moderno onde as pessoas fazem o sacrifício,
o animal morto no centro, e comem e bebem. Para que fosse uma
perfeita festa pagã era só esquecer Jesus e começar uma orgia, ele
diz.
Mamãe está ali com as outras
mulheres. Ora, eu não tinha percebido que Marta tinha chegado. Ela é
esposa de tio Bernardo. Estranho que não vi seus 3 filhos. Então
notei que eles estão no quintal.
“Oi, tia Marta. Por que eles
tão no quintal?”, eu aponto para as crianças.
Marta olha para mim com seus
belos olhos claros hipnotizantes.
“Oi, meu bem. Eles tão se
divertindo com o drone que seu tio deu a eles de Natal.”
Um drone. Já prevejo que parte
do assunto das conversas na ceia será:
“Quando eu tinha a idade de
vocês a gente se divertia com qualquer besteira.”
“Lembra daquele carrinho que a
gente fez com caixas de maçã?”
“Mamãe fez duas bonecas pra a
gente com saco de estopa...”
Li em algum lugar que um filósofo
disse que a gente não pode entrar no mesmo rio duas vezes e que,
portanto, a ideia de rotina é estranha. Mas não deixa de ser
previsível, isso eu admito.
Olhem só, estou filosofando.
Mas cada pessoa nesse mundo que
tenha familiares tem essas histórias para contar. Nem todas são
interessantes, obviamente, mas são dignas de ser mencionadas.
Miguel cita Ana Karenina, “toda
família infeliz é infeliz à sua maneira” etc.
Não vejo muita graça em drones.
Eles me parecem a versão atual das pipas, com o diferencial de que
ao menos as pipas te davam uma sensação maior de controle, sem
falar no cerol que passavam nas linhas para cortar outras ou o
pescoço de alguém, como diziam lendas urbanas que eu ouvia.
Bem, a mesa. Aqui está uma
vitrine de tudo aquilo que oscila entre o maravilhoso e gostoso e o
que engorda, que celebra o capitalismo. Uva passa, elas estão em
todo lugar. Assim como as frutas cristalizadas. Eu, particularmente,
não entendo o ódio que algumas pessoas nutrem por elas, mas gosto é
gosto. O fato é que aqui tem de tudo o que uma ceia de Natal
precisa, só faltando o peru, que ainda está no forno. E isso tudo é
uma comemoração religiosa, mesmo que não pareça.
Miguel me falou da Missa do Galo,
que é celebrada à meia noite do dia 24. Ele lembra das grandes
catedrais, dos templos construídos e me faz perceber como é grande
a criatividade do ser humano, mesmo que seja para a glória de algo
que não existe.
Não, eu não sou ateia. Apenas
sou um pouco mais cética que minha família e não acredito muito na
existência dos relatos do Novo Testamento. Se você quiser conversar
sobre os essênios a gente pode marcar um dia para tomar café.
“Licinha!”
A voz é debochada, agressiva,
mesmo que o tom seja de uma garota de 9 anos. É Anne, minha prima,
filha de meu tio Roberto, cuja esposa os abandonou para viver em uma
comunidade hippie barra indie barra budista barra new age. Sim, ela
simplesmente abandonou a família para encontrar a si mesma vivendo
sem tecnologia, sem alimentos nocivos e sem a responsabilidade de ser
mãe e esposa. Da última vez que teve notícias dela, meu tio
Roberto falou que estava produzindo um CD de músicas imersivas para
alinhamento dos chacras. Como ela vai utilizar da tecnologia das
gravadoras, gravar o CD, vender e, talvez fazer pequenos shows para
divulgação é uma coisa que ainda não entrou na minha cabeça no
contexto de desapego de coisas materiais, mas Miguel me falou uma vez
que toda religião, por mais conservadora que seja, consegue
encontrar alguma brecha, mesmo minúscula, para responder ao pai de
todos os deuses: o Dinheiro.
Tudo bem, Anne. Ela tem 17 anos e
por causa disso acha que é extremamente mais velha, mais inteligente
e mais madura que eu.
“Oi, Anne.”
“Você não cresceu nada.”
Ela fica ereta ao meu lado, para
mostrar a todos e a ninguém que sua cabeça ultrapassa poucos
centímetros a minha. Isso ela faz toda vez que nos encontramos. Não
sei se ela já percebeu. Na verdade, eu já começo a acreditar que
ela é uma ilusão criada pela fumaça do cachimbo de vovó e que
meus pulmões adoram.
“Como vai André?”
Ela fecha a cara e caminha como
se quisesse quebrar o piso até a cozinha.
André foi o cara que deixou ela
há dois meses. Se ela não lembra de já ter medido nossas alturas
eu posso fingir que esqueci que ela foi chutada também.
