Dia das Bruxas



Se você olhar para o meu lado esquerdo, verá Freddy Krueger beijando Leatherface.

Estou sentada no bar, de costas para, basicamente, o inferno. Mulheres e homens fantasiados de vilões e monstros da literatura e do cinema, dançando e bebendo. É o quinto ano do Helloween Fest e por mais que o nome não seja nada original, ninguém se importa, já que o chope é gratuito.

Dos alto-falantes ocultos Marilyn Manson gorjeia seu sucesso, Beautiful People. Eu dou um longo gole no meu chope e abocanho o sanduíche. Tiras de alface e cebola se projetam do pão e suco avermelhado pinga no prato, como se fosse sangue. Pego uma batata frita lustrosa de gordura e fico mastigando com os dentes da frente como se fosse um roedor.

Ao meu lado o casal de assassinos continua se beijando. Mãos veiadas e peludas acariciam bíceps e pescoços musculosos.

Eu estou sozinha aqui porque acho que já faz parte da minha natureza. Eu estava saindo com um cara há quase três meses. Ele escreve contos de terror para uma revista mensal. O Novo Bizarro, O Novo Grotesco, algo desse tipo. Dessas publicações que ressuscitam Lovecraft e o terror cósmico. Ele escreve bem, de verdade. Alguns de seus contos estão entre os meus favoritos e eu torço para que cresça na sua carreira. Mas então, como qualquer escritor, ele começou a apresentar as características dos bebês. Eles são birrentos e chorões, capazes de nos deixar loucos, mas basta fazer algo grande ou inesperado e todo mundo começa a bater palmas. Eu já cuidei de crianças o suficiente para ter que aguentar mais uma. Por isso terminei.

Do meu lado direito Elvira, a Rainha das Trevas, se debruça no balcão e pede uma dose de rum. Seus enormes seios se derramam na superfície de madeira envernizada e ela começa a tamborilar com os dedos de uma mão. Uma fisgada de inveja atinge meu corpo ao ver suas unhas de porcelana. São compridas, negras e com as pontas vermelhas escorrendo, imitando sangue. Ela vai embora deixando um cheiro de sálvia pairando sobre mim.

Minhas amigas ainda não chegaram. Não estou preocupada porque elas nunca foram muito pontuais. É bom porque eu tenho tempo de comer sozinha o sanduíche, o qual dou apenas mais duas abocanhadas e termino, regando tudo com mais um longo e sôfrego gole de chope. É o segundo sanduíche que eu pedi hoje. Se você me perguntar se eu tenho pena das mulheres que não podem comer nada e já engordam uns cinco quilos, eu te direi que não.

Meu corpo, branco e esguio, caiu muito bem nessa fantasia que é a versão dark de Alice, a do País das Maravilhas. Só que eu esqueci minha foice em casa. Pedi a Ingrid que passasse lá e trouxesse para mim e espero que ela não esqueça. Meus cabelos absurdamente negros formam a caverna que protege meu rosto pálido e mórbido, maquiado por mim mesma como se eu estivesse pronta para meu próprio velório. Se ajeitar direitinho eu posso ser capa de alguma banda de depressive black metal.

Mastigo e engulo os dois últimos palitos de batata frita e bebo de gute gute o restante do meu chope. Preciso arrotar, mas não o faço pela boca. Deixo que o ar saia por minhas narinas. Então sinto o cheiro de meu próprio interior. Azedo, fermentado, salgado, gorduroso.

Continuo de costas para as pessoas, mas penso nelas. Todos os que estão aqui aproveitaram esse dia para colocar máscaras. Para, detrás de um escudo ridículo, extravasarem, poderem ser o que realmente são, sem julgamentos, sem represálias. Essa é a mentira que eles contam a si mesmos. A realidade é que por baixo dessas máscaras, há uma máscara pior e mais bizarra. Uma maquiagem que eles usam todos os dias estampando um sorriso que esconde o desejo de estraçalhar ou sufocar o pescoço de alguém. Três malditas camadas de pele para esconder a podridão e imundície que cada um é.

