Minhas sobrancelhas estão arqueadas não
apenas pelo preço do prato que vejo no cardápio, que é absurdo, eu acho, mas
também por existir um prato como esse. O nome é gazpacho e é uma sopa
fria feita de pão, azeite, vinagre, alho e cebola. Com o valor desse único
prato eu posso ir no mercado e fazer o suficiente dessa ridícula sopa fria para
comer por uma semana.
Eu viro para o barman, que parece um
folheto publicitário de cuecas, e peço uma vadia e um chope de heineken.
Calma. Antes que você ache que esse não
é um estabelecimento respeitável, vadia é um drink que mistura cachaça
artesanal com canela. Eu sempre bebo um copinho antes de começar na cerveja. O
choque da bebida destilada, adoçada e quente com o gélido lúpulo e a cevada me
agradam bastante.
O balcão do clube só não está vazio por
causa de mim e de um casal sentado na outra extremidade. As mesas estão lotadas
ao longo do lugar, como a pista de dança, onde casais tem seus corpos em
exultantes contorções sob uma música eletrônica num loop ad aeternum.
Entorno a cachaça adocicada e sinto a
garganta queimar e o estômago se aquecer, o que me lembra de comer algo. Peço
ao barman lula frita. Tenho que gritar, já que a música é ensurdecedora.
Nunca aprendi a dançar. Nunca tive
desejo de aprender. Continuo sem a vontade. Fico vendo esses casais dançando e
penso não tanto no quanto deve ser difícil, mas quanto deve ser cansativo.
Dançar sozinho então, deve parecer ridículo. Aí, como se tivesse ouvido meus
pensamentos e se materializado de propósito, vejo, no meio dos casais efusivos,
uma mulher dançando sozinha.
O vestido de alças negro é o que o Skank
chamava de indefectível. Cabelos castanhos e encaracolados flutuam na altura de
seu queixo. Segura em uma das mãos uma taça. Se movimenta com as mãos erguidas,
mas a cabeça está baixa, coberta pelos cabelos rebeldes, como se estivesse
olhando para os pés e vendo se eles estão fazendo o que devem, mas imagino que
esteja de olhos fechados.
O que me admira é que ela, com coxas e
pernas bem feitas e à mostra e ombros nus atraentes, esteja dançando sozinha.
Provavelmente deve ter recusado vários convites de homens e mulheres, pois
posso imaginar uma fila esperando para se remexer com ela.
Sorvo um grande gole da cerveja e sinto
vir até mim, como uma lufada de vento, o aroma de creme hidratante misturado
com suor.
“Oi!”
O hálito quente bate em meu ouvido junto
do grito e eu me assusto. Eu literalmente dou um pulo no banco em que estou.
Sentiria vergonha se já não tivesse o corpo todo ocupado com medo. Eu tive que
rir disso, como a moça que acaba de sentar ao meu lado também ri.
É a moça que estava dançando. Ela deve
ter deslizado até aqui camuflada pelo barulho da música e das sombras de todas
as pessoas que estão presentes. Ergue a taça para o barman encher novamente.
Olha para mim ainda rindo, sem nenhuma intenção de se desculpar por ter me dado
um baita susto. Seus lábios se movem em minha direção, mas não consigo ouvir.
Ela se levanta e pega o banco para colocar mais perto de mim, extremamente
perto de mim, tanto que ela senta basicamente entre minhas pernas. Quando fala
é praticamente na minha cara, com um hálito adocicado e frisante.
“Tudo bem?!”
Seus olhos brilham, na verdade tremulam,
como seu corpo, em uma leve tentativa de se equilibrar. Deve ter bebido
bastante, mas suas palavras ainda não estão se atropelando. Eu respondo que
“sim, tudo bem”. Ela fala, dessa vez não no meu rosto, o que poderia ser “por
que tá sozinho?” ou “quer um pouquinho?” e eu crio vincos verticais entre as
sobrancelhas.