Tio Roberto aparece com algumas
sacolas na mão, totalmente ignorado pela filha. Eu me aproximo para
ajudar. Sim, ele é o mais novo dos filhos homens de vovó, mas suas
têmporas já mostram cabelos brancos que, sua mãe diz, são herança
do pai. Ele me sorri e se aproxima para me dar um beijo na bochecha.
Ele é o tio com quem mais converso e por vezes eu tenho a impressão
de que se ele pudesse escolher, eu que seria sua filha.
“Tudo bem, tio?”
“Tudo, e você?”
As duas frases mais constantes em
qualquer relação humana e que não necessitam de uma continuação,
pois o silêncio seguinte é reconhecido universalmente.
Bem, aparentemente estamos todos
aqui.
Papai está pedindo para que o
Flash em miniatura não mexa com Belinha. Pobre cachorra. Seu Barriga
está na poltrona de papai e eu acho que ele não vai mais conseguir
levantar dali.
Sério, ninguém nunca pediu para
ele ser o Papai Noel? As crianças iriam adorar.
A poltrona, na verdade parece
engolir ele e a imagem toda é extremamente engraçada.
De onde eu estou dá até para
ouvir a respiração dele, parecendo Darth Vader.
“Alice, me ajuda aqui.”
Mamãe está com uma travessa de
vidro cujo conteúdo deve ser escondidinho de batata. O cheiro é
ótimo. Pego a travessa e vou colocar num canto da mesa.
“Você pode subir e ajudar sua
avó? Ela já deve ter terminado de se vestir.”
“Vou, mas antes sorria para a
câmera?”
“O que?”
Minha mãe olha para mim com a
expressão no rosto de que eu mais gosto. Ela não é bonita como
Bárbara, mas possui uma beleza só sua. Seus olhos negros, suas
sobrancelhas finas. Ela parece estar sempre maquiada, mesmo que não
esteja. Então ela me encara e seu rosto mostra confusão. Duas
linhas verticais entre as sobrancelhas. Um sorriso vai crescendo na
sua boca. Até ela perceber, entender, se dar conta, de que eu estou
rindo dela.
“Como eu sempre caio nessa?”,
ela me pergunta dando um tapinha no meu braço.
Eu a abraço e lhe dou um beijo
longo na bochecha.
“Sai logo daqui.”, ela fala e
eu corro subindo as escadas.
Miguel fala que, no tempo moderno
em que estamos, em que um niilismo cada vez mais útil vem crescendo,
os idosos ainda se mantém como relicário das famílias. Ainda
existe um respeito reverencial por eles. Não é em todas as
famílias, eu acrescento ao pensamento dele, mas sim, isso é
verdade.
Miguel diz que os idosos, pais de
muitos filhos, avós de muitos netos, funcionam hoje como os
sacerdotes de antigamente. Eles são uma espécie de mediadores entre
os humanos e uma força maior que eles. Alguns acham que é Deus, diz
Miguel, eu acho que é a Morte.
Quando atravesso a porta
entreaberta do quarto de vovó ela está de pé, o corpo levemente
encurvado para a frente, de frente ao espelho, trajando um vestido
florido de cor predominantemente rosa. Os cabelos brancos como a neve
estão presos em um coque perfeitamente moldado. O reflexo dela me
sorri.
“A senhora tá pronta?”
Suas mãos aracnídeas tremem um
pouco quando ela coloca uma mecha rebelde para trás de sua orelha
grande e enrugada.
“Acho que sim.”
A pele de seus rosto é como um
deserto cujas linhas faciais são pegadas que o tempo deixou. Eu me
aproximo e ela agarra meu braço com as duas mãos.
“Nossa, mas a senhora tá
cheirosa, hein?”
“Eu sempre fui cheirosa.”
Rimos juntas e caminhamos
lentamente para descer as escadas. Ela se agarra fortemente a mim,
mas ainda assim eu sempre tenho o mesmo receio. Ela é tão magrinha,
tão frágil, que tenho a impressão de que a qualquer momento ela
vai quebrar.
“Todos estão aí?”
“Tão sim, vovó. Inclusive o
Seu Barriga.”
“Nossa… Se você tivesse
conhecido seu avô. Ele nunca teve barriga e olha que a cerveja do
domingo era sagrada.”
“Pelas fotos eu vi que ele era
bonitão.”
“Muito. Mas, como todo homem,
tinha o mesmo defeito, a sua aparência resguardava algo de ruim
dentro dele.”
Essa também seria outra história
para outra oportunidade. O que sei é que além de bater na vovó o
vovô abusava da filha mais velha.
Quando chegamos ao último
degrau todas as cabeças se viram para nós. Eu digo ao ouvido de
vovó que volto já e subo as escadas novamente.