A primeira coisa que sinto é um toque na base de minha coluna. Posso sentir um objeto raspar em meu pescoço. Em seguida meus cabelos roçam perto de minha orelha e eu sinto uma respiração, então um odor a hortelã e enfim uma voz sussurrando:

“Cortem as cabeças.”

Me viro e é uma enfermeira com roupas muito curtas, parecendo uma prostituta, seios erguidos por um sutiã apertado demais fazendo com que a parte macia e musculosa deles quase atinja o queixo. A roupa branca se contrasta com o vermelho de várias manchas de sangue. Na pele, alguns roxos de hematomas, arranhões e costuras. Lábios extremamente vermelhos e olhos cor de âmbar que deixam qualquer pessoa desconcertada. É Ingrid, ostentando minha foice. Uma foice de plástico tão perfeita que parece ser real e foi ao ver ela pela primeira vez que decidi que fantasia iria usar hoje.

“Finalmente, sua vaca!”

Ela ajeita os seios, sem necessidade, e pisca um olho diante de minha reclamação. Masca chiclete, parecendo uma daquelas colegiais em filmes americanos dos anos 80. O cabelo loiro está preso num coque preguiçoso.

Por um momento, tudo ao meu redor para. Olhando para os olhos de Ingrid, algo está errado. A sensação que tenho é de que não a vejo há muito, muito tempo, mas eu posso jurar que não faz nem 12 horas que falei com ela pessoalmente. Algo na própria aparência dela, e não é a maquiagem, traz alguma nostalgia, uma saudade inexplicável, como uma espécie de deja vú ao contrário.

Ela olha ao redor demoradamente para as pessoas e suas fantasias e quando seus olhos pousam novamente nos meus me obrigo a recobrar a consciência presente.

“Cadê as outras?”
“Elas e o David tão conversando com um cara ali”, Ingrid senta-se do meu lado direito, apontando com a cabeça para a entrada do bar. “Parece que ele tá vendendo garrafas de absinto português.”

Pedindo um copo ao barman ela aproveita e pega o meu para encher de chope na torneira bem ao seu lado. David é o namorado de Elayne, a única de nós que vem acompanhada. Ele é a nota dissonante do grupo. O cara é burro e nisso até Elayne concorda, então ele meio que se torna o alívio cômico de nossos encontros.

Eu viro para a frente junto com minha amiga, para olhar as pessoas conversando e dançando, algumas estão tão animadas em suas fantasias que isso aqui parece mais um evento de cosplays.

Um homem vestido totalmente de preto, rosto e cabeça cobertos por um capuz, passa entre as pessoas vindo até nossa direção. Eu já senti essa sensação de medo antes, um frio pegando carona no sangue e correndo nas minhas veias, a pele se eriçando, quando passo em um beco escuro que dá para a casa de Vânia. O homem se coloca ao lado dos dois assassinos que não estão mais se beijando, mas conversando animadamente e pede uma dose de conhaque. Sua voz é arranhada, como se estivesse rouco de tanto gritar. Curtida em cigarro e bebida barata. Então a sensação de medo vai se diluindo e Ingrid pede para fazermos um brinde.

Quando olho novamente para meu lado esquerdo o Homem de Preto já não está mais ali.

Um casal vem se aproximando de nós duas. O homem veste o estilo já ultrapassado do Coringa de Ledger, mas desistiu de deixar os cabelos escorridos e manteve os cachos que sua namorada ama e que agora estão tingidos de verde. Sua namorada é (que impressionante!) a Arlequina, shorts curtos e blusa colada, os cabelos loiros de raízes negras em maria-chiquinha, um bastão de baseball numa mão e uma bolsa na outra, cujo braço está enlaçado ao Palhaço do Crime. São Elayne e David.

“Olhem só!”, ela retira uma garrafa com um líquido esverdeado quase luminescente da bolsa e ergue para que possamos admirar. “Foi apenas 90 reais. Vai dar certinho pra o cemitério.”

Cemitério? Sério?

David lança um olhar de tristeza para sua namorada, que logo ergue o dedo indicador para o impedir de falar.

“Não, não, não, David. Isso é um ritual anual só pra as meninas. Você vai fazer seja lá o que for com seus amigos do pôquer. E você, Tay? Que cara é essa?”