Ela volta a se aproximar de meu rosto,
falando na lateral dele, para atingir meu ouvido. Calor emana de seu corpo e a
visão do sulco misterioso entre seus seios me faz engolir seco. A mão que
segura a taça está com o cotovelo apoiado no balcão e a outra aperta minha coxa
suavemente.
“Posso te contar um segredo?”
Tenho que beber mais um gole para
desfazer o nó na minha garganta e aceno com a cabeça afirmativamente.
“Você não vai me julgar?”
Eu penso que, por ela estar bêbada, irá
falar alguma coisa pornográfica e está apenas criando um caminho inocente para
me excitar.
“Promete que vai tentar me entender?”
Sua respiração quente paira no meu
pescoço e a mão dela aproxima e recua de minha virilha. A mistura do álcool com
a excitação de suas palavras e de sua voz faz minhas veias formigarem. Então eu
falo no ouvido dela.
“Pode me contar o que quiser!”
Os cabelos dela recendem a cigarro e
óleo cítrico.
“Não vou te julgar!”
O ombro nu dela me convida a enterrar
meus dentes em sua carne, a o cobrir com beijos e sua coxa se contrai como se
pedisse minha mão.
“Prometo o que você quiser!”
Ela se afasta para me olhar nos olhos,
os seus indo de um lado para o outro, como se analisassem todas as linhas em
meu rosto a procura de uma confirmação. Sua boca entreaberta brilha com saliva
e vinho. Então aproxima o rosto de mim, seus lábios se abrem perto de minha
orelha e junto com um suspiro vem suas palavras:
“Eu acabei de matar uma mulher!”
Ela se afasta e eu começo a abrir um
sorriso torto. Mas a expressão dela é séria e seus olhos, agora não tremulantes,
me encaram com profunda frieza. Meu sorriso vai morrendo, um aborto espontâneo.
Novo nó se forma em minha garganta. Ergo o copinho de vadia seco e mais 4 dedos
para o barman e ele nos traz os 4 copinhos cheios do líquido âmbar.
Existem olhares que dispensam palavras e
o dessa mulher é um deles. Todo o corpo dela emana uma seriedade que chega a me
constranger. Então bebo dois copinhos seguidos. Quando vejo que ela nem sequer
olha para os outros dois, eu os engulo também e uma onda elétrica percorre meu
corpo.
Quando ela se aproxima novamente meu
corpo quase instintivamente recua, mas eu o forço a permanecer quieto,
inabalável. Sua voz no meu ouvido parece uma lâmina de gelo cortando minha
carne.
“Tô falando sério.”
Essa aproximação, essa intimidade, tanto
das pernas dela quanto de seu hálito na minha pele, passa de prazer a incômodo
em instantes. Mas volta ao prazer quando ela recomeça a acariciar minha coxa.
“Vou te contar como aconteceu. Você
prometeu não me julgar.”
O prato com lulas fritas chega e ela
pega uma com os dedos, ergue ao alto colocando a cabeça para traz e a solta na
boca aberta. Rega com um gole de vinho e mastiga olhando para mim, voltando a
seu sorriso infantil e os olhos tremulantes como uma bandeira de guerra.
Não faço ideia de quem disse “estando no
inferno, abraça o diabo”, mas me agarrei a essa frase e senti crescer dentro de
mim uma nova excitação. Fiz com um tentáculo de lula o mesmo que ela e pedi ao
barman mais um chope.
É minha vez de aproximar a boca do
ouvido dela e seu lóbulo faz minha boca salivar.
“Por que você a matou?”
Nossas bochechas estão se encostando, a
sugestão de uma barba em meu rosto vez em quando roça a pele dela.
“Ciúme.”
“Você é casada?”
“Não. Ex namorado.”
“Minha nossa, você também o matou?”
“Não. Ele já tinha terminado comigo. Mas
logo arranjou a puta que eu matei.”
