Confessionário



Perdoe-me padre, porque eu pequei.

Talvez eu deva começar confessando que nunca me confessei. Eu nunca fui muito ligado à igreja, mesmo com as insistências da minha mãe. Já estou com 45 anos, padre, não acho que Deus ainda tenha tempo para mim. Eu sei que eu não tenho mais tempo para ele. Talvez para compensar isso que eu deixei as crianças entrarem no coral. Ver duas criancinhas vestidas de anjinhos tocam o coração do mais bruto dos homens. Larissa é mais nova, mas muito mais esperta que o Victor. A mãe fala que ela decorou todas as músicas, mas o irmãozinho ainda atropela algumas palavras.


Meus filhos também foram um motivo para eu me livrar de outro pecado, padre. Eu traia muito a minha mulher. Ao menos três vezes por semana, não só com a manicure do salão onde ela faz o cabelo como com a atendente da padaria. No cabaré eu ia atrás de Luana todos os fins de semana e já que estou confessando, confesso que até sinto saudades dela. Não só pelo seu cheiro, que mulher cheirosa, mas porque ela é de longe a mulher mais bonita daquele lugar. Eu acho que as coisas acontecem assim: chega um momento na vida em que o homem deve sossegar e cuidar da família e esse momento chegou quando Larissa nasceu. Claro que foi difícil no começo, as lembranças de Luana, aquelas alegrias já mortas, sempre me faziam colocar o pé fora de casa no sábado ou domingo, mas a voz de Larissa me fazia recuar.

Sei que não estou usando uma ordem cronológica, padre, mas é que é tanto pecado que acho melhor contar conforme for lembrando. Eu judiei de animais quando era pequeno. Aleijei um gatinho, joguei tinta de caneta num cachorro, matei muito pássaro trepado nas árvores do quintal de casa. Quando cresci, quando virei adulto, também matei vários gatos envenenados para ver se paravam de entrar no meu quintal e rasgar os sacos de lixo. Nunca entendi essa história de que animais não viram fantasmas depois que morrem, mas pode até ser sorte minha, ou então eu seria assombrado por um zoológico. Hoje eu ensino meus filhos a não seguir meu exemplo. Temos uma cadelinha, a Sofia, que ainda é tão bebê quanto os meus. Victor, que tem 8 anos, cuida dela com muito zelo e pelo jeito, no futuro, ele queira até ser veterinário.

Tenho uma cicatriz no nó de meu dedo médio da mão direita. Toda vez que a olho as memórias do colégio quando eu tinha 11 anos me vem desenfreadas. Ganhei essa cicatriz porque eu gostava de uma menina. Naquela época ela era o padrão que todos os meninos gostariam de namorar. Loira, magrinha, seios começando a se formar, bundinha redonda, não muito inteligente, o que facilitava as coisas. Então um garoto, ele era conhecido por colocar medo nos outros, um dia ele passou a mão na bunda da "minha garota". Ela, inocente e frágil, chorou desconsoladamente. Eu, munido de ódio, com os membros em ebulição por causa do inferno queimando nas minhas veias, me aproximei dele com punhos fechados. Ele usava óculos, o que era estranho naquela época, já que todos os valentões nunca usavam óculos, isso era para os nerds e idiotas. Eu me vi refletido nas lentes dele, seus olhos me encarando, ele se agigantando diante de mim enquanto se aproximava descrente que eu faria alguma coisa. Então num impulso que até hoje não consigo explicar, eu, que era um pouco mais baixo que ele, dei um pulo e joguei com toda força minha mão fechada na cara dele, com tal raiva que suas lentes quebraram e a armação se partiu. Era ele caído no chão gritando e chorando dizendo que vidro tinha entrado em seus olhos e eu, do outro lado, com o punho ainda fechado e sangrando. Naquele dia, após o sinal tocar no término das aulas, enquanto eu saia pelos portões com um curativo na mão e um bilhete de comparecimento dos pais na outra, ela estava na segunda esquina me esperando. Me deu um beijo e deixou eu apertar sua bunda. Uma semana depois ela foi embora para outra cidade, se tornando meu primeiro amor perdido.

Aos 20 anos eu roubei, padre. Eu estava desempregado, numa cidade onde não conhecia ninguém. O emprego que antes era garantido não deu certo e eu tive que ficar de favor num quartinho de fundo, procurando emprego em tudo que era lugar. Precisava comprar uma camisa social, já que minha última tinha se rasgado num acidente. Sem dinheiro, sem ter onde conseguir ajuda, fui num mercadinho perguntar ao dono se teria algum trabalho que eu pudesse fazer para ganhar uns trocados. Por razão desconhecida o homem me tratou mal, áspero, totalmente desprovido de empatia e me mandou embora aos gritos. Enquanto ele atendia uma cliente no outro lado da loja eu vi a gaveta de dinheiro aberta, espalhei os dedos, agarrei o que pude e corri como um desesperado. Quando finalmente parei, demorou, já que às vezes nosso medo é de ser pego, mesmo que ninguém nos esteja perseguindo, eu vi que tinha conseguido dinheiro suficiente para comprar a camisa, uma calça nova e ainda uma garrafa de vodca. Anos depois, muitos anos depois, eu, já empregado e bem de vida, passei em frente àquele mesmo mercadinho, entrei pensando em devolver, depois de todo aquele tempo, o dinheiro, que agora eu tinha sobrando, mas soube que o velho havia morrido e o filho dele, que agora ocupava seu lugar, refletindo o velho, me tratou mal, como um eco consequente do tempo, e eu desisti de restituir o dinheiro.