Eu bebo mais um gole de cerveja e respondo:

“Vocês vão querer fazer isso de novo? Já não passamos dessa idade?”
“Qual é! Fizemos nos últimos quatro anos, temos que arredondar pra cinco, pelo menos.”

Quem falou foi Ingrid, enquanto lia o rótulo da garrafa de absinto. De repente, como dessas aparições do Batman, uma freira cuja única parte do hábito que usa é o que lhe cobre a cabeça, surge do nosso lado. Vestindo um corset negro com detalhes vermelhos que lhe espremem os seios, em cujo meio pende um crucifixo prateado e uma cinta liga mais o salto alto agulhado, seus lábios negros apertam um cigarro também negro com aroma mentolado. Com o corpão que Vânia tem, toda a fantasia lhe caiu muito bem, sugando olhares de todos ao nosso redor, cada um desejando uma oração particular ou a extrema unção. Ela se aproxima de mim, apaga o cigarro num cinzeiro, colocando as mãos nas minhas bochechas.

“Ah, meu Deus! Você parece uma boneca!”

Inflo as bochechas e faço uma cara de desaprovação, o que faz ela gritar mais uma vez e me abraçar com força, para as risadas de todos aqui conosco. E começamos todos a nos servir do chope gratuito para molhar as conversas. David já achou os tais amigos de pôquer, caminhou até eles e deixou Elayne conosco.

Se você me perguntar se eu ainda estou com fome, a resposta é sim. Então peço um sanduíche para viagem.

Um anão está fantasiado de gremlin e é erguido para sentar-se num dos bancos altos do bar pela esposa do Frakeinstein. Na boa, nós adoramos os monstros e os vilões. Não somente porque eles nos causam medo, nos dão aquele choque, aquele susto, aquele empurrão que às vezes precisamos para sacudir a nossa vida, mas os adoramos principalmente porque eles são nossos bodes expiatórios.

Quem em sã consciência não gostaria de jogar todas as suas responsabilidades em outro ser? Por que admitir culpa se podemos dizer que um demônio nos obrigou? Que um ser alienígena de eras antigas nos abduziu e nos controlou para praticar horrores? Aliás, por que não usar a própria ciência para nos absolver? Vejamos a moral. A sociedade e a religião dizem que nós temos o livre arbítrio de escolher não machucar outro ser humano. Mas não é somente a moralidade que nos guia, nós somos animais, seres biológicos, então a biologia também tem seu papel aí. Nossos lóbulos frontais são os responsáveis, eles nos ajudam a pesar as consequências de nossas ações. Não fosse esse controle todos nós seríamos subjugados aos impulsos selvagens.

Se esse lóbulo frontal não funcionar, a culpa pode ser considerada nossa?

Pense sobre isso.

Ou melhor, nem pense. Pode dar dor de cabeça.
O caso é que sempre preferimos ter a opção de colocar a culpa em alguém ou algo, depositar todas as nossas responsabilidades e nossos erros em um receptáculo. É tipo como diz o cristianismo sobre Jesus, que carrega todos os nossos pecados.

Numa mesa próxima de onde estamos Samara, aquela do poço, está dançando.

Elayne está a um passo de mim, só tem Vânia entre nós duas, mas ela saca seu celular para me mandar uma mensagem. Realmente, o celular resolveu o problema de não ficar rouco no dia seguinte de tanto gritar tentando conversar com alguém numa rave, mas isso já é demais. A música nem está tão alta e ela pode apenas vir e falar no meu ouvido.

Pego o celular e a mensagem diz “David tá com priapismo”. Eu ergo minhas sobrancelhas e depois as junto. Ela me olha esperando algo que eu não sei o que é. Abro o Google e procuro a palavra. Então faço com os ombros e a boca aberta um “Ahhh” e ela me sorri. Olho para David e ele está de perfil, conversando com os amigos. Sua calça é preta, mas eu posso ver o volume se sobressaindo. Aquilo deve estar roxo, quase com aquela cor necrosada. Mando uma mensagem perguntando “e dói?” e ela responde “ele diz que dói muito”. E agora eu não sei o que mais ela quer que eu diga. Que tenho pena de o namorado dela estar com uma ereção tão fodida que pode estourar todas as veias?