Sempre ouvi dizerem que toda mulher é
louca… agora eu sequer sei o que pensar. Em frações de segundos eu penso em
como as ideias que temos sobre as coisas são condicionadas. Acostumado a ver
notícias, relatos, histórias sobre homens que mataram, ditadores, serial
killers, pervertidos, pensar que uma mulher possa matar é algo que demora a
encaixar. Quando você ouve um galope pensa logo em um cavalo, não numa zebra.
Pensar em mulher é ver beleza, ver maternidade, ver alguém que cuida e é capaz
de dar a própria vida para salvar outra pessoa. Uma mulher dizer “eu matei uma
pessoa” é uma informação que não só demora a ser compreendida como a ser
aceita.
A mulher na minha frente, eu percebo, é
feita de camadas. Há camadas de roupa, de roupa íntima, de pele. Camadas de
aromas, como o sabonete a base de leite em seu corpo e o odor ferruginoso do
sangue de outra pessoa. Camadas de sabor. Sal de suor e lágrimas. O gosto acre
da pele, ácido de suas partes íntimas, áspero de sua língua. Camadas de
segredos. Por trás de seus olhos cinzas como o oceano entediado, segredos,
vergonhas, arrependimentos e resignação. Desde o segundo que ela se apresentou
diante de mim, camadas e mais camadas estão caindo.
Ela bebe como se refletisse sobre as
notas do vinho tinto, qual vampira fatigada pelo tempo, mas não sei se está
bebendo em comemoração ou para anestesia.
Já em mim há um misto de tesão, de
curiosidade e de sadismo. Quero saber o que essa mulher fez, quero saber a
razão de ter feito e quero, acima de tudo, saber o que ela sentiu. Quero
penetrar em todas as camadas dela porque ela agora possui algo que nenhuma
dessas pessoas que estão aqui ao meu redor possui. Ela tem algo que nenhuma
dessas mulheres, mesmo com semelhantes estruturas físicas, não tem e talvez
nunca terão.
Eu quero dela uma coisa que só ela pode
me dar: o cessar de meu tédio.
Seu lábio inferior está úmido,
suculento.
“Antes de tudo” ela grita no lado do meu
rosto, me dando uma informação que provavelmente será útil logo à frente,
“saiba que eu sou enfermeira.”
Me sinto, subitamente e com certo
constrangimento, um idiota, pois sou fraco o suficiente para ceder a uma
mulher. Eu, um homem, aquilo que a sociedade tem como o símbolo do poder,
sucumbindo a um par de belas pernas e uma mente cativante. A mente dessa mulher
é uma armadilha e eu agora estou preso em seu alçapão.
“Não sei o que leva um homem a deixar
uma mulher como eu. Você me acha feia?”
Eu nego com a cabeça de forma sucinta.
“Eu sabia que ele tava me traindo. Só
não sei a razão. Talvez seja só isso que ele é: um homem e como todo homem, um
animal predador que não se contenta com a presa que tem diante de si, mas fica
olhando e buscando outros pedaços de carne fresca.”
Me olha com um sorriso irônico.
“Enfim, eu já tinha visto umas mensagens
suspeitas em seu celular. Claro que ele negava tudo. Eu o infernizei até que
ele se cansou, pelo jeito, e marcou comigo numa cafeteria pra me dizer que
queria terminar. Já pensou que filho da puta? Me chamar pra um local público
pra terminar comigo. O que parece isso? Que eu iria fazer alguma loucura se
fosse um lugar privado? Que eu poderia ameaçá-lo?”
O barman volta a encher a taça dela e me
traz mais cerveja. Peço mais uma porção de lula frita e um pouco de pimenta.
Ela bebe mais um gole de vinho e eu vejo o caminho que ele faz por sua
garganta. Há uma gota rubra no canto de sua boca, mas fico calado, pois aquilo
me parece muito sexy.