Eu sei, padre, é ainda pouca coisa, mas é bom colocar tudo para fora. Eu entendo o seu silêncio e agradeço a paciência em me ouvir. Não sei qual é bem a diferença entre o senhor e um psicólogo, mas acho que ambos recebem para ouvir as desgraças dos outros e isso deve requerer preparo. Eu fico aqui, seguindo minha vida, mas sem a pretensão de ser perdoado. Talvez já seja a hora de virar a minha vida para o lado B, mas eu não sei, talvez a gente não saiba quando chega esse momento.

Já fui praticante do famoso jeitinho brasileiro também, padre. Já fiz gato em energia e água, nesse último era só colocar uma agulha para parar o ponteiro enlouquecido daquele relógio. Já arranjei meios por meio de políticos de pegar atalhos em coisas importantes. Já passei na frente de gente que estava esperando muito mais tempo que eu. Já comi de graça em lugares diferentes, já bebi de graça e sai sorrateiramente. Já deixei de devolver o dinheiro a mais que me deram de troco. Menti, me aproveitei e me safei. Minha vida seguindo tão normal como a maioria das pessoas desse mundo.

Minha mulher diz que Larissa passa o dia todo cantando e dançando as músicas do coral. Existe uma hipocrisia latente diante da indiferença do universo, padre, pois eu olho para Larissa e temo que façam com ela tudo aquilo que eu já fiz com as filhas dos outros. Porque eu já fui magoado, mas também magoei bastante. A gente que é homem, mas não decide pelo celibato, como o senhor, sabe que depois de uma idade e com o aval de grande parte da sociedade, nos tornamos predadores. Aos nossos olhos as mulheres são apenas bocetas ambulantes, depósitos de esperma. Elas estão ali com suas curvas, suas carnes roliças, suas roupas curtas, apenas para satisfazer nossos olhares, atiçar nossos desejos e acabar na nossa cama ou no ápice solitário de uma masturbação. Não me impute isso como pecado, padre. Só estou mostrando uma grande verdade da vida que poucos tem coragem de encarar. Não estou justificando nada. Hoje, na idade em que me encontro, sei o quanto isso é nocivo, sei o quanto é errado, mas naquela época, quando eu desfrutava de privilégios que eu sequer tinha consciência e dos quais não podia abdicar (ainda desfruto, ainda não posso), parecia tudo certo. Eu era homem, tinha um pau, o mundo deveria girar ao meu redor. Hoje eu sei que outros homens tem essa mesma ideia das coisas e temo pela minha filha.

Desculpe as palavras, padre, mas não me leve a mal. Só estou dizendo a verdade. O senhor me entende, já que é homem. E não, não aceito essa de celibato, pois ele não castra os nossos desejos. O senhor, como homem, também tem esse pedaço de carne indiferente ao resto do corpo que costuma nos envergonhar e delatar. Todos temos esses desejos, o caso é que precisamos controlá-los. É difícil, mas precisamos, não é, padre?

Eu já xinguei minha mãe e falei coisas que não devia ao meu pai. Isso só veio a me doer quando eu mesmo me tornei pai, como dessas viradas, esses tapas na cara que a vida costuma dar na gente com a ajuda do tempo. Agora os dois já estão mortos, mas ainda passeiam pela minha casa, arrastando seus chinelos, lamuriando seus arrependimentos e recebendo de mim ainda menos atenção que quando estavam vivos.

Semana passada a Larissa estava desenhando, jogada no chão com um lápis de cera na mão preenchendo o esboço de uma princesa em seu vestido bufante. Eu pensei que ela estava concentrada no desenho, mas não. Ela, que é bem inteligente e organizada, estava ultrapassando as linhas do desenhos, como que distraída por outra coisa. Nesse momento eu fiquei me perguntando o que se passa na cabeça de uma criança. Como seus olhos veem o mundo? O pensamento ao mesmo tempo que me deixou maravilhado também me assustou, pois do mundo exterior eu posso proteger minha filhinha, mas e de seu mundo interior? Me senti impotente, mas em seguida resignado, já que nossa sina nessa vida é lidar cada um com seu próprio mundo interior, com seu apocalipse já incluso.