Guardo o celular e ela sussurra alguma coisa no ouvido de Vânia, o que me faz deixar os ombros caírem. Todas enchemos novamente nossos copos. E começamos a dançar. Megan, a menina possuída por Pazuzu e estrela do Exorcista, esbarra em mim e me dá um sorriso em forma de pedido de desculpas.

Eu gostaria de ver Dante aqui agora atualizando seus círculos do inferno.

Na verdade agora eu fiquei curiosa porque priapismo tem, como uma das causas, picadas de aranha viúva-negra, mas me contenho para não perguntar nada a Elayne. O que diabos está fazendo David aqui afinal?

Todos os nossos celulares alarmam ao mesmo tempo. Ou quase. O meu não faz isso. É meia noite. Hora de ir ao cemitério. Eu jurava que não íamos fazer isso esse ano. Nos anos anteriores repetimos o ritual de colocar uma longa coberta entre os túmulos, encher a cara de vodca ou whisky, contar histórias de terror que nossos pais nos contaram que os pais deles lhes contaram e assim por diante, ou fazer algum ritual idiota como invocar espíritos através da porra de uma caneta.

Deixo meu amargor de lado porque, que mal poderia haver? E além disso, esse ano temos absinto.

Esperamos que Elayne se despeça do Coringa e saímos juntas, copos descartáveis cheios de cerveja até a boca, entre os monstros e vilões da era pop. Passamos roçando nas bandagens sujas e úmidas de suor de uma múmia, recebendo farfalhadas da capa de um cosplay grotesco de Drácula e uma bailarina que nos deu um tremendo susto e tivemos que parar para parabenizar a fantasia e tirar umas fotos. A roupa está normal, o rosa ou marfim bufante. O que chama a atenção dela é que sua boca está aberta até suas clavículas. Escancarada, dentes balançando, sangue escorrendo. Uma verdadeira obra de arte feita por algum maquiador muito criativo.

O ar aqui fora cheira a urina e cerveja.

Ora, vejam. Quem é que está ali vomitando toda a bebida que ingeriu, se apoiando numa longa foice e amparada por Jason? É a Morte. A Morte está de ressaca.

Até o cemitério é uma caminhada de três quarteirões. A lua é uma enorme moeda amarelada colada no céu. Alguns caras lançam olhares e assobios para Ingrid, Vânia e Elayne. Eu sou mais a boneca fetiche de alguns depravados. Não há nada de sexy em mim a não ser a foice que carrego. Um carro mantém o som bem alto ao longe, uma contradição em todos os sentidos, pois toca funk.

Fantasmas e demônios confabulam nas trevas.

Do nosso lado esquerdo, empurrando um carrinho de bebê caindo aos pedaços com várias tralhas no lugar de uma criança, quem vemos não é alguém fantasiado para o Dia das Bruxas, é a Cica, a moradora de rua mais famosa da cidade e, portanto, a mais desprezada. O que as pessoas enxergam em Cica é apenas o odor azedo, incrustado e se desprendendo de sua carne. Seus cabelos oleosos e os lábios rachados e feridos. As pessoas se afastam dela porque veem os braços sujos de sangue velho, as mãos de dedos imundos e pustulentos. Elas nunca enxergam que ali há um ser humano. Mesmo que Cica seja um ser humano se extinguindo.

Pego meu sanduíche e o estendo para Cica. Ela não fala, muda desde que a espancaram no ano de 2012. Os gritos foram tão animalescos da dor que sentiu que romperam suas cordas vocais. Mas seus olhos são todos agradecimentos, como duas bandeiras tremulando. Ingrid lhe dá seu copo de cerveja ainda cheio, piscando o olho, o que faz brotar um sorriso no rosto de Cica, a boca parecendo uma ferida mostrando dentes rareando. Eu sorrio e seguimos nosso caminho.

Elayne retira da bolsa o grande cobertor quando entramos no cemitério. Alguém entre as árvores está recebendo sexo oral. Ora, mas é a Elvira, a do bar, com suas unhas que me causaram inveja. Mas, espera aí. É a Elvira que está de pé, e seja quem estiver de joelhos, está fazendo um... boquete…nela…

Enfim.

