Estou
suando frio.
A
temperatura normal do corpo humano é de 35º a 37º C. Por sermos
homeotérmicos, nossa temperatura corporal tende a ser constante,
havendo apenas pequenas variações em torno de 0,2º a 0,4º C. Esse
controle preciso é mantido pelo sistema termorregulador
Então
eu estou no caixa do supermercado com vários sacos de gelo e um pack
com seis garrafas de cerveja. E quando digo vários, são vários
mesmo. Mais de 15. Eu desvio os olhos da moça no caixa que masca um
chiclete e já demonstra surpresa. Eu torço para que ela nem
pergunte nem comente. Depois de bipar os sacos ela pega o pack e meus
medos tomam forma. Ela pergunta se não é gelo demais para pouca
cerveja. Eu sorrio apenas. Um sorriso rápido. Rapidamente passo o
cartão e saio com o carrinho abarrotado de gelo em direção ao
carro.
Entre
33º e 35º C o corpo sofre com a chamada hipotermia leve. A sensação
de frio vem acompanhada de tremores, letargia, espasmos musculares e,
além das extremidades do corpo ficarem meio acinzentadas, surge uma
confusão mental no indivíduo.
Claro
que é gelo demais para pouca cerveja. Na verdade, nem é para a
cerveja. A cerveja é só meu pagamento. Pagamento pela compra do
gelo. Pagamento para ficar calado. É a terceira vez que faço esse
tipo de compra. As duas anteriores foram em outros supermercados. Por
alguma razão que eu mesmo não compreendo, quis variar dessa forma
mais por divertimento que preocupação em me questionarem. Eu gosto
quando o coração acelera, pois me faz lembrar que tenho um.
Gostaria
de saber se suor frio causa hipotermia.
O
gelo é para meu vizinho. Amigo de tempos. E é a terceira vez que
ele me pede esse favor. É a terceira vez que ganho um pack de
cervejas. É a terceira vez que ele me pede para ficar só entre nós.
Da primeira vez ele me chamou para conversar seriamente. Era para
falar sobre sua esposa. Nós três nos conhecemos desde a
universidade. Sua esposa é uma ótima pessoa. Simpática e educada.
Ele me chamou para conversar sobre alguns desejos que tinham. As
pessoas tem suas vontades, suas perversões. Chamou para saber se
poderia me contar uma coisa, se ele poderia confiar em mim. Eu disse
que sim. Nunca fui uma pessoa dada a preconceitos. Minha filosofia de
vida é que a vida pode acabar a qualquer momento. A desgraça da
minha vida é que esse momento nunca chega.
Entre
30º e 33º C os tremores no corpo desaparecem, um sono recai sobre
você, sua consciência começa a nublar, a memória falha, os
músculos ficam rígidos e sua fala embolada. Essa é a hipotermia
moderada.
Eu
ouvi atentamente. Pouca coisa nesse mundo ainda me surpreende e o que
ele me falou não me surpreendeu nem um pouco. Eles estão casados há
dez anos e são apaixonados. Cada vez que acham que estão caindo na
rotina tratam de fazer algo que mude isso. A mudança da vez, ele
disse, é a mais estranha de todas as anteriores. Ele falou estranha
mais para mim que para ele, mas nem precisava fazer essa distinção.
Pelo que percebi, estranhas sim seriam as mudanças posteriores. Eu
espero que eles sejam bastante criativos.
Então
no meu porta-malas tem vários sacos de gelo. Eu levo o carro até a
casa do meu vizinho. Eu o ajudo a levar os sacos para dentro da casa.
Ele está usando um roupão. A mulher dele me cumprimenta. Ela está
só de toalha. Suas mãos estão trêmulas e dá para ver seus
mamilos túrgidos sob a fina toalha. Sorri para mim, mas não com
malícia. Ambos sabem que minha fruta é outra. Ele pede para eu o
acompanhar até o banheiro e ajudar a abrir os sacos e jogar alguns
na banheira.
