Região Central de Porto Alegre/RS Foto: Radio Guaiba |
A energia elétrica acabou no exato instante em que Lupércio abriu o microondas para esquentar o prato feito com comida fria, que acabava de tirar da geladeira. Pensou que seria um apagão rápido, mas os minutos se passaram e nada de a energia voltar. A impressão de que era algo mais grave foi confirmada em mensagem no Whats: todos os semáforos da cidade deixaram de funcionar e o trânsito estava uma calamidade.
Lupércio tinha que ir para o trabalho depois de almoçar. Sem estômago para encarar a comida fria, devolveu o prato à geladeira, agora desligada, e enganou a fome com umas frutas. E lembrou que não poderia sair do prédio porque não sabia acionar o mecanismo manual que abria a garagem.
Preocupado, desceu as escadas. Ainda bem que morava em prédio de quatro andares, sem elevador. Para sua surpresa, outro morador abriu a garagem. O portão de saída ficou apenas encostado, o que era uma temeridade em situação normal.
Na rua, como o Whats acabava de alertar, o trânsito estava confuso. Era espantoso, pensou Lupércio, quanto as pessoas dependiam de um conjunto de códigos para um mínimo de organização. Precisavam da orientação de sinais, de cores, de indicações dos sentidos de direção. E, como nada disso funcionava nessa hora, motoristas e pedestres apelavam para o bom senso.
Antes de se dirigir ao trabalho, Lupércio precisou ir ao centro da cidade para efetuar um pagamento. Surpreendeu-se com uma certa organização no momento de cruzar as duas pistas da avenida marginal, a principal via da cidade.
Um carro avançou no espaço vazio, outros seguiram no vácuo, formando um comboio, e os que vinham em sentido contrário reduziram a velocidade e aguardaram a passagem do grupo de veículos. Não havia agente de trânsito no local.
Lupércio seguia nesse grupo. Estava satisfeito, porque previu acidentes e até então nada parecido aconteceu. Era como se o caos obrigasse os motoristas à necessidade de um respeito mútuo que, em condições normais, nem sempre praticavam.
O trânsito se complicou cada vez mais e Lupércio não conseguiu chegar ao endereço pretendido. Acabou chegando meia hora atrasado. Na perdição do trânsito, não conseguira ter ideia do tamanho do apagão. Só teve conhecimento de que a situação era muito mais grave quando entrou na sua seção de trabalho. O contato com outras pessoas compõe um conjunto de diferentes histórias e isso cria uma espécie de central de informações.
E, nessa hora, o que era preocupação ganhou contornos de calamidade. Chuvas com rajadas de vento em muitas regiões tinham derrubado várias torres de transmissão de energia. A vida parou em dezenas de municípios. Caiu a internet. O Whats saiu do ar. Impossível fazer ligação no celular. Só o telefone fixo funcionava, o bom e velho telefone fixo. O abastecimento de água também foi interrompido.
E agora, o que fazer sem internet? A rotina de trabalho ficou prejudicada, apesar de a empresa contar com o recurso de um gerador de energia. A dúvida era quanto ao tempo de autonomia do equipamento. As notícias eram de que não havia previsão para a normalização do caos.
O alcance de cada um vai até aonde a vista alcança e os ouvidos captam os ruídos. Cada colega de trabalho que vinha da rua relatava uma experiência diferente. "Agora voltamos ao que era antes: sem televisão, sem Whats, sem Netflix, sem celular, sem notícias de Brasília, sem Lava Jato", disse uma colega da mesa em frente. "A ordem é ir direto para casa, dormir mais cedo", disse outra mulher. "E como vou fazer para tomar banho?", perguntou uma terceira.
O chefe, na mesa central, estava decepcionado porque tinha armazenado grande quantidade de picanha para um almoço especial no dia seguinte e lamentava a perda de toda a carne. "Como tudo é tão frágil", alguém comentou.
Lupércio pensou no quanto eram reduzidos esses transtornos se comparados aos grandes estragos. Imagine, pensou, as cirurgias que estão sendo realizadas agora. E a aflição da mãe que buscou o filho na escola, não o viu porque ele encontrou um transporte alternativo e os dois não tinham como se comunicar para esclarecer o desencontro.
E alguém que acabava de sofrer um acidente e não tinha como chamar o Samu. E o infeliz que ficou preso no elevador, parado entre um andar e outro, imagine a sensação de asfixia. E o cadeirante que mora no último andar de um edifício e depende de ajuda para voltar ao apartamento porque na sua condição é impossível subir as escadas. E quem morreu ou perdeu casas destruídas pelas rajadas de vento.
Alta noite, perto da hora de sair do trabalho, Lupércio ouviu o alerta de uma colega da mesa ao lado: "Nada de ficar andando pela rua, é perigoso, vá direto pra casa." "Perigosa é a vida", pensou Lupércio, sem coragem de verbalizar essas palavras. Passava da meia-noite quando ele deixou o estacionamento da empresa e começou a percorrer as ruas. A escuridão era total. Ninguém à vista. Nenhum bar ou posto de gasolina abertos. Tudo fechado. Como se houvesse um acordo coletivo, todos estavam recolhidos.
Os faróis do carro abriam caminho no asfalto selvagem. Lupércio cruzou com um carro de polícia e uma ambulância. Havia medo de saques. Havia tensão nas cadeias por causa das condições propícias para fugas e rebeliões. Parecia cenário de guerra, quando todo mundo apaga as luzes temendo bombardeios noturnos.
Lupércio percorreu várias ruas e avenidas, como se urdisse um labirinto. A sensação de aventura era indescritível. Sem vontade de voltar para a solidão do apartamento, acelerou o carro no rumo da rodovia, curtindo a adrenalina de ameaça e perigo no fundo da noite mais escura.
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