Procuramos o mesmo lugar de sempre, que é o que cabe todas nós, entre a família Gomes e a família Martins. Ótimo pai, querida mãe. Todos estarão sempre em nossos corações. Mas no momento permanecerão debaixo de nossas bundas.

Nos sentamos sobre o cobertor. Elayne abre a garrafa de absinto e começamos a revezar o gargalo. O gosto na minha boca é adstringente, adocicado, ácido. O cheiro dele lembra perfume, um perfume bom. É Elayne que começa a contar uma história que David lhe falou sobre o avô, que continuava, depois de morto, visitando uma casa no interior. Eu estava prestando atenção até algo chamar meus olhos entre as trevas e lápides.

Lá ao longe, entre os túmulos, uma sombra se move. Mesmo que o cemitério seja bem iluminado, há várias partes imersas em trevas. Caminha lentamente como se estivesse procurando algo. Há alguma coisa na sua silhueta que me é familiar. Então o vulto ergue a cabeça. Sim, é ele. O Homem de Preto do bar. Pego no braço de Vânia para que ela veja também.

“Você tá vendo aquilo ali?”

Eu aponto a direção, mas é tarde. Não há mais nada ali. Uma brisa que eu não sinto balança as copas das árvores. Por alguns segundos a ausência dele foi mais assustadora que sua presença.

“Sua história já tá fazendo a Tay ver coisas, Elayne. Ou será o absinto?”

A história termina e eu não faço ideia do seu final. Minha mente ainda se apega à sombra que eu, juro, vi. Então tomo um susto quando Vânia, ao meu lado, começa a falar.

“Você tá bem, Tay?”, me pergunta Ingrid.
“Sim, sim.”
“Já sei o que podemos fazer hoje!”

Vânia fica de pé, posso ver a curvatura de sua bunda de onde estou. Se eu fosse lésbica…

Ela tira uma folha de papel amarelada de uma bolsinha. Na folha há desenhos feitos com tinta vermelha, símbolos que nunca vi na vida, letras que minha memória não consegue igualar com qualquer uma que eu já tenha visto. Mas então Vânia fala um nome. Ela fala de invocar esse nome e imediatamente meu cérebro começa a tecer toda a teia de conhecimentos sobre esse nome. E meu estômago sente frio, minha pele se arrepia, minhas pernas amolecem. Ao ouvir o nome eu lembro do que meu ex, o escritor de contos de terror, havia me falado. Olho para Vânia e ela está falando apaixonadamente.

“… o Caos Rastejante...”

Eu pego em sua mão. Ela se assusta, assim como as outras meninas.

“Não”, eu peço. “Não faça isso. Isso...”
“Ah, você conhece, Tay? Não vai me dizer que acha isso real.”

Eu acho real? Eu realmente não sei. Quando meu ex me contou a história dessa criatura, eu senti medo como nunca lembrei de ter sentido. E foi só uma história, ele me falando. Não havia imagens além das formadas por minha cabeça e isso foi suficiente para me deixar aterrorizada. É absurdo, eu sei. É irracional, eu também sei, mas foi a primeira resposta do meu corpo a isso.

“O que foi, Tay? Parece que você viu um fantasma.”

Olho para Ingrid. As palavras dela parecem ser ecos de tempos distantes. Por alguma razão escondida dentro de mim e que eu desconheço, essa frase me causa arrepio. Sinto novamente nela uma sensação de deja vù, uma lembrança onírica. A expressão dela, como a das outras, me faz acreditar que meu rosto é uma máscara de pavor. Já estou grande o suficiente para não acreditar nessas coisas, mas a luta em mim é entre minha racionalidade e a resposta de meu corpo ao nome.

Meu corpo está ganhando.

“Ora, vamos, Tay, deixa de besteira.”

E antes que eu possa dar conta de qualquer coisa, Vânia começa a recitar umas palavras totalmente incompreensíveis a mim. Não entendo nada, mas me parecem obscenas, imundas, desesperadas. Ela lê da folha de papel, mas lê como se tivesse decorado e só verificasse na folha para seguir a sequência.

