Conto de Gustavo do Carmo
Fazia frio em São Paulo. Não que ela precisasse usar o sobretudo que vestia, mas era preciso manter a elegância. Ou melhor, a prepotência. Atravessou a porta automática de vidro do Hospital Central Diamond. O ar condicionado garantia a manutenção da vestimenta imponente... no Rio de Janeiro, onde acabara de desembarcar e fazia muito calor.
Anastácia precisava manter a prepotência. Ou melhor, a superioridade. A superioridade de vencedora. De quem, em um espaço de apenas um ano, era apenas uma dona-de-casa de Teresópolis, sem ambição, nem esperança de manutenção da estabilidade financeira. Foi indicada por uma professora da pós-graduação e rapidamente se tornou estrela de um programa feminino em São Paulo.
Quando recebeu o convite, abandonou o marido doente que a sustentava (daí o medo de perder tudo) e a filha adolescente. Partiu para São Paulo com o novo namorado, o colega da mesma pós-graduação. Arrumou pra ele o cargo de operador de câmera do estúdio onde era apresentado o programa.
Severino tinha aparência rude e era natural de Belém do Pará, mas morava em Xerém. Por dentro, era um homem educado, inteligente, incrível, maravilhoso e evangélico. Tão evangélico que converteu Anastácia, ex-católica fervorosa, que ia à missa todos os domingos com a filha e o primeiro marido.
Anastácia caminhava em passos rápidos pelos corredores frios do hospital particular. A sola de madeira da sua bota italiana de salto alto batia forte sobre o piso de granito, criando uma melodia seca e ritmada.
O destino da caminhada esnobe de Anastácia era a Unidade de Terapia Intensiva, onde seu ex-colega e ex-amigo Guilherme padecia de câncer na tireóide. Guilherme amava Anastácia e não se separava dela e de Severino nas aulas da pós-graduação. Os dois eram os únicos com quem o doente falava na faculdade. Mas respeitava o casamento e a filha da já senhora de meia-idade, o que Severino não fez. Por isso, escondia o seu amor pela ex-amiga.
Junto a desconfiança que a apresentadora de programa feminino tinha dos sentimentos de Guilherme, ela o achava chato, grudento, pedante e encostado. Por isso, se afastou, com apoio de Severino, que se dizia amigo dele. Fugia quando apareciam os trabalhos em grupo, o que deixou Guilherme bastante estressado e magoado.
Ao fracassar na matéria prática de vídeo, da mesma professora que indicou Anastácia para o programa feminino em São Paulo, e ficar sem grupo na outra cadeira, Guilherme abandonou a pós, mesmo com os falsos apelos de outros colegas e da coordenadora. Só faltavam esses dois módulos. Mesmo assim, Guilherme desistiu.
Depois disso, a loja de auto-peças do seu pai quebrou, o terceiro livro que pagou para publicar não vendeu absolutamente nada e seu nódulo na tireóide evoluiu para um câncer. Enquanto isso, Guilherme escreveu um conto em que criticava os seus ex-amigos e publicou no seu blog.
Anastácia, que jamais lera um conto de Guilherme, leu justamente esse e, constrangida, jurou romper a amizade para sempre.
Por baixo da arrogância, prepotência, orgulho, ar de superioridade e esnobismo, brotou a culpa. Dez anos depois, procurou aliviar a consciência. Ao procurá-lo, descobriu que o câncer de Guilherme agravou-se e ele estava internado na UTI, custeado pela irmã bem-sucedida na estatal de petróleo.
Encerrou sua caminhada prepotente com toques de remorso quando viu porta da antessala da Unidade de Tratamento. Olhando pelo vidro, não reconheceu o ex-amigo em nenhum dos leitos. Viu dois vazios, em outros tinham uma idosa, um idoso, um senhor negro e, no último, alguém com a cabeça enfaixada, todo machucado.
Na recepção, perguntou se havia outro conjunto de UTIs. A atendente, para adiantar o serviço, pediu o nome do paciente. Após um minuto de batuques no teclado do computador do sistema, a moça respondeu.
— Guillherme Augusto Moraes de Carvalho? Ele ficou neste setor, sim! Mas faleceu há um mês.
— Obrigada.
— A irmã dele está sentada ali na frente, pra acompanhar a mãe, que é quem está internada aqui agora.
Virou-se para trás e viu uma mulher com menos rugas do que ela. Também estava bem arrumada, mas com roupas mais leves. Puxou conversa.
— Você que é a irmã do Guilherme?
— Sim, sou. Respondeu a mulher, com ar mais superior do que Anastácia.
— Eu sou Anastácia, colega de pós-graduação do seu irmão.
Ela estendeu a mão para a irmã do ex-amigo, que recusou o cumprimento.
— Eu sei, meu irmão não parava de falar de você. Morreu falando de você e do seu marido, Severino.
— Eu fiquei sabendo que ele teve câncer. Eu sinto muito.
— Quando ele estava vivo você não sentia nada por ele, né? Não precisa sentir agora, que já é tarde demais. Sorriu sarcástica, para depois perguntar. — Agora que você veio procurar ele? Depois de dez anos???
— É porque eu estava muito ocupada com o meu programa em São Paulo. Só agora tive um tempo para procurá-lo. E acabei descobrindo que a doença dele agravou e ele morreu, né? Eu queria pedir perdão por tudo que eu fiz, pela forma fria que eu comecei a tratá-lo e...
— Demorou dez anos para você encontrar um tempo para vir visitar o meu irmão? Dez anos para dar o apoio que ele precisava? Dez anos para perdoá-lo??? A irmã encerrou esta última frase com um grito. E continuou em voz alta, já cutucando o seu dedo sobre a blusa de seda de Anastácia. — Vocês, jornalistas, são arrogantes, mesmo! Prepotentes, esnobes, vagabundos! Agora é tarde! Tarde demais! Não precisa mais pedir perdão porque o meu irmão já está morto! Meu irmão que gostava tanto de você. Tinha tanto carinho por você. Sofreu quando você o rejeitou! Sofreu quando você foi embora pra São Paulo, bem-sucedida e ele fracassado. Sabia que a doença dele piorou por causa disso? Sabia? Agora está morto e enterrado. E a minha mãe está indo se encontrar com ele. Some da minha vida, antes que eu não responda por mim!
— Ok.
Anastácia já não tinha mais a prepotência, a arrogância e a superioridade vencedora da ex-dona de casa que largou a família para ser apresentadora. Despiu-se da elegância do sobretudo que trouxe de São Paulo para o Rio de Janeiro, silenciou a bota italiana, imóvel no piso de granito, e desabou na poltrona macia da recepção do Hospital Central Diamond em um choro incessante de culpa, que demorou dez anos para se manifestar. Tarde demais para ser dissipada.
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