“Então depois que ele falou que queria
terminar me dando como justificativa uns motivos completamente idiotas, eu me
levantei da mesa, dei um último beijo na boca dele e fui embora.”
Dada outra situação, consideraria isso
como sorte minha. O cara perdeu um mulherão e poderia ser a minha vez de
ganhar, mas eu precisava de mais informações.
“Então hoje eu vi os dois saindo de um
cinema. Fiquei furiosa porque ela é normal. Entende? Não tem nada nela que seja
uma vantagem sobre mim. Nada! É que eu não tenho uma foto aqui, senão te
mostraria. Dou de 10 a 0 nela. E duvido que ela faça alguma coisa na cama que
eu não faça e muito melhor.”
Não sei bem como funciona essa coisa de
ciúmes. Nunca tive um relacionamento longo o suficiente para sentir isso e não
me acho tão interessante para despertar ciúmes em outra pessoa. Mas conheço histórias
escabrosas sobre mulheres ciumentas, quais tigresas protegendo seus rebentos.
Por uma questão de verificação, tendo
muitos casais amigos, vi que os relacionamentos costumam passar por 3 momentos
críticos: quando eles conversam cada vez menos, brigam cada vez mais até só
restar o silêncio.
“Então os segui até eles se despedirem
em frente ao prédio onde ela mora. Não estava interessado para onde ele ia, o
que faria. Só tinha agora olhos e mente para a piranha que se intrometeu na
minha vida. Não sei qual é a dessas mulheres que vivem desejando homens
comprometidos. Tive uma amiga uma vez que me dava nos nervos porque sempre se
relacionava com homens casados. Era como um fetiche. Ela chegou uma vez a me
dizer que quando o cara dizia que ia se
separar da mulher para ficar com ela, ela ficava numa felicidade que nem uma
trepada lhe dava, mas assim que o cara se separava de fato da esposa, ela
broxava, entrava num estado de completo nojo do homem, igual a esse que algumas
mulheres sentem pelo marido quando estão grávidas.”
Eu tinha conhecido uma mulher assim
também. Ela vivia de destruir famílias, assim diziam. Como se abrisse uma
filial da desgraça a cada bairro que mudava e seduzia um homem casado.
“Assim que ele saiu de carro eu entrei
no prédio e, pra minha sorte, ela tinha se detido nas caixas de correio. Segui
ela vendo o andar que pediu ao elevador e corri pelas escadas. Me senti
naqueles filmes policiais. Meu coração começava a bater mais rápido. Vi quando
ela saiu do elevador e pegou as chaves pra abrir o apartamento. Esperei uns 5
minutos, então fui ficar de frente pra a porta e bati 3 vezes. Passado um tempo
ela atendeu, enrolada numa toalha de banho. Não tinha olho mágico e ela sequer
perguntou quem era, então já imaginei que essa rapariga costumava receber muitas
visitas.”
De repente, sabe-se lá por qual motivo,
talvez um cliente nostálgico ou o próprio DJ relembrando uma aventura antiga,
começa a sair das caixas de som ocultas e estrondosas um sucesso de 1999: Blue
Da Ba Dee, da banda Eiffel 65. Então, sob as batidas frenéticas, ouvimos a
história de um cara azul que vive num mundo azul e tudo o que ele vê é azul.
Uma banda italiana com um único sucesso.
“Com uma força que por vezes eu
desconheço, empurrei a porta e invadi a casa dela, sob os protestos e sua cara
de surpresa. Perguntou quem diabos eu era e o que estava fazendo ali. Já eu
respondia com perguntas, como o que ela tinha que o fulano lá estava apaixonado
a ponto de me deixar por ela. Ela cruzou os braços e me olhou com desprezo
(primeiro erro dela). Fui entrando nos cômodos e começamos a gritar, uma
tentando falar mais alto que a outra. Xingamentos, justificativas que, pelo
jeito, só quem falava é que ouvia. Perguntei se era naquela cama que ela dava
pra ele. Me chamava de louca e má perdedora. Quando estávamos na cozinha ela
tentou avançar e agarrar meus cabelos (segundo erro). Na minha visão periférica
uma lâmina brilhou e eu também vi o brilho refletido nos olhos daquela vaca.