“Onde você aprendeu isso?”, eu pergunto e percebo que minha mão está tremendo.
“Ah, eu comecei a mestrar um RPG. Você conhece Lovecraft. O cara é um gênio.”

O pavor toma conta de mim como se minha própria morte fosse iminente. Claro que conheço Lovecraft. E conheço a conspiração que falam de que na verdade todos os monstros que ele “criou” existem de verdade. Existem e existiram muitos grupos, pessoas e seitas que os cultuam. Como Crowley. Tudo isso quem me falou foi meu ex e, por causa da paixão com que ele descrevia tudo, eu mesma fiz algumas pesquisas, por curiosidade. Eu não estou gostando disso. É sério, eu não estou gostando nada disso. Meu cérebro pede razão, mas meu corpo grita respondendo que tudo é real e que na verdade eu deveria sair dali correndo.

Vânia continua a recitar as palavras e as outras garotas estão a olhando e sorrindo, abismadas com a amiga. Elas fazem gracejos e as olho pensando em como não estão apavoradas. Começo a sentir frio e ouço passos. É quando minha amiga acaba de dizer as palavras e se joga para sentar ao meu lado, concluindo sua profanação dizendo o Nome, que eu dou um grito.

“Nyarlathotep!”

Ela grita o nome com as mãos erguidas. Eu grito sem poder me mexer. As meninas expressam preocupação em seus rostos. Não sei o que está acontecendo comigo, mas esse nome, ele me deixa aterrorizada. Todas chegam até mim para me consolar.

“Tay? Que você tem?”
“Tá tudo bem. Era só uma brincadeira.”
“Acho que é o absinto fazendo efeito.”

Quando elas se calam o som de folhas secas e quebradiças sendo pisadas nos atinge os ouvidos e todas viramos na direção em que vem o barulho.

O Homem de Preto está ali, parado, olhando para nós.

Como um tapa na cara a lembrança do que meu ex disse cai sobre mim. O Homem de Preto, ele é um dos avatares de Nyarlathotep, o Caos Rastejante.

Todo o sossego que pairava sobre o cemitério desapareceu. O ar agora é rasgado por gritos longínquos de desespero. O próprio vento parece dobrar sobre si mesmo. Minha respiração pesa, assim como meus membros, o que me impede de fazer qualquer movimento. Percebo que o mesmo está acontecendo com as outras garotas. O Homem de Preto está apenas ali, de pé, imóvel. O capuz derrama uma camada espessa de sombra sobre seu rosto, mas de alguma forma conseguimos ver duas bolas pálidas e foscas que são seus olhos. A presença dele, só a sua presença, causa angústia, uma inquietude que dá vontade de coçar a carne abaixo da pele, sem que com isso haja alívio.

Ele começa a se mover, sem pressa, nos rodeando, cada passo seu despertando caos e desordem, sua presença trazendo o próprio desespero.

Um misto de vergonha e angústia me toma, pois o meu ceticismo está sendo colocado diante de mim e estapeado sem dó. O tecido da realidade se rasga à minha frente, me colocando no lugar de todo ser humano: a insignificância diante da indiferença do universo. Vermes sem propósito ante o poder milenar dos Grandes Antigos.

Um suor frio começa a banhar minha pele. Os olhos daquela criatura parecem analisar meus ossos. Um cheiro atinge e impregna minhas narinas. Algo ferroso ou metálico, misturado com carne esfolada. É um odor frio, cru. Parece-me ouvir o próprio coração das meninas sob os meus batimentos. O cheiro começa a gotejar de minha cavidade nasal até minha garganta.

Percebo que ao nosso redor se formou uma membrana com formas sombrias deslizando pela atmosfera. O Homem de Preto não abre sua boca, pelo que posso ver, mas nós ouvimos vozes. Palavras que vem de todas as direções, mas que eu não entendo, como as palavras que Vânia tinha pronunciado antes, só que com alguma emoção que eu não sei se é desespero ou êxtase. Acredito que, assim como eu, as meninas também querem gritar. Mas o odor obsceno entalou minha garganta e parece que minha alma se debate dentro de meu próprio corpo, do qual perdi totalmente o controle.

