Os
pais de Ian descobriram o seu autismo quando ele tinha doze anos. Pouco depois
do quinto aniversário do menino, seus pais começaram a desconfiar da sua
especialidade ao saberem que, no jardim de infância, meses depois de entrar,
ele ainda não tinha feito nenhum amiguinho.
Ficava
quieto no parquinho, sem falar com ninguém. Brincava com um relógio digital,
daqueles com cronômetro. Se entretia tentando cravar os milésimos no 000. Não
olhava para os colegas, nem para a professora, e ainda agredia quem tocasse nele,
não importando se fosse colega, funcionário da escola ou professor, ficando de
castigo algumas vezes.
O
único que conseguiu ser seu amigo foi Roberto. Este o abordou oferecendo-lhe
metade do seu lanche na hora do recreio. Ian fitou o sanduíche por mais de um
minuto e comeu. Mas se recusou a brincar com ele nos brinquedos da escola. No
dia seguinte, Roberto fez o mesmo gesto. Ian voltou a olhar para o biscoito e
comeu. Desta vez, o amigo perguntou de que ele estava brincando. Ian respondeu:
—
Não sei.
Roberto
pediu para ver o cronômetro e Ian o empurrou. O amigo foi embora chorando. Mas
voltou no dia seguinte, com um cronômetro parecido. Ele se aproximou do colega
e disse:
—
É de zerar o cronômetro a sua brincadeira? Trouxe um para brincar também. Vamos
brincar?
Ian
não respondeu. Roberto continuou brincando na dele, ao lado de Ian, que
permanecia em seu mundo. Roberto dizia:
—Ah,
perdi. Você ganhou.
Ian
enfim olhou para o colega, sorriu e mostrou o seu cronômetro, que estava zerado
nos milésimos. Os dois passaram a brincar juntos no mesmo cronômetro de Ian,
que zerou todas as dez rodadas que fizeram. Roberto só zerou uma vez.
Mesmo
com a amizade de Roberto e com alguns coleguinhas rindo dele, mas sem agredir,
Ian continuou na escola. Os pais acharam que o seu problema fosse apenas
timidez. Até que ele chegou aos 12 anos, quando os pais, percebendo o seu
comportamento ainda pré-escolar, finalmente decidiram levá-lo ao psicólogo que identificou
o autismo.
Aliás,
uma psicóloga, que era eu, Doutora Miriam. Tratei do Ian dos seus doze aos
vinte e dois anos. Durante esse período ele continuou estudando. E o incentivei,
inclusive a se defender dos colegas que praticavam bullying contra ele. Claro que eu também tentei ensiná-lo a
conviver com outras pessoas. Roberto já tinha se afastado dele. Foi morar com
os pais transferidos para Porto Alegre quando estava na quarta série.
Também
dei o maior apoio para ele fazer uma faculdade. Ian tinha uma inteligência acima
do normal. Passou em primeiro lugar para a faculdade de ciências da computação.
Não sofria tanto bullying quanto na escola, mas era ridicularizado pelas costas.
Abandonou a faculdade mesmo com os meus apelos para continuar. Não aguentava
mais ser esnobado pelos colegas e também por alguns professores arrogantes. O
pai tentou colocá-lo para trabalhar na loja de autopeças da família, mas ele
não se adaptou. Fazia escândalos e assustava os clientes. Eu o consolei dando o
meu amor para ele. Nos apaixonamos e nos “casamos”.
Fomos
vítimas de discriminação. Não só por eu ser dez anos mais velha do que ele, mas
pelo seu comportamento. Para começar, precisei deixar de ser a terapeuta dele.
Das
pessoas, o meu primeiro marido ficou debochando do meu novo amor, me chamando
de samaritana e fada madrinha sexual de “deficientes”. Sofria com o machismo e
os ciúmes do meu ex-marido. Mesmo assim, fui traída, trocada por outra mulher
mais gostosa. Ele, que é advogado, chegou a me denunciar para o conselho, mas
não deu em nada, pois já tinha deixado de tratar o paciente.
Meus
pais também foram contra, achando que eu merecia alguém “normal”. Segundo eles,
não é porque eu sou psicóloga que tenho a obrigação de me casar com os meus
pacientes.
A
maioria dos meus amigos se afastou de mim e passou me boicotar, não me
convidando para festas e reuniões em restaurantes, principalmente depois que um
deles - que estava na fila para me namorar após a minha separação - ofendeu o
Ian, que fez um escândalo. Só uma amiga me apoiou, embora tenha me alertado que um autista também
é capaz de trair. E eu sabia disso.
Da
família do Ian só tive apoio do pai dele e dos primos. A mãe me acusou de sedução
de incapaz. Chegou até a me denunciar à polícia e a denúncia também não resultou em nada. A irmã envenenava-o
contra mim, insinuando que eu não demoraria a traí-lo.
Sem nos importarmos com o preconceito, decidimos nos casar apenas no religioso, na igreja onde ele foi batizado, na Tijuca. A mãe e a irmã aceitaram a contragosto
e depois até tentaram ser minhas amigas. Choraram compulsivamente no altar. Meus
pais não apareceram no meu segundo casamento. Já o Roberto, amigo de infância
dele, estava lá, recém-formado em direito.