Pegue
uma cerveja para ele, amor, ele diz para a mulher. Eu tento negar,
afinal meu pagamento está no carro, mas ele insiste e, antes que eu
decline mais uma vez, a mulher dele já está do meu lado com uma
garrafa. Ela não está usando maquiagem. Seu cabelo se prende num
coque e seus olhos demonstram que não dormiu muito bem. Mesmo assim
mantém o sorriso. Parece ao mesmo tempo cansada, mas disposta a
fazer sempre algo mais.
Aos
30º C você fica imóvel e inconsciente. Suas pupilas se dilatam e o
batimento cardíaco diminui, ficando quase imperceptível. Se não
for tratado correta e urgentemente, sua morte é iminente. Essa é a
hipotermia grave.
Então
deixamos a banheira com gelo suficiente para que uma pessoa possa
deitar-se nela. Ele abre o chuveiro e deixa a água ocupar o espaço
suficiente e me acompanha com uma garrafa de cerveja trazida também
pela mulher.
Isso
parece estar dando certo, eu digo antes de bebericar mais um pouco.
Sim, eles respondem juntos. Mas acho que essa será a última vez,
ele me diz, já que pode prejudicar ela, mas eu estou gostando muito.
O sorriso dela também parece ser de aprovação. Ele desliga o
chuveiro e levanta-se me convidando a fazer o mesmo. Ele a beija na
boca e me segue até a cozinha. Há um espelho ali próximo e eu
posso ver rapidamente, enquanto caminho, a mulher despir-se da toalha
e entrar cautelosamente naquela banheira com água e gelo.
A
casa está com o ar condicionado ligado, então o choque térmico na
banheira não será tão grande. A pele dela vai se arrepiar já
avisando ao resto do corpo pra tentar mantê-la aquecida,
inutilmente, claro. Ela começará a ter taquicardia e tremores.
Ele
tira mais duas garrafas do freezer e me oferece uma. Abro e dou um
gole grande. Ele parece feliz. Ela não dormiu essa noite para as
olheiras ficarem mais aparentes, ele me disse. E eu já estou
excitado, ele me disse.
A
temperatura da água precisa estar abaixo de 15° C. O objetivo deles
é que ela consiga atingir a hipotermia grave.
Conversamos
sobre um novo cortador de grama que ele comprou e sobre algumas dicas
de jardinagem. Depois de um tempo ele vai até o banheiro e de lá
grita meu nome. A hora chegou.
A
aparência dela é de um cadáver encontrado há alguns dias.
A
aparência dela é como uma folha de papel esquecida e manchada pelo
tempo.
Sua
pele pálida e os olhos fundos no meio das olheiras lembram algum
filme de terror em preto e branco. Seu olhar divisa o nada.
Rapidamente eu o ajudo a tirá-la da banheira. A pele dela estava
queimada em alguns pontos. Tocar nela era como tocar em um membro
dormente.
A
colocamos na cama e ele foi tirando o roupão. Eu desliguei o ar
condicionado, coloquei uma cadeira perto da porta e sentei. Esse era
meu posto. Enquanto isso ele pegava uma bisnaga e passava o conteúdo
no pau. Era anestésico tópico.
Dava
para ver o quanto ele estava excitado. Então ele subiu na cama e
começaram a foder. Digo, ele começou. Ela não mexia um músculo.
Seus olhos vítreos fixavam-se na porta. Enquanto isso ele dava
fortes estocadas nela junto a baixos uivos de prazer que acompanhavam
os movimentos.
Não
demorou nem podia demorar muito. Me pareceu ver ela piscar. Foi ai
que ele soltou um suspiro longo. Ele gozou e rapidamente saiu de cima
dela. Eu corri com alguns cobertores. Ele trouxe mais e a cobrimos.
Fizemos os procedimentos para ela melhorar da hipotermia enquanto o
café borbulhava na cafeteira.
Enquanto
eu e ele bebericávamos o café depois de pronto perguntei qual seria
a próxima quebra de rotina. Ele disse que não tinha pensado ainda.
E então abriu um sorriso e disse para mim:
“Tem
que ser algo maior que isso” e apontou com a cabeça para a esposa
na cama. “Algo mais perverso. Tipo ter um filho.”
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