O Homem de Preto volta a ficar parado à nossa frente. As vozes parecem flutuar ao seu redor. O que lembro do meu ex ter dito sobre essa criatura antiga é que dentre os seres detalhados por Lovecraft, apenas Nyarlathotep tinha comunicação direta e racional com os humanos, pois ele entende uma parte de nossa mente. Tido como um ser cruel, ele pode trazer a loucura a qualquer pessoa. Justamente por essa macabra “ligação” com os humanos é que ele é considerado o mais terrível dos seres primordiais, o mensageiro dos Grandes Antigos.

O que acontece a seguir tem a mesma matéria de que se compõe os sonhos.

A criatura olha diretamente para Ingrid. As outras meninas e eu, tomadas pelo terror que deixou nossos corpos inertes, gritamos por dentro. Nossos membros dão pequenos e insignificantes espasmos. Ingrid, por sua vez, começa a se mexer. Ela se ergue do cobertor olhando fixamente para o Homem de Preto. As vozes, elas estão ainda cantando seu coro macabro. O cheiro no meu nariz começa a se amalgamar com meu próprio ser. A ideia de que o odor possa ser alucinógeno passa por mim com uma velocidade tremenda, talvez tudo seja alucinação do absinto. Todos nós já ouvimos muitas histórias de gente que se embriagou com a Fada Verde e viu coisas. Talvez tudo isso não passe do resultado de substâncias químicas queimando no meu cérebro. Tenho que afastar esses pensamentos, pois uma de minhas amigas parece correr perigo.

Ingrid caminha como se fosse uma marionete e para de frente para a criatura. Os braços da minha amiga pendem dos lados de seu corpo, suas pernas são exitantes. Sua cabeça está um pouco inclinada para o lado. Ela pareceria apenas uma mulher embriagada, não fosse a forma como seu corpo parece se colocar de pé através de fios. Toda a sensualidade da fantasia de Ingrid foi reduzida a uma demonstração bizarra, como uma casca vazia erguida pelos dedos aracnídeos de um demiurgo.

O Homem de Preto ergue as mãos cobertas por luvas negras até sua cabeça. Quando ele afasta o capuz minha barriga revoluteia, minhas pernas sentem arrepios múltiplos e tenho a impressão de que vou urinar ali mesmo. Não é uma cabeça que se escondia nas sombras cavernosas do capuz, mas sim uma língua enorme, de um rosa ou vermelho que lembra carne esfolada. Seria daí que o cheiro está vindo? A visão é enervante. Quando vemos essa língua em posição vertical, uma espécia de ereção bizarra, a criatura começa a crescer em sua forma. Ela fica 30 cm mais alta que Ingrid. Então 60 cm. 90 cm. As vestes negras rasgando e caindo como uma segunda pele. Seu corpo esquelético e amorfo, que lembra aqueles desenhos de pessoas sem pele, mostrando só músculos e tendões nos livros de biologia, se curva. Três pernas a sustentam, envoltas em brumas negras e espessas. A língua é uma imagem perturbadora por si só. Entre minhas pernas eu sinto o líquido quente.

A criatura segura Ingrid pelos ombros. Nossa amiga é apenas um invólucro vazio. Uma de suas mãos aracnídeas pinça a blusa de enfermeira de Ingrid e com facilidade a rasga, como se fosse um filme plástico que acabou de sair do micro-ondas. Metade das costas da garota é exposta, ombro nu. A língua, que é a cabeça da criatura, começa a pulsar, então uma linha negra se forma perto de sua base, uma ferida se abrindo, mostrando dentes afiados, exsudando uma saliva gosmenta e amarelada. Essa boca, esse ríctus obsceno, fecha-se entre o ombro e a base do pescoço de nossa amiga, os dentes cravados na pele pálida.

Nossos olhos estão arregalados, mas nossos corpos ainda nos desobedecem. O cheiro quente de urina entre minhas pernas se mescla ao odor frio que preenche meu nariz e goteja na minha língua. Percebo que até este ponto em minha vida eu nunca havia presenciado o real horror.

A criatura afasta sua cabeça, os dentes pingam apenas saliva. O som que esse Caos faz, acima das vozes sussurrantes, lembra ruídos hidráulicos, úmidos. O corpo de Ingrid cai um pouco e quando vemos o que aconteceu com sua carne, ao menos eu, senti um desespero acompanhar minha corrente sanguínea.