Vou buscar o Miguel que está no
meu quarto.
Miguel fala que quando as coisas
mais importantes acontecem, quando as coisas mais grandiosas quebram,
não fazem barulho. A pior destruição acontece em silêncio.
Ele me mostrou ontem o frasco com
bolinhas de cor chumbo. Eu fiquei olhando e sacudindo o frasco na
minha frente enquanto ele me falava de seu plano. Da alegria que
desencadearia em todos por causa da ideia que tivera e que eu deveria
executar.
Lá embaixo o burburinho se
intensifica.
Eu passo pelos quartos e quando
chego no meu a porta está fechada. Não lembro de ter deixado
fechada, talvez tenha sido o Miguel. Quando abro a porta um cheiro
forte de abafado me atinge o rosto. Eu também não lembro de ter
deixado a janela aberta.
“Miguel?”
Não recebo resposta porque
Miguel é cheio de suas peculiaridades. Ele só fala quando precisa
falar e nunca responde de imediato uma pergunta porque ele deseja ter
controle sobre tudo relacionado a si. Ele acha que responder quando
as pessoas querem meio que causa uma ruptura em sua própria
liberdade.
Ele está deitado na minha cama.
Abro a janela e uma lufada fresca
e gostosa de vento entra no quarto e quase posso vô-lo rodopiando em
espirais de alegria.
“Chegou a hora”, eu falo indo
até minha cômoda e abrindo uma gaveta para pegar o frasco.
Miguel permanece quieto. Seus
olhos negros divisando o nada. Talvez em uma profunda contemplação
do vazio existencial.
“Eu volto já.”
Desço as escadas quase tão
rápido quanto o mini Flash. Na cozinha só estão Mamãe e Bárbara,
ocupadas com alguns aperitivos de entrada. No fogão está
borbulhando em fervura justamente o que eu procuro. A panela de
molho.
Ela sequer notam quando eu entro.
Desenrosco o frasco e despejo as bolinhas brilhosas no líquido
supurante. Então peço a colher de pau ao lado e começo a mexer.
Isso, como se despertando um sentido aranha, faz com que as duas
outras mulheres na cozinha virem para me olhar.
“Tá doente, Alice? Querendo
ajudar na cozinha?”
As duas riem de mim.
“Esse molho tem carne?”
Eu já sei a resposta, óbvio.
“Tem, mas o seu já tá pronto
na geladeira. Só falta esquentar.”
“Te amo, mãe.”
Quando Miguel me falou de seu
plano, em um primeiro momento eu achei estranho, mas confesso que sua
lógica me convenceu, porque quando a gente ama as pessoas sempre
queremos o melhor para elas e, muitas vezes, essas pessoas não sabem
o que é melhor, então precisam de nossa ajuda.
E saio da cozinha saltitante, mas
ainda consigo ouvir Bárbara perguntando a Mamãe sobre minha decisão
em ser vegetariana.
Está quase na hora de todos se
reunirem na sala de jantar. Corro para meu quarto para trazer Miguel.
Ele ainda está deitado na cama, largado. O puxo por uma perna.
O que? Você pensou que Miguel
fosse um garoto? Não, ele é esse elegante crocodilo de pelúcia com
olhos negros vidrados. Não o confunda com um jacaré, ele não
gosta.
Descemos juntos. As pessoas já
estão se encaminhando para a mesa da ceia. Me certifiquei de que
Alliny foi colocada para dormir
Miguel sussurra que ainda não é
benquisto pela família. Todos sempre olham para mim quando eu o
trago nos braços. Eles acham estranho que eu, uma adolescente de 16
anos, ainda seja tão apegada a ele. Ora, eu sou bobona o tempo todo,
mas quando se trata dele eles dizem que estou sendo imatura. Isso não
faz muito sentido.
Belinha já foi contemplada e já
está se deliciando com sua ração especial de Natal.
Bem, agora vamos todos nos sentar
e Papai e Mamãe me proíbem de ficar com o celular na mesa, então
vou começar a me despedir de você, ok? Diga tchau a Miguel também.
Quem sabe um dia ele lhe faça uma visita.
Vou começar a contagem para
finalizar essa transmissão.
“um”
Mesmo que não possa contar ou te
mostrar ao vivo o que vai acontecer você já pode imaginar, não é
mesmo?
“dois”
Sou a única que não vai comer o
molho, então todos, todos eles ao nosso redor, vão começar a
engasgar, a tossir, a suar.
Vão sufocar no próprio vômito,
desesperados sem entender o que está acontecendo. E esse vai ser
nosso presente de Natal, meu e do Miguel.
“três”
Hemerson Miranda
0 Comentários