Com movimentos rápidos que eu também desconheço, peguei a faca e comecei a
ameaçá-la. Incrédula e tentando se manter superior, começou a sorrir de forma
debochada (último erro). Então eu avancei.”
Tenho mais medo de facas que de armas de
fogo. Desisti de um curso de gastronomia justamente por ter que manusear essas
lâminas. As facas são mais sádicas que uma bala. Elas se enterram na carne com
um desejo mais lento que um projétil, e continuam em suas estocadas como se
fosse uma penetração, tipo um ato sexual mórbido. Não há nada de misericordioso
em ser ferido por uma faca. Alguns assassinos acham até mesmo que usar uma
lâmina é algo mais íntimo.
Só em pensar no aço frio roçando em meu
osso eu já me arrepio todo.
“Peguei ela de surpresa. Enterrei a faca
à esquerda do esterno. A lâmina correu reto entre as costelas, perfurando o
pulmão e, como era meu objetivo, talhando o pericárdio. Ainda lembro da boca
entreaberta dela, de onde jorravam bolhas cor-de-rosa, uma mancha avermelhada
começou a ser sugada por sua toalha branca, até ela cair no chão e eu ficar
ali, apenas vendo sua vida esvair-se.”
Ela verte todo o restante de vinho da
taça e pede que o barman encha mais uma vez.
Me pergunto o que aconteceria se, no
exato momento em que ela descrevia essa parte do seu relato, a música
silenciasse. Todas as cabeças virando para a nossa direção. Provavelmente seria
desacreditada como mais uma bêbada.
Mais uma imagem criada pelo
condicionamento se desmorona diante de mim. Ela é enfermeira e pensei que elas
jamais seriam capazes de matar alguém, muito menos com tal precisão. A figura
de uma mulher com suas roupas imaculadamente brancas, sua disponibilidade em
nos ajudar enquanto estamos no leito de um hospital, agora transformada na
imagem de uma assassina fria, tendo tirado a vida de uma pessoa por um motivo
tão fútil.
Muito tempo depois eu lerei sobre a
história dos Anjos da Morte, um grupo de enfermeiras que decidia quais
pacientes, em sua maioria idosos, partia desa para uma melhor.
Me sinto uma criança que acaba de
descobrir que o Papai Noel não existe.
O barman, agora ele está cada vez mais
parecido com um panfleto publicitário de barbeadores, ele aponta para meu copo
perguntando sem palavras se quero que encha. Eu faço um gesto com a mão, dedos
pinçados, e ele me traz uma vadia.
“E quanto tempo faz isso?”
Ela olha para o relógio de seu celular,
escondido antes entre os seios.
“Faz uma hora. Quando ela finalmente
morreu eu tomei um banho lá no apartamento dela mesmo, pra tirar o cheiro de
ferrugem das minhas mãos e braços, dei uma olhada no guarda-roupas dela e achei
esse vestido que caiu perfeitamente em mim e vim pra cá.”
Imagino ela fazendo isso tudo com um
cadáver na cozinha. Ela diante do espelho verificando o vestido, levantando os
seios, virando de costas para olhar a bunda e em seguida colocando sua máscara
de indiferença.
“Veio pra comemorar?”
“Vim pra aproveitar. Não sei o que será
de mim amanhã, então vou aproveitar cada minuto dessa noite.”
Ela aproxima a boca da minha. Não sei se
são fantasmas de pensamentos, mas parece que consigo sentir o odor ferruginoso
de sangue ainda em sua pele. A sua mão volta a atiçar minha virilha.