O talho imenso na carne de Ingrid parece uma boca escancarada. Não há sangue. É como se a boca monstruosa daquela língua gigante tivesse drenado o líquido de seu corpo e arrancado a carne seca. Dá para ver as artérias, a matéria esponjosa, as cartilagens, o branco do osso. Essa visão jamais sairá da minha cabeça.

Atrás da criatura, relâmpagos negros rasgam a pele do espaço, como veias estourando. Aquilo que ela segura com uma mão já não é uma pessoa, mas uma embalagem descartável. As vozes aumentam seu coro, gritos de agonia e risadas de crianças.

Então o Caos Rastejante segura os braços e pernas de Ingrid, deixando-a na posição horizontal com enorme facilidade. E puxa para lados opostos. A carne branca e macia de nossa amiga começa a se romper. Os músculos, os ligamentos, a cena toda parece quando você estica uma goma de mascar. Não há uma gota de sangue, só o material macio de que é feito um ser humano. Vísceras e cartilagens se desprendendo. Uma pessoa reduzida a uma massa amorfa de carne. Ruído de ossos se deslocando, quebrando, arranhando.

Na minha garganta algo ácido começa a se formar e despeja na minha língua. Bile começa a escorrer do canto de minha boca. Quero desviar o olhar, mas não posso. Sou obrigada a ver minha amiga ser dilacerada e se transformar no alimento de uma criatura antiga cuja noção de moralidade é antagônica à minha.

Então tudo fica escuro.

Sim, é impressionante. Nessas histórias, em algum momento, sempre tudo fica escuro.

Quando eu abro meus olhos novamente o barulho ao meu lado esquerdo me chama atenção e quando olho é Freddy Krueger beijando Leatherface. A sensação que me afoga é de um completo deja vù. Tem um prato com sanduíche, batatas gordurosas e um copo de chope na minha frente. Olho ao redor, para todas as pessoas que estão aqui, bebendo e dançando. Pego uma batata e antes de comer bebo um pouco do chope e todos esses movimentos me parecem vagamente robóticos. Desisto da batata.

Espera.

Esta tocando Marilyn Manson e uma mulher vestida de Elvira está se aproximando do balcão.

Oh Deus…

Viro de costas para as pessoas, olhando para a comida na minha frente. Coloco os cotovelos na madeira envernizada, o rosto entre as mãos e tento me concentrar, respirando fundo. Pensamentos se misturam dentro da minha caixa craniana. Sobre meu ex que escreve contos de terror, sobre Halloweens dos anos anteriores, sobre um cheiro esquisito e frio no meu nariz. Então sinto um toque na base de minha coluna, algo arranhando meu pescoço. Me viro bruscamente e assusto Ingrid.

Por um momento, tudo ao meu redor para. Olhando para os olhos de Ingrid, algo está errado. A sensação que tenho é de que não a vejo há muito, muito tempo, mas eu posso jurar que não faz nem 12 horas que falei com ela. Algo na própria aparência dela, e não é a maquiagem, traz alguma nostalgia, uma saudade inexplicável, como uma espécie de deja vú ao contrário.

A roupa sexy de enfermeira, os seios quase saltando para mim. Manchas de sangue, marcas de hematomas, arranhões e costuras. São de mentira, mas a visão evoca essas lembranças que parecem tão longínquas. Olho a pele macia de Ingrid, a veia pulsante em seu pescoço. Não parece real, mas eu posso sentir sua própria respiração chegar até meu rosto.

Não, não…

Então olho para a entrada do bar e ele vem se arrastando, o Homem de Preto. Meu coração se debate entre as costelas. O gosto que eu sinto na língua é amargo, podre e esse gosto sobe até meu nariz, pela cavidade interior. Minha respiração fica quente, pesada.

Olho do Homem de Preto para Ingrid e novamente para ele.

Ingrid olha para mim com profundas marcas entre as sobrancelhas, um sorriso torto se formando em seu rosto.

“O que foi, Tay? Parece que você viu um fantasma.”


 Hemerson Miranda

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