Eu
entrei na igreja vestida com um tomara-que-caia azul (a cor preferida de Ian), bem
decotado e com uma cauda de três metros. Ian estava vestido de fraque branco,
brincando com o seu cronômetro no altar enquanto me esperava. Não fizemos
festa. Ele não suporta barulho e muita gente reunida. Aliás, nem fizemos a fila
para os cumprimentos (que ele também odiava). Acabou a cerimônia e fomos direto
para a minha casa no Leblon, onde eu continuei morando depois que eu fui
abandonada pelo Marcos, meu ex-marido. A mãe dele foi morar conosco para
supervisionar o Ian. Caminhamos até o carro, sem latas penduradas no para-choque,
dirigido por seu pai. Também não houve chuva de arroz.
A
nossa primeira vez foi na noite de núpcias. Fiquei nua na frente dele pela
primeira vez. Ele também estava nu. Tocou no meu seio esquerdo, de tamanho
médio, e tirou rapidamente a mão. Ele
quase fugiu do quarto, mas eu o segurei a tempo pelo seu braço. Beijei a sua
boca com carinho e cuidado. Ele concordou e voltou a tocar no meu seio, desta
vez, o direito. E apertou forte e doeu. Em seguida ele os beijou e chupou.
Depois tocou no meu sexo peludo. Bem, chega de detalhes eróticos. Transamos,
enfim.
Engravidei
de primeira. Passaram-se nove meses e dei à luz Camila, nossa primeira filha,
que nasceu e cresceu sem problemas. Ian não assistiu ao meu parto normal. Tinha
medo de sangue. Tinha medo de hospital. Esperou na casa dos pais. Foi linda a
cena em que ele pegou na filha pela primeira vez. Parecia uma criança segurando
o irmãozinho recém-nascido.
Só
não foi lindo o que ele fez comigo depois. Passado o nascimento da Camila,
estava incomodada com o pouco interesse sexual dele. Tentava seduzi-lo, mas ele
não se interessava. Tinha medo de cobrá-lo. Quase procurei o Fábio, aquele cara
que arrumou confusão com o Ian no barzinho, para sair. Fui traída primeiro.
Ian
já tinha vinte e seis anos quando conheceu Adriana. Ela era filha de uma
ex-colega de ensino médio, que soube que eu casei com um autista e ficou
curiosa. Adriana também era e fazia o mesmo tratamento do Ian desde os doze
anos. Já estava com dezoito. A culpa foi minha de ter apresentado o Ian a elas.
Os dois se deram tão bem que eu não imaginava que chegaria ao ponto que chegou.
Um
dia, achei perto da porta do consultório, aparentemente passado por baixo dela,
um bilhete anônimo, que dizia com letra impressa em computador e em caixa alta:
SEU MARIDO ESTÁ TE TRAINDO. Achei uma piada de muito mau gosto. Queria saber se
foi o Marcos ou o Fábio. Como pode eu estar sendo traída por um homem autista?
Me lembrei do alerta da Geiza, aquela amiga que apoiou o nosso romance, mas me avisou
de uma possível traição.
Ignorei.
Não deu nem tempo para pensar em investigar. Cheguei em casa, encontrei a minha
sogra brincando com a Camilinha, e ela logo me disse que o Ian estava desde
cedo trancado no quarto com uma moça com comportamento igual ao dele. A pista
da Dona Jurema foi certeira como os cronômetros que ele cravava. Era Adriana
quem estava com o meu marido.
Corri
até o quarto, bati na porta educadamente e não fui atendida. Bati mais forte e
novo silêncio. Ouvi gemidos e gritos, tanto dele quanto dela. Arrombei a porta
e flagrei Ian em cima da minha paciente. Os dois nus. Dei um grito.
—
IAN E ADRIANA! O QUE SIGNIFICA ISSO???
Adriana
gritou e chorou. Dona Jurema correu para socorrê-la e acalmá-la. Fui embora.
Ian foi atrás de mim, ainda sem roupas, e disse na minha cara, nu no hall do
prédio, que não me amava mais. Que eu era muito normal para ele, que ele tinha
encontrado a mulher ideal e queria se casar com Adriana. Fiquei arrasada.
Nos
separamos. Deixei a Camila com a avó e a tia, pois o pai não tinha condições de
criá-la e eu não queria esquentar a cabeça com briga de guarda.
Me
casei com o Fábio, que é rico. Na psicologia, passei a
me dedicar aos idosos, especialmente mulheres, para não me envolver com os meus
pacientes para depois ser traída.
Ian
foi morar com Adriana. Tiveram uma filha autista, que
batizaram de Daniella. O meu filho com Fábio também nasceu com autismo. Senti
saudades do meu ex-marido especial.
Traí
o Fábio e perdoei Ian, que também havia sido abandonado por Adriana, que foi
morar com o seu terapeuta e levou Daniella.
Voltamos
a morar juntos com a nossa filha Camila e o meu filho Giovanni. Dona Jurema e
Iara, a irmã, não se opuseram a perder a guarda da menina para Ian. Afinal, ela sabia que a traição tinha partido dele. E Fábio
também não se importou que eu levasse Giovanni, pois não tinha gostado de gerar
um filho autista.
Eu,
Ian, Camila e Giovanni passamos a viver como uma família feliz, brincando de
zerar o cronômetro todos os dias. Ao mesmo tempo, estava me sentindo vingada
pelo chifre que eu levei do Ian.
Este
conto não teve a intenção de ofender, debochar e nem rotular os portadores de
autismo, pelos quais eu tenho sincero respeito.
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