Por falar em pensamento, também já pequei assim, padre, mas quem não, não é? Eu estava próximo de terminar a escola e estava a fim de uma moça. Linda, inteligente, aquela que quando meus olhos bateram eu já quis casar. Fui falar com ela um dia. As dicas são: 1 - nunca demonstre insegurança, 2 – mantenha-se ereto e dono de si mesmo, 3 – não aparente desespero. E assim, com essas coisas em mente, eu fui. Sentei ao seu lado e comecei a puxar assunto, ela foi bem receptiva, então aproveitei um momento específico e disse que gostava dela. A expressão no rosto dela, você juraria que ela estava olhando para um acidente de carro, um massacre de animais indefesos, vítimas do holocausto. Em seguida a expressão dela mudou da água para o vinho e ela primeiro sorriu, depois riu, depois gargalhou e, negando efusivamente com a cabeça, se afastou de mim rindo como se eu tivesse contado a melhor piada do mundo. Naquela noite em que eu não consegui dormir, pensei em abordá-la na saída da escola, em levá-la para um daqueles terrenos abandonados por trás da escola, em pegar seus braços com força e forçá-la a ficar de costas e se curvar, em tapar sua boca com uma mão enquanto a outra tirava meu pau da cueca e metia nela, sentindo minha mão molhada pelas lágrimas dela enquanto abafava seus gritos. Dessa forma ela aprenderia a nunca mais rir de mim.

Até hoje eu sinto vergonha de ter pensado isso, padre. Tem vezes que eu olho a minha filhinha e me envergonho, sinto uma autorrepulsa  por um dia ter ponderado fazer isso com uma mulher e quantos outros homens já não tiveram e terão essa sombra passando por detrás de seus olhos, alguns até imaginando a minha garotinha. O maior nojo que nasce em mim é saber que um dia eu pensei isso e não tenho como despensar, como voltar atrás. Todos nós temos um passado negro, padre, mas há nele uma escuridão num canto mais palpável que qualquer outra coisa e essa foi a minha. O senhor deve me entender, não é verdade?

Anteontem eu estava tomando banho com meus filhos. Victor estava distraído com um patinho de borracha, mas eu percebi que a Larissa estava intrigada com alguma coisa. Ela, quase completando 7 anos, sempre curiosa, perguntava sobre a diferença entre as mulheres e homens e sua mãe e eu sempre respondíamos com franqueza e ela ouvia tudo com extrema atenção. Eu sou circuncidado, o Victor não. Então anteontem a Larissa, enquanto passava xampu nos cabelos, olhou para mim e perguntou "Papai, porque o seu pintinho é diferente do do padre Robson?"

Fogo.

Os inúmeros e minúsculos espasmos que invadiram meu corpo me fizeram sentir um estranho dentro de mim. Meu sangue começava a ferver, minha pele se eriçava por toda a sua extensão, como um exército em direção à guerra. Meus olhos soltavam faíscas e meus lábios tremiam num descontrole de mim mesmo ao qual nunca tinha visto antes.

Inferno.

Meu sangue é lava, diluindo qualquer sentimento que não seja ódio. Minhas veias são rios fumegantes que correm no inferno que se tornou tudo o que eu sou. Eu queimo, eu purifico, eu destruo para construir, para renovar. Minhas mãos tremem como um terremoto, sou o epicentro de um vulcão que acabou de despertar. Sou fogo, sou destruição, sou a indiferença infinita que queima tudo que é vivo. Eu sou a morte.

Larissa respondia as minhas perguntas e eu ouvia, como vozes distantes que eram abafadas por gritos de desespero e dor de tudo o que queimava dentro de mim. Eu ouvia e não sentia nada, pois só havia um sentimento que preenchia meu corpo sem dar espaço a mais nada. Eu não dormi, não comi, apenas continuei sendo. Uma decisão se formava dentro de mim sem muita preocupação, sem muitos detalhes, só o esqueleto da decisão tomada, sem sombra de culpa ou sensação de futuro. Era o que deveria ser feito, portanto seria feito.

Hemorragia subaracnoide, padre, é o que o senhor acabou de sofrer antes de eu começar meu relato. Se o senhor pudesse ver agora, com o impacto do golpe que lhe dei o seu rosto está amassado de um lado, seus poucos cabelos estão colados à pele devido ao sangue e seus olhos verdes parecem duas chamas se apagando de fogo fátuo. Do outro lado do confessionário eu só vejo o seu crânio estourado por entre os buraquinhos da tela de madeira que nos separa. Não sei se Deus estava ocupado ou sequer se importou em te ajudar quando desferi o golpe, o que sei é que estou terminando minha confissão. Não sou capaz de devolver os fragmentos de inocência da minha filhinha, mas ao menos garanti que outra criança não passe por isso sob suas mãos. Se o inferno existe, padre, nos encontraremos logo logo.

Portanto perdoe-me padre, porque eu pequei.


Hemerson Miranda 

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