“E você bem que poderia aproveitar
comigo, o que acha?”
Sorrio e olho para o lado. O barman
havia enchido novamente meu copo de cerveja e eu nem percebi. Muito menos
percebi que eu mesmo tinha feito o líquido girar e agora as bolhas estão em
efusão. Sorvo um gole longo.
Por que não?
Por que não aproveitar a noite com essa
mulher?
Não a conheço, não a vi matar ninguém. A
única coisa que tenho aqui é a confissão dela que pode, muito bem, ser resultado
de delírios alcoólicos. Quem sabe o fato de ser enfermeira tenha dado esse
toque especial em sua descrição de como fez. A bem da verdade, qualquer um pode
me julgar se quiser, mas sinto até uma excitação que nunca senti por essa
mulher e creio que em parte se deve ao fato de ela ter acabado de matar alguém.
Essa excitação zune dentro de mim, como um mosquito sedento por sangue. O
sangue que jorrou da mulher de toalha, o que se apegou aos braços dessa mulher
de vestido preto, a cor do vinho que ela bebe como se fosse água.
Do jeito que ela está, o que talvez seja
a última vez que ela transe com alguém, quem sabe o que ela não é capaz de
fazer na cama?
No meu ombro esquerdo um diabinho
vermelho roça sua cauda pontiaguda no lóbulo da minha orelha e sussurra, sem
muito esforço, pois apesar do barulho ao nosso redor sua voz entra diretamente
na minha mente. Ele diz:
“Vai perder essa oportunidade?”
Seu minúsculo tridente cutuca minha
bochecha e diz:
“Você come ela e depois desaparece.”
Seu hálito é quente como o plástico
acima da lasanha depois de sair do micro-ondas.
“Nunca a viu, nunca a verá depois. E
tudo isso será passado.”
Sinto que bebi demais. Mas ainda tenho
consciência do que quero. Chego até o ouvido dela e digo para sairmos dali e
irmos para um lugar mais reservado. Ela pergunta que lugar e eu digo que
conheço um motel aqui próximo. Ela sorri com o nariz bem no meu pescoço.
Assente, agarra minha nuca e me dá um beijo longo, molhado e fermentado. Faço
todo o pagamento ao barman e lhe dou uma gorjeta generosa.
Nos levantamos e eu tenho que me apoiar
nos ombros dela. Tendo passado o tempo todo sentado não percebi o quanto estava
embriagado. Ela ri, mas me ajuda, me segura com uma força, aquela mesma força
que ela disse desconhecer. Saímos para a rua e a brisa noturna bate no meu
rosto como farpas de gelo.
O mundo gira, os sons estão se abafando.
Isso não pode estar certo.
Eu não bebi tanto assim.
Meus pés são desobedientes e minha visão
duplica. Ela fala muitas coisas, mas só chegam a mim ecos disformes e eu não os
entendo.
Quando passamos do lado de um beco eu
sinto que estamos parados, apesar do mundo ao redor ainda permanecer em
movimento. Não sei o que ela está dizendo, mas me puxa, me agarra e então tudo
o que eu vejo em seguida é a escuridão.
Quando acordo minhas narinas são
atingidas por um forte cheiro de urina antiga e esgoto. Estou deitado sobre
paralelepípedos e minha calça está molhada pela água suja que sai de um cano,
proveniente de alguma pia de cozinha dos apartamentos acima de mim. O beco onde
estou é de tijolos vermelhos e erodidos. Acima, varais se estendem com algumas
roupas para secar ao sol. Minha cabeça está apoiada sobre jornais velhos,
revistas de moda e Playboys de folhas coladas. Uma dor aguda atravessa meu
cérebro e meu peito e braços parecem ter sido esmagados. Demoro a lembrar de
tudo o que aconteceu e quando apalpo meus bolsos percebo que meu celular e
minha carteira já não estão comigo.
Hemerson Miranda
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